UM MICROCHIP DENTRO DO CORPO

Arlindo Machado

Depois da generalização dos happenings, das performancese das instalações, depois do questionamento do cubo brancodos museus e o salto para o espaço público, depois de terlançado mão de todas as máquinas e aparelhos da cenatecnológica para produzir imagens, textos e sons de feiçãoindustrial, depois ainda de discutir a tragédia da condiçãohumana e de colocar a nu os constrangimentos, as segregações,os interditos derivados do sexo, da raça, da origem geográficae da condição sócio-econômica, depois de terexperimentado tudo isso, a arte parece agora reorientar-se decididamentepara a discussão da própria condição biológicada espécie.

De fato, nos últimos anos, alguns criadores como Orlan e Stelarcvêm se esforçando para trazer à cena cultural a difícildiscussão sobre uma possível superação do humanoatravés da intervenção cirúrgica radical, ouda interface da carne com a eletrônica, ou ainda da complementaçãodo corpo biológico com próteses robóticas capazesde ampliar suas potencialidades. Mais do que simplesmente profetizar mudançasprofundas em nossa percepção, em nossa concepçãode mundo e na reorganização de nossos sistemas sócio-políticos,esse pioneiros vislumbram mutações fundamentais na própriaespécie, que poderão inclusive alterar nosso códigogenético e reorientar o processo linear da evoluçãodarwiniana.

Um importante marco simbólico dessa tendência aconteceuno último dia 11 de novembro na Casa das Rosas, uma espéciede pólo aglutinador das principais tendências de vanguardada arte brasileira. Nesse dia, o artista Eduardo Kac implantou no interiorde seu próprio tornozelo um microchip contendo um númerode identificação de nove caracteres e o registrou num bancode dados norte-americano, utilizando a Internet como meio. O microchipé, na verdade, um transponder utilizado na identificaçãoanimal em substituição à antiga marcaçãocom ferro quente. Como tal, ele contém um capacitor e uma bobina,todos lacrados hermeticamente em vidro biocompatível, para evitara rejeição do organismo. O número memorizado no chippode ser recuperado através de um tracker (scannerportátil que gera um sinal de rádio e energiza o microchip,fazendo-o transmitir de volta o seu número inalterável eirrepetível). A implantação do chip no tornozelodo artista tem um sentido simbólico muito preciso, pois era nesselocal que os negros foram marcados a ferro, durante o período daescravidão no Brasil.

A descrição feita acima é bastante simplificadae incompleta. O trabalho abrange ainda uma série de eventos paralelos,relacionados direta ou indiretamente com o implante. Há, em primeirolugar, o espaço físico da Casa das Rosas, convertido temporariamentenuma espécie de quarto de hospital, com instrumental cirúrgicoe um médico para atender a eventuais dificuldades, além deambulância à porta do edifício. Há tambémuma coleção de fotografias nas paredes com as únicasmemórias que restaram da família da avó materna doartista, dizimada na Polônia durante a Segunda Guerra. Háos computadores que permitem acessar o banco de dados nos Estados Unidos,"escanear" o chip por controle remoto através daInternet e disponibilizar, para espectadores situados em qualquer outrolugar do mundo, as imagens do evento através da WWW. Depois do evento,um painel com o raio-X da perna do artista mostrando o microchipimplantado foi acrescentado ao local da ocorrência. E como se issotudo não bastasse, houve ainda a transmissão ao vivo de todaa experiência, através de uma rede comercial de televisão(Canal 21 de São Paulo), além da repercussão na imprensaescrita e no telejornalismo locais antes, durante e depois do evento. Mesmoo artista talvez não tenha sido capaz de prever e dimensionar todasas implicações e conseqüências de sua intervenção.Graças à transmissão televisual e à coberturajornalística, por exemplo, o implante ultrapassou os limites dogueto intelectual e ganhou uma dimensão pública: no dia seguinte,a estranha história do homem que implantou um chip de identificaçãono próprio corpo estava sendo contada nos cafés, nos metrôse nos ambientes de trabalho, por gente que sequer remotamente acompanhaa discussão artística.

A intervenção de Kac toca em pontos difíceis eincômodos da discussão ética, filosófica e científicaa respeito do futuro da humanidade. Um mês antes do evento na Casadas Rosas, a mesma experiência havia sido proibida no Instituto CulturalItaú de São Paulo, durante a exposição Artee Tecnologia, sob a alegação de que a implantaçãode um chip num ser humano poderia trazer problemas legais àinstituição promotora. Nos E.U.A., importantes centros depesquisa de Chicago e Boston solicitaram cópias dos registros emvídeo para analisar a experiência, enquanto a lista de debatesda Wearable Computing discutia intensamente a obra na Internet. O fatode ter despertado polêmica dentro e fora do Brasil constitui o melhorsintoma de que algo importante foi tocado na intervençãode Kac. Da mesma forma como a colocação da bacia sanitáriaduchampiana no ambiente sagrado do museu desencadeou um número incalculávelde conseqüências para a arte e para as demais manifestaçõesda cultura contemporânea, a implantação de um chipno interior do corpo de um artista deverá reacender o debate sobreos rumos que deverão tomar a arte e a espécie humana no limiardo próximo milênio.

Uma vez que Eduardo Kac é um artista e não um ativistapolítico, o evento que realizou na Casa das Rosas permanece abertoàs mais variadas interpretações. É possíveller o significado do implante como um alerta sobre formas de vigilânciae controle sobre o ser humano que poderão ser adotadas num futuropróximo (a imprensa brasileira explorou muito o evento sobre esseviés interpretativo). Assim, um chip implantado em nossocorpo desde o nascimento poderia ser o nosso único documento deidentidade. Sempre que houvesse necessidade de nos identificarmos, seriamos"escaneados" e imediatamente um banco de dados diria quem somos,que fazemos, que tipos de produtos consumimos, se estamos em débitocom a receita federal, se estamos respondendo a processo criminal ou sesomos foragidos da justiça.

Mas também se pode ler a experiência de Kac numa outraperspectiva, como sintoma de uma mutação biológicaque deverá acontecer proximamente, quando memórias digitaisforem implantadas em nossos corpos para complementar ou substituir as nossaspróprias memórias. Esta última leitura é claramenteautorizada pela associação que faz o artista entre a implantaçãode uma memória numérica em seu próprio corpo e a exposiçãopública de suas memórias familiares, suas memóriasexternas, materializadas sob a forma de velhas fotografias de seus antepassadosremotos. Essas imagens que estranhamente contextualizam o evento, remetema pessoas já mortas e que o artista nem chegou a conhecer, mas queforam responsáveis pela "implantação" emseu corpo dos traços genéticos que ele carrega desde a infânciae que carregará até a morte. No futuro, ainda portaremosesses traços, ou poderemos substituí-los inteiramente poroutros artificiais ou por memórias implantadas? Seremos ainda negros,brancos, mulatos, índios, brasileiros, poloneses, judeus, mulheres,homens, ou compraremos esses traços numa loja de shopping center?Neste caso, poderemos ainda compor família, raça, nacionalidade?Teremos ainda algum passado, uma história, uma "identidade"a preservar?

Até há pouco tempo, a humanidade era entendida, tantono plano filosófico quanto no nível do senso comum, comoalguma coisa que se contrapunha essencialmente às máquinase às próteses que simulam as funções biológicas.A essência do humano parecia residir ali justamente onde robôfalhava e mostrava seus limites. Mas com a evolução da robótica,o autômato foi progressivamente assumindo competências, talentose até mesmo sensibilidades que supúnhamos específicasde nossa espécie, forçando-nos a um constante deslocamentoe a uma contínua redefinição de nossa humanidade.Mais que isso: o desenvolvimento de interfaces húmidas e biocompatíveisestão viabilizando agora a inserção de elementos eletrônicosdentro de nosso próprio corpo, elementos esses que passam a fazerparte daquilo que chamamos de nós. O evento emblemáticoda Casa das Rosas parece sugerir que o robô, tantas vezes representadona ficção científica como um intruso, um usurpadordo lugar dos homens e das mulheres, no futuro poderá estar dentrode nós, ou seja, poderá ser nós mesmos.


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