Originalmente escrito para a exposição individual de Eduardo Kac realizada na Galeria Laura Marsiaj, Rio de Janeiro, de 25 de abril 25 a 24 de maio, 2015, e publicado no catálogo homônimo.


Eduardo Kac: Early Media Works


Bernardo Mosqueira

A exposição "Early Media Works" reúne um conjunto de trabalhos de Eduardo Kac desenvolvidos entre 1980 e 1994 e reflete um momento de intensificação do interesse do artista pelas novas tecnologias, pelos novos meios de comunicação e pela cultura que com eles emergia. Em 1982, após a famosa "Interversão" na Praia de Ipanema com ações explosivas de diversos tipos naquele que seria o clímax do Movimento de Arte Pornô, Kac foi aos poucos tendo a sensação de que aqueles trabalhos refletiam e se inscreviam em um contexto muito local, brasileiro. Depois daquele ano, entendendo que a nova cultura seria global, Eduardo foi se empenhando cada vez mais na investigação e experimentação dos meios de comunicação. Com tensão utópica semelhante à do Movimento de Arte Pornô que desejava criar um mundo mais livre, Kac passou a acreditar que a sociedade poderia ser reorganizada através do uso livre das tecnologias e que isso traria uma multimidialidade fértil para as relações. Nessa exposição, as obras mais antigas apresentam ainda interesses remanescentes do Movimento de Arte Pornô e os trabalhos mais recentes investigam questões que se tornariam fundamentais para sociedade em que vivemos.


No trabalho "2x3x" de 1982, por exemplo, Kac experimentou a xerografia sobre o próprio logotipo da marca de máquinas fotocopiadoras. Produzindo em sequência reproduções das reproduções, o artista fez com que a imagem parecesse desgastada, deixando evidente uma propriedade importante desse meio: o decaimento da quantidade de informação (nesse caso, qualidade da imagem) a cada reprodução. A ênfase intencional nas qualidades particulares aos meios é uma marca recorrente nos trabalhos de Kac que investigam as mídias. Em "2x3x", esse desgaste da imagem fragilizada é posto em oposição à rigidez do papel milimetrado que vemos através da fotocópia impressa em papel fino. A composição feita com as quatro palavras remete formalmente ainda ao pênis e à vagina. Numa leitura em colunas verticais, podemos ler "xexo rex", um acróstico para afirmar "o sexo é meu rei".
Além da rara composição visual feita com máquina de escrever "Movimento de Esquerda 2", que ostenta um pênis ereto ejaculando em masturbação, outros trabalhos da exposição, como "Kak Post", também estão ligados fortemente ao Movimento de Arte Pornô. "Kak Post" é um projeto não realizado de três selos para correio que fazem alusão indireta a partes do corpo entendidas como eróticas. Na primeira e na terceira imagem, podemos notar respectivamente um seio visto de lado e uma vagina. Na imagem central, lemos um fragmento de palavra: "QU": cu.


Para o trabalho "Vai comer agora ou quer que embrulhe?", Kac se aproveitou do lento escaneador da fotocopiadora para, movendo a imagem original sobre o vidro durante a varredura, criar distorções no resultado. Em mais uma integração de opostos, prática recorrente nos trabalhos de Kac, o artista aproxima a organicidade da imagem deformada com o padrão sequencial do papel utilizado. A imagem original era um desenho de Carlos Zéfiro, que durante os anos 50 e 70 produziu quadrinhos de cunho erótico que parodiavam as revistas femininas e os romances de banca de jornal com suas cenas explícitas de sexo. O título do trabalho, que evoca o espírito explosivo e orgiástico do Movimento de Arte Pornô, faz uma referência jocosa ao papel de embrulho de presentes utilizado para imprimir a fotocópia.


Naquela época, as máquinas copiadoras coloridas eram proibidas pelos governos militares sob a justificativa de que, assim, dificultariam a falsificação de cédulas de dinheiro. A partir dessa limitação técnica oficializada, para criar o trabalho "Que vai fazer?", Eduardo Kac intercalou faixas verticais recortadas de dois desenhos de Zéfiro (uma cena vertical e sua sequência horizontal) em uma mesma fotocópia impressa sobre um papel colorido. A geometria e o pornô, o tema pretensamente vulgar e os campos de cor que remetem à pintura, e a impressão barata para um trabalho elaborado são alguns dos pares de universos opostos aproximados por essa obra.
A crítica à cultura e o desejo por um mundo mais livre, já presentes no Movimento de Arte Pornô, também são características de trabalhos como "Cartografia Vertical" em que o artista escreve "Descer e Subir Não Há Onde Ir" com uma sintaxe que reproduz a diversão limitada das crianças da época circunscrita aos playgrounds de concreto. A morfologia das letras faz referência aos trepa-trepas, e a formalização do material verbal direciona o olhar para um movimento repetitivo e confinado aos limites do papel.


"Bon Apetit" é uma obra que surge diretamente de um contexto social e econômico de hiperinflação e desabastecimento de alimentos. No centro da imagem, vemos um par de vagens cruzadas sobre um píres, formando um X. Para produzir o trabalho em xerografia, todos os elementos das imagens foram postos ao contrário sobre o vidro da máquina fotocopiadora, o que faz evocar o vazio também no processo – não apenas no resultado. O trabalho, que critica o momento político do país, utiliza as qualidades específicas desse meio para reproduzir a vagem cinza sobre o papel verde, lembrando que nem mesmo a leguminosa que pode ser vista é comestível. Resultado deste mesmo contexto político é o projeto não realizado "Publigrama II", que desesejava escrever de um lado do ônibus a frase "Fale ao motorista somente o indispensável" e do outro "Eu te amo". Ao aproximar as duas frases feitas sob a forma de circulação urbana, o artista desfaz as convenções dos clichês de linguagem e sentencia como verdadeiramente indispensável a criatividade.


Naqueles anos marcados por grande experimentação, Kac desenvolveu também alguns trabalhos híbridos de escrita que exploravam a lógica de um idioma transposto para outro. Tendo tido contato com muitas línguas desde a infância, Kac pode explorar até mesmo a estrutura do hebráico. É o caso do trabalho "Dibuk Joga Víspora na Diáspora" que nos apresenta em cada linha do poema visual uma surpreendente referência à cultura judaica ou ao idioma hebraico. No trabalho "Teudát Zehút", o artista nos apresenta um processo de pensamento de tradução como criação. Não é possível saber precisamente em que sentido acontece a ação, e nos são apresentadas pistas como as expressões "carteira de identidade" e "eu sou do brasil" que tornam a lógica interna ainda menos evidente e que deixam claro que o trabalho trata exatamente de um processo, de um movimento incapturável. Os trabalhos "Quem sabe sim" e "O mar para que terminar" se inspiram na sintaxe visual do Talmude, livro importante para a cultura judaica com comentários sobre as leis, os costumes e a história desse povo.


A obra "Nimbus 7" foi produzida com um aparelho de fax e explorava a duração da transmissão e da impressão como parte do trabalho. O título, presente na primeira fração a sair da máquina, logo despistava quem recebia a mensagem ao apontar simultaneamente com a palavra para algo etéreo ("Nimbus") e com o algarismo para algo preciso ("7"). Depois de algum tempo sem imagens, uma forma muito comprida aparecia lentamente, mas não se concluía como representação de algo reconhecível. A tensão causada pelo recebimento do fax era parte do trabalho – assim como essa forma de comunicação que se dá de um para um. Em "Early Media Works", estão expostas a matriz do fax e uma caixa que protege seu resultado da luz.


No começo dos anos 90, Kac criou dois fax-filmes, usando para cada um todo o comprimento do rolo de papel térmico. Para o trabalho "Elastic Fax 1" ele convidou artistas ao redor do mundo a lhe enviarem imagens por fax. A sequência dos 30 metros de mensagens foi originalmente exposta como uma faixa horizontal, um rolo aberto. O filme final mostra o rolo passando na tela, como se o espectador estivesse caminhando em frente ao fax impresso. Para "Elastic Fax 2", que está na exposição, Kac fez um convite semelhante, mas animou a sequência das imagens recebidas em um único vídeo que se editou coletivamente a partir da ordem de chegada da informação.
Para a construção do trabalho "Conversa", Eduardo Kac usou SSTV (Slow Scan Television, ou televisão de varredura lenta), ou seja, para realizar esta obra, Kac acoplou uma câmera de vídeo ao videofone e o videofone ao cabo telefônico. Seu objetivo era "enviar vídeo" pela linha telefônica como parte de um diálogo visual. Digo "enviar vídeo" entre aspas, pois, se hoje podemos facilmente enviar 30 quadros por segundo tendo a experiência clara de imagem em movimento, com aquela tecnologia podíamos apenas enviar um quadro a cada 8 ou 12 segundos. Dessa forma, no monitor, o que se via eram faixas de imagem de tempos diferentes, como numa espécie de palimpsesto de imagens estáticas sendo aos poucos alteradas. Com esse trabalho, que remonta às suas primeiras obras digitais de 1982, Kac alcançou a telecomunicação e o uso de espaços virtuais antes da web, e desenvolveu algo verdadeiramente imaterial, digital, eletrônico e fundamentalmente ligado a um novo paradigma estético.


Com os trabalhos sobre os novos meios dessa época, podemos perceber que não há um interesse apenas na tecnologia em si, mas nos tipos de laços sociais possibilitados por esses novos mecanismos. É impressionante como obras como os "Elastic Fax" antecipam os sistemas emergentes, base da internet, que são redes de comunicação alimentadas por diversos agentes. Os sistemas emergentes são construídos por projetos com grandes números de agentes que não conhecem individualmente a estrutura inteira, mas que tem a sensação de participar de algo maior. Os trabalhos de Eduardo Kac dessa época, além de anunciarem a convergência dos meios de comunicação, fazem parte da transição ativa entre a era da comunicação analógica e a era da comunicação digital, quando o corpo humano passa a ser parte de uma rede híbrida de carbono e silício.


Há ainda na exposição algumas experiências de poesia e alta tecnologia. Uma delas é a realização inédita de um projeto de quase 30 anos intitulado "Em Copa" que é um neon composto pelas sílabas A, BA, CA e NA que piscam de maneira a formar o sintagma "a babaca bacana acaba na cabana". Outro deles,"Amalgam" faz parte da importante série de holopoemas que se utilizam da tecnologia da holografia para fundar um novo tipo de poesia liberto da bidimensionalidade. Essa nova poesia, que existe num espaço instável, luminoso e imaterial, traz potência à leitura que, nesse caso, acontece na transição entre estados fugazes de sentido. Esse interesse genuíno e esperançoso na experiência do pensamento dinâmico coloca os hologramas de Kac na mesma gênese revolucionária de suas obras da época do Movimento de Arte Pornô e dos inovadores trabalhos do artista com os novos meios.

 


Bernardo Mosqueira: Escritor e curador independente. Membro da Comissão Curatorial da Galeria de Arte IBEU 2011-2015; lecionou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage; participou de residências no Brasil e no exterior; Recebeu o prêmio-residência V::E::R, como crítico/curador, em Terra Una, MG (2011); foi premiado no 1º Laboratório Curatorial da SP-Arte; realiza de forma independente e anualmente o festival de performance Vênus Terra desde 2010.


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