Originalmente publicado em Jornal da Tarde, Novembro 8, 1999.


Poesia digital navega em busca de reinvenção
Confronto do gênero com a Internet não passa pela eliminaçãodo papel, mas pelo desafio de encontrar tradução, no mundoeletrônico, para as inovações pensadas pelos escritores

Flávio Moura

Para divulgar poesia, já há tempos, a Internet tem sidode grande valia. E para criar poesia? Que alterações sofreo gênero quando posto a serviço das pirotecnias verbais possibilitadaspelos recursos da linguagem eletrônica? Extensa, a discussãonos dá pistas sobre a intensidade do impacto da onipresente tecnologiasobre a arte.

De que se trata, afinal? De uma imensa senda, ainda pouco explorada,que nos abrirá portas deconhecidas da percepção, ouda instrumentalização estéril de fórmulas insensíveisàs marcas da experiência vivida? De enriquecimento ou de castraçãoda sensibilidade?

Não nos adiantemos. Pois antes é preciso saber de queconsiste essa tal poesia virtual. "Trata-se de uma poesia radicalmentenova, impossível de ser apresentada em livros, que desafia atéas inovações recentes da poética experimental contemporânea",define Eduado Kac, professor do Departamento de Arte e Tecnologia da Schoolof the Art Institute of Chicago, EUA, ele mesmo um poeta virtual.

Desde 1983 Kac realiza experimentos com produção poéticaque prescinde do suporte tradicional ­ o papel. "A poesia virtualleva a linguagem a dimensões ainda não vistas da experiênciaverbal", diz ele. Tome fôlego: "Essa poesia explora umanova sintaxe, feita de animação linear ou não-linear,hyperlinks, interatividade, textos em tempo real, descontinuidade espaço-temporais,auto-similaridade, espaços sintéticos, imaterialidade, relaçõesdiagramáticas, tempo visual, múltiplas simultaneidades emuitos outros procedimentos inovadores."

Valor artístico

Inovadores, sim. Mas suficientes para emprestar valor artísticoa qualquer apanhado de palavras? "É inegável que osefeitos visuais, no computador, são ilimitados, mas isto jamaisimplicará transformar a má poesia em produto de qualidade",afirma o poeta Soares Feitosa, que há três anos mantémjornal de poesia na Internet (http://www.secrel.com.br/jpoesia/). "Achoo efeito visual valioso, mas o texto há de subsistir." ConcordaElson Fróes, poeta cujos experimentos com linguagem eletrônicapodem ser vistos no site http://users.sti.com.br/efres. "Um bom poemaé independente do suporte em que se apresenta, seja escrito comuma varinha na areia ou com a luz no espaço."

Entre em qualquer site de poesia virtual e verá. As letras sobeme descem, piscam, mudam de cor, de idioma, derretem-se, explodem, se escondem.No Brasil, desde a década de 50, os concretistas já chamavamatenção à integração do aspecto visualà composição do poema. O computador facilitaria entãoo desdobramento dessa questão, da leitura verbivocovisual por elespregada?

Ocaso do livro

Melhor não misturar os canais. "Se a poesia concreta eraum projeto para a sociedade recém-urbanizada do pós-guerra,a poesia digital é um projeto para o mundo virtual e eletrônicode hoje", explica Kac. Ao que tudo indica, os parâmetros tradicionaispara julgamento da poesia não servem a essa nova forma de arte.A ruptura é abissal.

"Poesia virtual não segue a rota natural da evoluçãoda poesia", ressalta o professor. "Do contrário, ela mostraque uma nova poesia para o próximo século deve ser desenvolvidaem outro meio, simplesmente porque as aspirações textuaisdos autores não podem ser fisicamente realizadas na forma impressa."

Mas nem todos têm essas aspirações textuais. Nãose trata do ocaso da forma livro. "O livro jamais perecerá",categoriza Soares Feitosa, em cujo site encontram-se links para mais dedois mil poetas. "É um detonador, uma espoleta, de grande valia,essa tal de Internet, arauto do livro, isto sim. Vai aumentar a vendagem,com certeza. Estamos vivendo um novo Iluminismo."

Para Fróes, o conceito do "formato livro" tende a setransformar em algo mais flexível, mais dinâmico, migrandopara dentro das novas tecnologias. Segundo ele, já estãodisponíveis livros eletrônicos, que imitam no formato inclusive,trocando ou armazenando como software o novo livro a ser lido. "Seos novos formatos vingarem, com certeza o mundo dos livros serábem diferente no futuro próximo."

Eduardo Kac reuniu na antologia New Media Poetry (Rhode Island, 1996)uma lista de nomes que se apropriam das novas ferramentas para experimentarcom poesia. Estão lá os pioneiros da electronic sound poetry(poesia sonora eletrônica), como François Dufrêne, HenriChopin, Bernhard Heidsieck, Brion Gysin e John Giorno; os baluartes dapoesia digital, como Aaron Marcus, Erthos Albino de Souza e Raymond Queneau,"poliescritores" contemporâneos, como Richard Kostelanetz,Jackson Mac Low e Silvestre Pestana, além de artistas da mídiaeletrônica que trafegam entre a literatura e as artes visuais, comoBill Seamon e Jeffrey Shaw.

Para se aprofundar no assunto, veja o site: http://www.ekac.org. Outrahome page que aborda o tema é o da The Xmantic Web (http://www.unb.br/vis/lvpa/xmantic/index.htm).Também vale a pena conferir o Estudio de Poesia Experimental doCOS-PUC-SP (http://www.pucsp.br/~cos-puc/epe/) com links para outros sitesimportantes. Para quem quer saber sobre a poesia visual desde a antiguidade,passando pelo barroco e as vanguardas históricas até os contemporâneos,além de um ótimo acervo de poesia sonora, vale destacar oUBUWEB (http://www.ubu.com/).

E os professores de literatura, o que acham disso? "A Internetestá contribuindo para que a poesia ­ que é tãoessencial para o ser humano ­ atinja o grande público",diz Nely Novaes Coelho, professora de Literatura da Faculdade de Letrasda Universidade de São Paulo.

"Isso é importante porque a poesia é o gêneroque leva ao auto-conhecimento e ao conhecimento do outro. Por outro lado,considero que há um perigo na convergência da multilinguagem,que é a banalização de um fenômeno esssencial",considera a professora. "Quando se trabalha com a quantidade, a qualidadecai. Por isso, o fenômeno da Internet é algo ambíguo.Mas temos que pagar para ver."


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