Correio da Bahia, Salvador,30 Julho 2002, Seção Folha da Bahia, p. 01.

"Estamos inventando uma nova linguagem"
Entrevista / Eduardo Kac
Doris Miranda
 

Qualificar Eduardo Kac como artista é pouco, corre-se o riscode banalizar sua obra. A pecha de cientista, apenas, também nãofaz jus ao diretor do Departamento de Arte e Tecnologia do Instituto deArte de Chicago. O carioca premiado, reconhecido mundialmente como um dospioneiros na arte eletrônica, está mais para pensador - polêmico,como todos que têm algo a dizer. Aos 40 anos, Kac, hoje radicadonos EUA, vem apelando para o que chama de arte transgênica para mostrarao homem que ele é bem menor do que imagina, que sua posiçãono universo tem que ser revista com mais humildade.

Nessa nova modalidade de arte, pincel e tinta são coisas do passado.A principal ferramenta é a engenharia genética. A doce coelhinhaAlba é a prova concreta disso. Animal transgênico, ela éresultado da interação do gene de um coelho comum com o deuma água-viva fluorescente do Oceano Pacífico. Ao invésde olhar com desconfiança para Alba, Eduardo Kac recomenda maiscumplicidade, mais simpatia. Afinal, o homem também carrega em sios efeitos da transgenia. De passagem por Salvador, a convite da FundaçãoSakatar, ele participa, sexta-feira, do Simpósio Arte e Tecnologiano Brasil nos Últimos 50 Anos, que acontece no MAM (Avenida Contorno),com presença do músico Wilson Sukorski e do videomaker OtávioDonasci. Em seguida, compõe o megaevento Emoção Art.ficial,que o Itaú Cultural promove em São Paulo, no iníciodo próximo mês. Antes, porém, Eduado Kac concedeu,por telefone, entrevista ao Folha. Confira os melhores trechos.

FOLHA - O senhor vem a Salvador para traçar um panorama da artetecnológica no Brasil nos últimos 50 anos. Qual a posiçãodo país em relação ao resto do mundo nesse segmento?
 
 

EDUARDO KAC - Primeiro, é bom dizer que há realizaçõesbrasileiras que acontecem em sintonia e até mesmo antecipando oque ocorre em outros países. O que nem sempre acontece éa divulgação disso. Tenho um projeto para tentar clarearo caráter cultural da arte/tecnologia no Brasil, aqui e láfora também. Falando francamente, o brasileiro se comporta comose não houvesse existido interação da arte com a tecnologianem no presente nem no passado. Parece que a consciência da sensibilidadeda arte tecnológica, como há em relação àpintura ou à escultura, por exemplo, não existe no Brasil,que ainda exporta arte barroca. Isso é equivocado. Há sim,é desenvolvida e de qualidade. Meu objetivo é mostrar queisso e-xiste.
 
 

F - Sua atuação nas comunidades artística e científicano exterior ajuda a criar uma nova imagem para o Brasil?
 
 

EK - É um processo lento, mas hoje, com a globalização,se torna mais fácil quebrar a barreira cultural. O problema éque o Brasil ainda não se reconhece. E se o próprio paísainda não inclui sua arte tecnológica nas exposiçõesde porte, como pode dizer a outros países que há trabalhossignificativos?
 
 

F - Qual é o objetivo exato do seu trabalho? É arte? Éciência?
 
 

EK - Eu tenho interesse grande em criar um tipo de arte que tenha caráterinterventivo, que exista simultaneamente no espaço do museu, dagaleria, mas também no espaço social, muito mais amplo. Oartista que trabalha com novas tecnologias usa as mesmas ferramentas quequalquer outro profissional. A manipulação de imagem, porexemplo, ocorre nos hospitais, nos laboratórios de análisese também no meio artístico. Só que o artista faz umuso mais interventivo, mais poético desse veículo. O resultadoestá no público. Diante de uma pintura, o públicopode interpretar o trabalho como quiser, mas na arte tecnológicaele interfere nas ferramentas, pode compartilhar. É como se colocássemostinta e pincel na mão das pessoas para que elas continuem o trabalho.
 
 

F - Quando o senhor começou a atuar com esse foco?
 
 

EK - Comecei a trabalhar com holografia nos anos 80, buscando uma novalinguagem poética. Criei a holopoesia, que ultrapassa a lógicada página impressa. Isso me levou a outras coisas, claro. Chegueinuma ponte sem retorno, encontrei um universo completamente dife-rente.Daí para frente, comecei a trabalhar para tentar suprimir a lacunamaterial da telecomunicação, explorando novas noçõesem relação ao espaço físico para criar novaspossibilidades de fazer arte.
 
 

F - A partir de quando seu olhar começou a se voltar para a manipulaçãogenética como arte e o que lhe motivou a isso?
 
 

EK - Comecei a caminhar para a biologia explorando sistemas sensoriaisque não os dos humanos para que nós possamos compreendernovas realidades. Percebi que, com a engenharia genética, nãoé preciso mais acoplar o biológico ao digital porque a genéticaé informacional, não apenas química. Como numa páginaem branco, você começa a escrever a ordem genéticaque quer. Diante disso, é possível criar tudo dentro de umanova lógica - claro que dentro de um limite ético.
 
 

F- Por falar em ética, o senhor impõe limites àsua conduta artística? O senhor falou em planejamento da vida. Nãohá um perigo aí se a coisa acontece de forma descontrolada?
 
 

EK - A ética sempre está inserida na arte, mesmo que oartista não tenha consciência disso. Com a arte transgênica,a ética nunca esteve tão em evidência porque a transgeniapode afetar o homem de modo intenso. O caso específico de Alba (acoelhinha transgênica que Kac criou com DNA modificado) émuito particular porque trabalhei com o gene da proteína fluorescenteverde, utilizei um gene padrão usado diariamente em laboratóriosde todo o planeta para visualização in vivo. A coelha sóbrilha quando exposta a uma iluminação azul, feita por umalâmpada normal, que não é ultravioleta porque essalhe causaria danos sérios. Ah, para ver o brilho dela, tem que seolhar através de um filtro amarelo. É importante que se digaque esse gene não causa transformação no físicoou no comportamento dos seres. Eu estudei muito para isso, fiz curso degenética, pesquisa intensa. A partir da certeza que isso nãocausaria dano algum, vi que o artista poderia trabalhar com esse material.Não aprovo que a coisa seja feita aleatoriamente, o que vai acabarcausando deformidade e sofrimento aos animais. Isso não aceito.
 
 

F - O senhor garante que a proteína fluorescente verde, a mesmaencontrada em alguns seres vivos que habitam o oceano, não faz malquando misturada aos genes de outros seres. Mas, por que fazer isso? Oque se ganha?
 
 

EK - Meu compromisso é ter um mamífero transgênicovivendo com os seres humanos. Mas, para isso, Alba teria que viver comminha família, fazer parte dela. No entanto, os cientistas, queretém ela no laboratório, ignoram que a obra tem um carátersocial. O animal não pode ser tratado como objeto, o animal éum sujeito. Não podemos ignorar o sistema cognitivo e emocionaldele. Queria isso: reconhecer em Alba um mamífero transgênico,um sujeito que tem sistema emocional e cognitivo, como qualquer outro coelho.
 
 

F - E isso é arte?
 
 

EK - Sim, estamos inventando uma nova linguagem, abrindo caminhos parase pensar a arte. Acho importante dizer que a obra não éa coelhinha: quero enfatizar a relação dela num espaçosocial, e o diálogo resultante disso, como arte. Temos tambémum ponto de vista filosófico importantíssimo: já ficoucientificamente comprovado que no desenho do genoma humano existe materialgenético de um tipo de vírus. Então, todo ser humanotem uma seqüência genética no seu DNA que nãoé humana. O que significa isso? Que todo ser humano é umser transgênico. Há uma subjetividade aí. Aquilo quepensávamos ser estranho no outro, reconhecemos em nós mesmos.Nosso lugar no universo se torna mais relativo, mais humilde.
 
 

F- Alba é um clone ou o senhor injetou a proteína no animaljá desenvolvido?
 
 

EK - Não introduzi a proteína num coelho, nem tampoucoclonei o animal. O processo começa com uma célula da reproduçãomasculina isolada, onde é introduzido o gene fluorescente verde,extraído de uma água-viva. Depois, acontece a fusãocom a célula feminina na fertilização feita in vitro,e o zigoto começa a se dividir, cada pedaço disso recebemais genes para que todo o animal tenha fluorescência.
 
 

F- Não há aí o perigo de se extrapolar o conceitode arte e se começar a brincar de Deus? O senhor não temreceio de sofrer represálias, diante das manifestaçõesdesfavoráveis à transgenia?
 
 

EK - O homem condena o transgênico, qualifica isso como monstruosidade,mas não percebe que é um processo natural. A transgenia éum processo independente do homem, mas tem que se seguir um condicionamentoético, uma sintaxe própria que vai evoluindo com responsabilidadeao longo dos tempos. Para falar a verdade, isso também nãoera 100% claro para mim. Quando falo em criar um contexto para que o públicocresça, quero dizer que eu também quero fazer parte desseprocesso, também quero crescer junto. Espero que uma obra que criome leve para um lugar que nunca estive antes, quero também ter experiênciado novo e crescer com isso.
 
 

F- O senhor tem outros planos para garantir a continuaçãode sua obra?
 
 

EK - Sim, claro que a arte transgênica vai continuar. Estou pensadoem duas novas obras. Não posso dizer o que serão, mas possoadiantar que em breve uma estará em exibição.


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