Originalmente publicado, em versão reduzida, na revista LatinArte, Ano 2, N. 6, São Paulo, Novembro/Dezembro 2001.
Entrevista com Eduardo Kac
Carolina Stanisci
No site sobre o festival, está escrito que o festival Ars Eletronica e a arte eletrônica em geral funcionariam como catalisadores do desenvolvimento social, da transformação. Por quê? Como se dá isso?
Quando o festival teve início, no fim dos anos 70, a revolução digital dava os seus primeiros passos. Ha mais de 20 anos o festival serve como um espaço de produção, reconhecimento, e divulgação de obras de arte bem como produtos culturais relevantes, ou seja, trabalhos que contribuiram para definir os caminhos da revolução digital -- agora se expandindo no contexto da revolucao biotech. Além disso, a cada ano publicam dois volumes bilingues (em ingles e alemão), um com obras que participaram de competição internacional e outro com textos historicos e teoricos sobre o tema do ano. Trata-se, portanto, de material fundamental para a compreensão do impacto social e cultural da ciencia e da tecnologia.
O senhor participou do Ars Eletronica três vezes, como conferencista, em 1995; como artista e também conferencista, em 1999, e agora na última edição, de 2001, como conferencista. O que mudou na arte eletrônica durante esse período? Qual foi o tema de sua última palestra?
A arte eletronica esta em constante dialogo com a sociedade. A arte eletronica mais interessante e importante esta completamente difratada no espaco social, ou seja, participa mas nao esta apenas circunscrita ao mundo das artes plasticas. Veja por exemplo o trabalho de artistas como Orlan, Stelarc, e Mark Pauline, ou de grupos como Etoy e Tissue Culture. A arte eletronica reflete mudancas tecnoculturais e intervem em contextos sociais. Isto se acentua cada vez mais, sobretudo com a expansao da Internet, um dos fatores marcantes desde 1994 na arte eletronica. Recentemente, a explosao biotech criou novos problemas sociais e filosoficos, e a arte assume entao uma posicao de lideranca neste debate. Minha palestra comecou com uma visao panoramica da questao biologica na arte, lembrando a todos que o grande pioneiro foi o fotografo Edward Steichen, que inventou novas flores nas decadas de 20 e 30, escreveu sobre a genetica como forma de arte naquela epoca, e fez uma exposicao de suas flores (as flores verdadeiras mesmo) no Museu de Arte Moderna de Nova York em 1936. Depois de um apanhado geral, que incluiu mençao ao movimento da arte ecologica dos anos 60, prossegui e mencionei meu trabalho com biologia na arte, remontando ao principio dos anos 90. Comentei minhas obras transgenicas recentes, como "Genesis" (exibida no Centro Cultural Itaú, São Paulo, em Junho/September, 2000) e "GFP Bunny" (Coelha PFV) e conclui com uma apresentacao sobre minha obra transgenica mais nova, chamada "O Oitavo Dia", com inauguracao no Institute for Studies in the Arts (Instituto de Estudos da Arte), na Universidade do Estado do Arizona, no dia 25 de outubro de 2001. A obra cria uma ecologia transgenica, com quatro organismos expressando o gene GFP (proteina fluorescente verde -- o mesmo expresso pela coelha transgenica Alba), e um robô biologico que pode ser controlado pela Internet. O participante assume o ponto de vista do biorobô, dentro da ecologia transgenica.
A arte que se beneficia de tecnologias tem acesso mais amplo para o espectador, que pode vê-la fora do museu, em espaços como a Internet. Nesse sentido, pode-se dizer que a tecnologia usada em conjunto democratiza e universaliza a arte?
Nao ha duvida que o artista que trabalha com a Internet e outros meios de comunicacao pode atingir uma audiencia (e um publico participante) global, indo para alem do alcance local de sua cidade ou pais. Isto é um fenomeno recente, que evolve em paralelo à popularização da Internet. Entretanto, dizer que a arte eletronica democratiza e universaliza a arte seria um exagero, pois o que pode contribuir para democratizar a arte é acesso à educação e melhor distribuição de renda. Não há como a arte ser literalmente universal, pois fatores culturais e ideologicos sempre influenciam a percepcao do mundo.
No caso de ser positiva a resposta para a pergunta anterior, eu gostaria de saber se o mesmo ocorre com o artista. Os meios de produção são mais acessíveis, do que para quem produz arte em suportes mais tradicionais?
De um modo geral, continua sendo mais barato e acessivel fazer desenho com lapis sobre papel, pintura de oleo ou acrilico sobre tela, fotografia, ou mesmo arte que se apropria de materias, no estilo de Marcel Duchamp. O artista que trabalha com meios tecnologicos nao o faz simplesmente porque é mais barato, ou porque os meios sao acessiveis, pois nao sao. O trabalho com computador e outras tecnologias de ponta requer grande investimento, constante manutencao e atualizacao, bem como aprendizado constante de novas ferramentas. Na era digital nao existe a nocao romantica do mestre que passa sua vida se aperfeicoando numa tecnica, pois as ferramentas mudam constantemente. Parafraseando Heidegger, a questao da arte tecnológica nao é tecnologia.
É fácil mostrar a arte digital fora da Internet? Os museus não oferecem resistência ao meio e/ou a arte digital não fica melhor no computador?
A obra criada para ser vista exclusivamente no computador pode ser vista de forma mais adequada em casa, atraves da rede, mas nem toda obra de arte que emprega meios digitais é concebida para a Internet. Boa parte das obras que empregam meios digitais acabam projetadas em video ou rematerializadas de muitas formas. Em alguns casos vemos o que o critico ingles Mike Punt chama de "analogico pos-digital", como no caso das obras que empregam "rapid-prototyping" (tecnica que permite a "impressao" de objetos 3d originalmente criados no computador). Algumas obras deste tipo (criadas com "rapid-prototyping") foram recentemente mostradas em exposicoes de arte tecnologica realizadas no Museu de Arte Moderna de Sao Francisco e no Museu Whitney de Arte Americana, em Nova York. Um novo museu em Nova York -- New York Center for Media Art (NYCMA), em frente ao PS1, se dedica exclusivamente à arte tecnologica. Neste momento estou mostrando no NYCMA minha obra "Capsula do Tempo", originalmente realizada em Sao Paulo, simultanemante no centro cultural Casa das Rosas, na TV (Canal 21) e na Internet, em 1997. A obra involveu o implante de um microchip no meu corpo e o contraste com uma serie de fotos da decada de 30. No museu, estou mostrando uma instalacao com as fotos originais e um DVD em loop com o momento do implante. O video é visto numa tela de cristal liquido emoldurada. Em frente da tela se ve a seringa original de 97 e uma replica do microchip, que continua dentro do meu corpo. Nao ha um unico espaco ideal para uma obra que cruza varios meios, varios espacos, e se extende no tempo.
Quando se pensa em arte eletrônica no futuro, qual é a sua visão? Tudo será interativo ou ainda haverá espaço para a contemplação pura?
Para entender o futuro, é sempre útil revisitar o passado. No caso brasileiro, é preciso manter acesa a chama cinética de Abraham Palatnik; é urgente lembrar sempre o experimentalismo transgressivo de Flavio de Carvalho; fundamental manter ligada a verve digital de Waldemar Cordeiro e lembrar o legado interativo e dialógico de Helio Oiticica e Lygia Clark. Estes artistas nao apontam para a contemplacao pura. A interatividade digital não é o único caminho possível, mas uma vez completado o ciclo da dematerializacao da obra de arte na década de 60 (como já havia apontado na época o critico argentino Oscar Masotta, citando Lissitzky), é preciso entender a arte imaterial da rede e a rematerializacao biotecnologica.
Professor do Art Institute de Chicago, você leciona arte eletrônica. Desde sempre se interessou pelo assunto, tendo projetos na década de 80 de arte da telepresença. Poderia contar um pouco o que é telepresença e por que tal interesse constante na interação de tecnologia e arte?
Quase todos os artistas utilizam ciência e tecnologia de um modo ou de outro. A fabricação industrial de lápis, iniciada no final do século dezoito, foi um avanço tecnológico significativo. Tecnologia é também empregada na fabricação de pincéis, telas e tintas: a paleta impressionista, por exemplo, não teria sido possível sem os avanços da Química. A obra de Seurat usa princípios científicos. Uma das grandes diferenças entre a tecnologia da pintura e as tecnologias que emprego em meu trabalho (holografia, computadores, robótica, engenharia genética, internet, etc) é que as velhas tecnologias são agora estáveis e foram assimiladas socialmente, enquanto que as novas tecnologias permanecem num estado constante de mudança e não são ainda familiares para grande parte da população. As tecnologias contemporâneas manifestam um impacto profundo em nossas vidas. Considero que para questionar e criticar diversos aspectos da experiência contemporânea devo fazê-lo de dentro da paisagem mediática. Vejo a arte como mais próxima do espírito inquiridor da filosofia, e esforço-me em modular a tecnologia para explorar alternativas aos contextos sociais limitados de hoje. Utilizo a tecnologia para desenvolver estratégias que privilegiem experiências democráticas, interações colaborativas e a liberdade de escolha. Estamos testemunhando uma mudança de paradigma nas artes, em que uma abordagem auto-centrada é substituída por situações dialógicas. A medida que as pessoas exploram as possibilidades, também as expandem, e neste processo são responsáveis por suas próprias experiências. Desenvolvi novos caminhos a partir do acasalamento da rede com a telerobotica (a arte da telepresenca), da mescla de processos biologicos e telematicos (a arte biotelematica), e do uso da engenharia genetica como meio de criacao (a arte transgenica). É por isso que utilizo palavras como "telepresença", "biotelemática", "arte transgênica". Novos conceitos exigem um novo vocabulário.
Back to Kac Web