Folha de São Paulo, 04/07/2002


Kac questiona o natural e o artificial em toda a sua obra

GISELLE BEIGUELMAN
especial para a Folha

Nunca se falou tanto em pós-humanos. Clones, transgênicos e mutantes conquistam a mídia e alastram-se por jogos de computador, telenovelas e exercícios de futurologia.

Até Fukuyama já entrou nessa, defendendo, em "Our Posthuman Future: Consequences of the Biotechnology Revolution", a tese do "recomeço" da história, em vez de seu fim, como na obra anterior. Não há espaço para se deter nisso, mas se considera que seja suficiente para assustar.

Ainda bem que Eduardo Kac está por perto, alertando e confortando com seus projetos audazes, que o transformaram em um dos maiores criadores no campo das artes e da tecnologia.

Investigando desde 97 os desdobramentos psicossociais da revolução biotecnológica, faz pensar nos seus aspectos culturais, debate que se acirrou com o nascimento, em 2000, da coelha Alba.

Albina e transgênica, ela apresenta uma proteína artificial (EGFP, Enhanced Green Fluorescent Protein) que faz com que fique verde-fluorescente quando exposta a um tipo de iluminação.

Projetada em um laboratório francês, não vive ainda, por determinação do laboratório, com Kac em Chicago, como era planejado.

A interdição desencadeou intensa campanha que assumiu diversos formatos, desde intervenção urbana até "gadgets", como camisetas e fotos. Nas ações, ele pede: "Free Alba!" (Libertem Alba!).

Esse pedido se expande em demandas urgentes. Faz com que se reflita sobre os laços que estabeleceremos com os seres modificados em laboratório, negando a estetização da ciência nos moldes apregoados pelo nazismo.

Alba não é um protótipo nem um "hype". É um ser vivo que obriga a pensar nos elementos éticos e afetivos das relações que emergem com a engenharia genética.

Traço marcante em toda a sua obra recente, Kac questiona a oposição entre natural e artificial e nos impõe refletir sobre a coexistência entre humanos e transgênicos e dos próprios transgênicos entre si, como em "O Oitavo Dia".
Nesse projeto, organizou uma comunidade de vegetais e animais modificados em laboratório que estão convivendo em uma redoma e com os quais foi possível, na época do lançamento, interagir pela internet.

Dilatando noções de alteridade, nos prepara para viver num mundo livre do atavismo biológico. Uma liberdade que defende baseado no pensamento de Martin Buber, que pensou o "eu" em relação ao "tu", e de Emanuel Levinas, que nos ensinou que reconhecer a diferença não é incorporar a indiferença, mas assumir essa responsabilidade. Lições cujo aprendizado se resume em uma frase: "Libertem Alba!".

Giselle Beiguelman é professora da pós-graduação em comunicação e semiótica da PUC-SP


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