Originalmente publicada na rede em "X News" (http://www.xnews.com.br), Ano 1 - Número 6 - Outubro/1999.


PARA ALÉM DA CYBERARTE
A Internet não é o limite

Entrevista de Eduardo Kac a Karla Mourão.


Holopoesia, telepresença, biotelemática, biorobótica e arte transgênica. O artista brasileiro Eduardo Kac adotou a tecnologia e a ciência como forma de criar novas “artes”, muito mais do que novas obras, rompendo com o que poderíamos chamar de limite criativo da arte tradicional. Na verdade, não existe um consenso quanto ao que se deva entender por arte, muito menos quando se trata de arte eletrônica. Representante de uma geração que vê na possibilidade de interatividade o grande desafio da arte atual, Kac assume a complexidade, as formas tridimensionais, as transformações de elementos imateriais, o contato com outras mentes, as alterações biológicas e o elemento surpresa como inspiração e matéria-prima do seu trabalho.

Há diversas modalidades de arte eletrônica, a grande parte delas propõe a interatividade entre o observador e a obra. Isso modifica o conceito de apreciação da obra de arte, o observador deixa a atitude passiva para a direta intervenção no conteúdo. Você fala de negociação de significados, o que é isso exatamente?

A idéia de que não existe a observação “isenta” passa ter maior circulação a partir da física moderna, que começa a entender que quando você tenta observar fenômenos sub-atômicos, acaba por interferir no fenômeno observado. Essa conclusão de natureza prática para a física teve grande influência sobre a sociedade, a cultura e a arte. Na verdade, você está sempre contribuindo para aquilo que você experiencia. E uma das coisas interessantes da arte interativa é evidenciar este fato. E, é claro, explorar como nunca foi feito antes as possibilidades que esta situação oferece.

Seu trabalho de poesia tem como base tecnológica a holografia. Por que a holografia serve à palavra?

Meu primeiro holopoema é de 1983. Uso a holografia com a proposta de criar uma nova sintaxe que não seja baseada nas poéticas visuais do século XX. Há uma linhagem de experimentação poética , que começa no século XIX com Mallarmé, baseada na visualidade da palavra na página. Essa experimentação aparece no cubismo, no futurismo, na poesia dadaísta, no concretismo e no neo-concretismo. Ficou claro para mim que, na era da eletrônica, a nova sintaxe não ia emergir da página impressa. Só não sabia de onde emergiria, porque eu achava que o uso bidimensional da tela do computador era muito semelhante ao da página. Foi, então, que surgiu a idéia de usar holografia.

Pela possibilidade da representação tridimensional?

Muito mais do que isso, porque esta é uma noção limitada que a maioria das pessoas tem da holografia. A técnica se presta à reprodução mimética simples, mas não é isso que interessa. Se você souber que o inventor da holografia recebeu o Prêmio Nobel de Física, você começa a entender que o conceito tem que ser mais complexo. Ele ganhou o prêmio porque a holografia tem um poder de armazenamento de informações que não existe igual no mundo, tanto que se promete que as novas formas de memória e armazenamento dos computadores óticos da nova geração serão holográficas. Por que? Porque várias informações podem ocupar o mesmo espaço, o que é impossível com formas eletromagnéticas. Mas, com formas óticas é possível, porque você está lidando com a interferência da luz.

Como usar este potencial para construir uma nova sintaxe poética?

Criando um poema que pode explorar a noção de descontinuidade ao invés da simultaneidade da palavra na página. Você pode projetar imagens de maneira que haja um intervalo entre um fenômeno percebido e outro fenômeno percebido. Há vazios, que começam a negociar a presença e ausência de vocábulos. Outro aspecto interessante é a possibilidade de explorar os pontos de vista. Você fecha um olho e abre outro, tem visões diferentes de um mesmo objeto. Então, eu criei o que chamei de leitura binocular. Por exemplo, você pode ter uma situação em que seu olho esquerdo leia LUA ao mesmo tempo que o seu olho direito lê FACA. Não são dois pontos de vista sobre a mesma coisa. Cada olho vê uma palavra diferente ao mesmo tempo. A leitura se torna muito mais intensa. Não há uma síntese formal entre os dois pontos de vista e cria-se uma tensão, que se chama de rivalidade retiniana.

O que você vê de fato neste caso?

Você vê uma oscilação verbal, que depende do seu poder de concentração a cada momento. Na medida em que você vê uma palavra começa a ver menos a outra, numa oscilação perpétua. Com a holografia, eu tenho a possibilidade de sugerir perpetuamente uma oscilação de sentido, você nunca tem que escolher entre uma coisa ou outra.

E a telepresença, o que é?

A telepresença envolve um elemento material comandado em suas ações por alguém à distância. O Onitorrinco, que é a obra fundadora da estética da telepresença, foi criado em 1989. Não havia Internet na época. Ele foi criado para ser comando através do sistema telefônico. O som emitido por cada número provocava uma ação no robô. O teclado se converteu numa rede cartesiana de navegação : 2 para frente, 1 para a esquerda, 3 para a direita e assim por diante. Escolhi o telefone porque queria que a idéia fosse universal. Embora apenas 20% da população do planeta tenha acesso ao telefone, é a tecnologia de comunicação de maior acesso no mundo. A proposta é que as ações originadas tenham uma conseqüência física em um espaço distante.

Qual é a proposta da biotelemática?

O termo telemática surgiu na França no fim dos anos 70 para designar a tecnologia de convergência entre as redes de comunicação analógicas e os novos sistemas de comunicação digital, os computadores. Hoje em dia, talvez o termo não faça mais sentido, porque tudo está se transformando em digital : o telefone celular, a Internet, a televisão. Então, a telemática como campo de ação separado teve um período de vida de 20 anos. A biotelemática é o casamento da dimensão do trabalho em rede com o processo biológico, no qual haja efetivamente uma manifestação física. Não estou falando de metáforas, mas de um processo físico real. Um exemplo é o meu trabalho “Teleportando Um Estado Desconhecido”, no qual havia numa galeria escura um pedestal com terra e uma semente plantada. Sobre este pedestal havia uma projeção que continha pequenas janelas através de video-conferência. Eu mandei mensagens na rede, convidando 2000 pessoas a apontarem suas câmeras digitais para o céu dos países onde moram, com isso, teleportando fótons - partículas de luz - através da rede, que eram projetadas diretamente sobre a terra, tornando possível que a planta fizesse fotossíntese num lugar completamente escuro com luz de várias partes do planeta.

Num dos seus trabalhos na área de biorobótica, intitulado “A Positivo”, você doa sangue para uma máquina, que devolve glicose para o seu organismo e em seguida produz do seu sangue oxigênio para alimentar uma chama. Qual é a mensagem ?

O elemento biorobótico aponta para uma inversão de vetores. Estamos acostumados a pensar a migração do elemento tecnológico para o corpo humano. Pensamos sempre no elemento eletrônico a serviço do biológico. Neste trabalho, estou apontando o contrário. É uma representação do elemento biológico a serviço do elemento eletrônico. Passa a existir uma relação de maior equilíbrio entre os dois.

Sua mais recente proposta de atuação é a arte transgênica. Em que consistiria este trabalho?


Eu proponho o uso da engenharia genética para transferir gens sintéticos para micro organismos ou material genético de uma espécie para a outra com o objetivo de criar organismos vivos únicos e originais. A engenharia genética permite ao artista criar novas formas de vida animal e vegetal. A natureza deste tipo de arte se define não apenas pelo nascimento de uma nova planta ou animal, mas pela qualidade da relação que se estabelece entre o artista, o público e o organismo transgênico. Trabalhos de arte transgênica serão levados pelo público para casa para serem plantados no jardim ou criados como animais domésticos. Não pode existir arte transgênica sem um firme compromisso e responsabilidade com a nova forma de vida criada.

É um conceito bastante polêmico, não?

Questionamentos éticos existem em todo tipo de arte e, sem dúvida, tornam-se mais cruciais do que nunca no contexto da arte biológica, quando um organismo vivo é a própria obra de arte.


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