Originalmente publicado em Nada, N. 6, Lisboa, Outubro 2005, pp. 66-83..


Do Poema Holográfico à Arte Transgênica : Entrevista a Eduardo Kac
Por João Urbano e Marta de Menezes


JU

A gravação começa quando a deambulação de Kac sobre a banda desenhada quase chegava ao fim…

 

EK

Foi uma coisa pessoal, no sentido de que havia um prazer muito grande na fruição de vários sistemas sígnicos simultaneamente. Porque eu acho que a gente está falando de uma geração em que já começa a haver, e você vê isso nas gerações mais jovens hoje, uma capacidade de absorver uma grande quantidade de estímulos sensoriais simultaneamente. É claro que isso vem talvez com um certo sacrifício da habilidade de absorver coisas mais lentas.

 

JU

Queres dizer que a cultura popular tornou-se numa preocupação para a alta cultura?

 

EK

Exacto, mas o facto é que a tecnologia afecta a produção da cultura popular, e a cultura popular afecta a sensibilidade da cultura como um todo, de uma maneira ou de outra, isso não é algo que se possa descartar. Então isso, para mim naquele momento, começa com a banda desenhada, com as histórias em quadrinhos, e na literatura eu vou encontrar uma outra forma de prazer mas que não me satisfaz completamente porque eu quero mais, porque é mais limitada de algum modo na sua materialidade plástica, e buscando mais fui aos poucos conhecer um pouco da tradição da poesia visual, que na verdade remonta há vários séculos, daqueles que se interessaram pelo mesmo problema e que em determinados momentos da história, por conjunturas do seu momento, propuseram soluções formais a esse problema. Por exemplo, a Ana Hatherly, que tem um livro maravilhoso que se chama A Experiência do Prodígio, no qual ela recupera o barroco português, como os poetas do barroco português lidaram com esse mesmo problema, o verso ropálico, o anagrama, o labirinto, enfim, inventaram formas de plasticidade, de permutação e de construção da palavra no espaço, para expandir os limites da expressão verbal tradicional, no séc. XVI-XVII. Então, na verdade, é um problema que pertence à história da literatura e da cultura como um todo. Sabemos muito bem que no final do século XIX, na França, Mallarmé propõe certas soluções tipográficas e que, depois disso, a geração de Apollinaire, com o Futurismo também, propõem outras soluções… quer dizer, ao longo da história vários grupos de indivíduos lidaram com esses problemas à sua maneira. No Brasil nos anos 50, tanto no Rio como em São Paulo, vários poetas também lidaram com esses problemas. Também em Portugal nos anos 50, quando Ana Hatherly começa, depois nos anos 60, quer dizer, isso não é uma coisa que está circunscrita ao Brasil dos anos 50, é um problema inerente à história da literatura e que uma solução formal de um grupo num determinado momento histórico, não é suficiente para dar conta do interesse e da complexidade do fascínio que exerce. Então, na verdade, o interesse é pela tradição num todo, sem privilegiar nenhum momento. Eu vou ao museu ver pintura, escultura, você vê como estou aqui comprando a edição do Orpheu, etc., quer dizer, o interesse é pelo fenómeno plástico verbal como um todo.

 

JU

Mas já agora eu gostava que te situasses em relação à própria tradição da vanguarda brasileira no pós-guerra, porque tu vais aparecer nos anos 80 e de algum modo entras em ruptura com os poetas mais velhos da poesia concreta, que recusaram as tuas propostas, é verdade ou não? Quando te faço esta pergunta é porque, por exemplo, a força dessa vanguarda no Brasil é incomparável à força que teve uma Ana Hatherly, um Mello e Castro, etc., por aqui, que não passaram de um fenómeno quase parasitário, quase marginal, enquanto que no Brasil não, foi um fenómeno central na cultura brasileira.

 

EK

Sim, na verdade nos anos 50 ocorre uma convergência de três vectores no campo da poesia. Antes, nas artes plásticas, em São Paulo houve um impacto muito grande da presença de Max Bill na primeira bienal de São Paulo. Estamos em 1951 e houve um impacto muito grande porque o Max Bill apresenta uma obra que, na verdade, é uma fita de Möebius e que é uma escultura já emblemática da arte concreta que ele havia articulado, e aquilo causa um impacto muito grande, mas é um impacto para o qual o Brasil já estava preparado, em parte pela presença da Vieira da Silva nos anos 40 no Rio de Janeiro, porque ainda havia uma noção muito tradicional…. Deixa eu voltar um pouco no tempo: houve o movimento modernista com a Tarsila do Amaral nos anos 20 em que há, pela primeira vez realmente, uma contribuição genuinamente brasileira para a história da arte que é a antropofagia, que é uma pintura que se apropria de uma maneira muito refinada de uma, talvez, falta de estruturação racional como se encontrava, talvez, no cubismo. Ou seja, é uma redescoberta das possibilidades do Brasil como matéria plástica, a pintura antropofágica. E é realmente uma coisa nova. Mas depois, nos anos 30, como ocorre no mundo inteiro, com todos os problemas políticos, etc., as novas gerações se preocupam menos com os aspectos formais e mais com aspectos sociais, e há mesmo um certo abandono das investigações plásticas propriamente ditas, no sentido da invenção formal. No Brasil, a grande exceção é o pioneiro e inovador Flávio de Carvalho, que chegou a participar do movimento Antropofágico e depois seguiu brilhante caminho próprio. A guerra também influenciou, embora na Argentina, nos anos 40, haja uma arrancada formal muito inovadora com o movimento Madi, então na verdade não se justifica pela guerra, mas é um facto plástico de que nos anos 40, no Brasil, não houve o emergir de algo novo. A Vieira da Silva expõe e traz um vocabulário plástico novo e as novas gerações, de certa maneira, admitindo isso ou não, começam a ser expostas a isso. Então, em 51, quando Max Bill apresenta essa obra, é um momento decisivo porque é claro que as ideias da arte concreta já estavam a circular no Brasil. Waldemar Cordeiro e outros, no final dos anos 40, por conta dessa informação que chega, conhecia-se a obra de Moholy-Nagy e é claro do construtivismo russo, conhecia-se isso tudo, mas finalmente há um momento em que se dá a virada e a nova geração lança então a arte concreta brasileira. Há o embate contra os críticos mais tradicionais e no campo literário você tem três vectores: você tem, em São Paulo, um grupo; você tem, vindo do Maranhão, um Ferreira Gullar, que faz uma poesia de origem surrealista mas na exploração mágica da palavra, assim como, por exemplo, Vicente Huidobro em Altazor. Altazor começa com uma dicção mais linear e no final é uma explosão absoluta. A luta corporal do Ferreira Gullar é a mesma coisa, começa com uma linguagem mais surrealista mas a dimensão mágica, que começa a se desconectar do mundo real, adquire tal poder que se esfacela a linguagem no fim do livro. E, de outro lado, vem de Cuiabá, o Wlademir Dias-Pino que trouxe, já de Cuiabá, o livro em que núcleos de aglutinação verbal são conectados por linhas que, por um lado, visualizam a sintaxe, são os elos, e por outro, permitem caminhos de leitura como se fossem verdadeiros percursos. Então você tem três vertentes, uma que vai buscar uma limpeza bauhausiana, que é o grupo de São Paulo, uma que vai buscar uma dimensão mais mágica que esfacela a linguagem, quase de impenetrável leitura, e uma terceira que é propriamente visual e que já começa a visualizar para além do tipográfico que é o fundamental do Dias Pino, é a poesia num domínio não-tipográfico. O Wlademir Dias-Pino continua a desenvolver isso, continua a desenvolver uma poesia que caminha cada vez mais para além do tipográfico e o Ferreira Gullar vai fazer O formigueiro que esfacela ainda mais a linguagem, em pequenos núcleos, que são as formigas. O grupo de São Paulo vai fazer uma poesia cada vez mais limpa, com caixa baixa, letras não-adornadas e construções geométricas, etc. Eles vão avançando nessa sua visão, eventualmente há uma certa contaminação mútua, que nunca é admitida publicamente e como é natural nos grupos há um momento em que o trabalho em conjunto se torna impossível para eles. Enquanto isso, o grupo de São Paulo continua a desenvolver uma poesia propriamente concreta, o Ferreira Gullar em companhia de Hélio Oiticica, Lygia Clark, etc., vão dar uma guinada mais fenomenológica em que a interacção da palavra com o objecto vai encontrar na interactividade o potencial sintáctico, ou seja, parte da carga semântica do poema é transferida para o acto de leitura que é interactivo. Por exemplo, o Ferreira Gullar tem um poema, que está aqui no meu livro “Luz & Letra” também, que é um objecto que você levanta e ali está a palavra “Lembra”, então é o momento da descoberta e a lembrança que fica no momento de cobrir novamente. E, então, vai fundar o movimento neo-concreto, que é uma ruptura com essa estruturação e que vai buscar no sensorial e no fenomenológico uma nova síntese. Enquanto isso, o Wlademir, levando mais adiante ainda o aspecto não-verbal, inter-semiótico, vai fundar um outro movimento que é o poema-processo, então há uma forquilha que se abre, uma bifurcação, uma “trifurcação”, se é que se pode cunhar o termo, que se abre na poesia brasileira nos anos 50-60. E muito do que se vai fazer depois em parte está ligado a isso. Particularmente nos anos 60 há o impacto internacional da contra-cultura. Nos anos 60-70, então, a poesia brasileira continua a alimentar-se dessas possibilidades experimentais, ao mesmo tempo que com elementos da contra-cultura: a presença da cultura popular, a recusa de uma dicção altamente estruturada, uma valorização do coloquial, uma poesia mais ligada ao experiencial no sentido de que os poetas levavam letras para espaços públicos, que está mais ligada à ideia do poema-processo, que é processual, então começa a haver um enriquecimento maior nesse sentido. Com a música popular também, etc. O poema-processo vai-se apropriar muito da linguagem dos quadrinhos, da banda desenhada. E há um momento político muito sério, com a ditadura, e o poema-processo então, nesse momento, abre mão da palavra, total e completamente. O poema já não mais precisa da palavra. O que se torna muito interessante porque, no momento em que a palavra é proibida, o poeta continua a criar o poema sem a palavra, que é o efectivo da poesia visual do Brasil, é o nascedor radical em que o que fica é o signo e a sintaxe e as possibilidades de leitura na ausência total e absoluta da palavra. Bom, eu tinha absorvido, não só esse contexto, dos anos 50, 60 e 70 mas também Apollinaire, o barroco português, enfim, todo um universo de criação plástica, e é claro a banda-desenhada que já era uma paixão desde a infância. E então colocava-se para um jovem poeta o seguinte problema: e agora? Mas o que quer dizer esse “e agora?” Esse “e agora?” quer dizer o seguinte: me encontro num outro momento histórico e cultural, surge agora um novo instrumento no planeta, que não existia antes, que está a modificar a maneira de se pensar a arte e a literatura, que está a contribuir para novas formas de organização social, que é o computador pessoal. É claro que o computador já existia mas o que o computador pessoal faz é, não só permitir que o artista e o poeta criem com esse instrumento mas que o leitor leia com esse instrumento. No momento em que o computador se converte em instrumento de leitura, não só de produção, isso modifica total e completamente a possibilidade de criação literária e plástica. Não só isso, mas o computador portátil é um instrumento de síntese das artes. Você simultaneamente pode integrar som, texto, imagem, movimento, interactividade e outras possibilidades, programação, etc. De um lado isso, de outro, começava a questionar-me acerca de qual será o caminho futuro da poesia e das artes, mas naquele momento ainda muito particularmente a poesia. O outro factor era o surgimento das redes globais digitais de comunicação, porque elas permitiam pensar o espaço e o tempo de uma outra maneira, por conta da sua interconectividade e a síntese das duas coisas, uma vez que esse estúdio, esse atelier portátil que sintetizava todas as artes se integrava nessa rede digital, ele não era mais apenas um atelier mas era uma janela que permitia a integração nesse universo, e uma janela para o outro. Então eu me perguntava, se toda essa carga, toda essa trajectória literária é a poesia da galáxia de Guttenberg, qual será a poesia que ainda está por se fazer, desse universo digital, global, interconectado?... Era essa poesia que eu queria fazer e que não havia sido feita, por uma questão de contingências históricas. Obviamente não era uma poesia tipográfica, não era uma poesia do papel, não era uma poesia que buscava, na madeira, cancelar o papel porque o papel ainda era a referência. Ela não poderia ser mais uma poesia que desmaterializava, ela tinha que ser uma poesia já nascida imaterial, concebida neste universo imaterial da informação. Então eu olhei de um lado e vi a trajectória tipográfica e, no pólo oposto, o transcender do universo tipográfico na materialização plástica da madeira, do vidro, dos objectos. E eu estava seguro de que não era nem um caminho nem o outro, mesmo porque já haviam sido trilhados, esses caminhos, e representavam outro universo simbólico. Olhando de um lado a página, de outro o objecto, decidi que a poesia que ia desenvolver teria que nem estar num lugar nem no outro. Como é que poderia criar uma poesia que não existia mais no papel mas que também não se materializava no objecto? Ela teria que existir no espaço vazio, no espaço imaterial, o espaço que o leitor ocupa. Porque eu temia que a poesia na tela do computador poderia estar muito ligada ainda ao universo do papel. E então eu inventei a ideia de uma poesia que não teria a rigidez plástica e formal da palavra tipográfica ou da palavra materializada. Ela teria que ser cambiável, fluida, ela teria que se transformar, ela não poderia ter borda, não poderia ter uma linha que separa a letra da página, ela não poderia ter o contorno que você poderia segurar como uma letra de madeira, ela teria que aparecer e desaparecer, o acto de leitura teria que modificar o texto por causa de uma incerteza e de uma instabilidade informacional da palavra-imagem no tempo-espaço. Pensava tudo isso mas é claro que isso é um sonho. Como é que você vai criar uma poesia dessa maneira? Foi quando percebi que havia um instrumental tecnológico que poderia permitir-me criar essa poesia. E foi aí então que fui buscar a holografia. E comecei, propondo a poesia holográfica e realizando o meu primeiro poema holográfico em 83, com grandes custos e grandes dificuldades, mas realizei o meu primeiro poema holográfico que se chama Holo/Olho e que hoje se encontra na colecção da Universidade de Essex, na Inglaterra. Bom, houve uma grande resistência de toda a geração anterior a esse tipo de poesia porque esta realidade informacional, global, digital com a qual eu me identificava, não fazia parte da cultura brasileira. Aquilo ainda não fazia parte da realidade ordinária, mas uma poesia como essa não tinha como função cantar a transformação, ela tinha como função realizar a transformação, ela não era uma poesia de representar um processo já ocorrido, ela era uma poesia de realizar esse processo. E é claro que isso foi desconfortável no sentido de que como a tecnologia é, num certo sentido por um ranço ainda do período da ditadura, muito identificada com a presença americana, a presença de imposição de valores, etc., que obviamente você como artista e poeta tenta subverter completamente, tanto é que você vê, por exemplo, na Tropicália de Gilberto Gil e Caetano, há uma música do Gilberto Gil dos anos 60 em que ele fala que o computador é o cérebro electrónico e que aquilo era desumanizador, um instrumental de desumanização, etc., e se esquece muito rapidamente que o lápis foi uma tecnologia e se esquece muito rapidamente que a própria tecnologia usada para gravar essa música era avançada, era estereofónica.

 

JU

E podias dar uma ideia mais precisa da holografia?

 

EK

Bom, a holografia propriamente dita é muito simplesmente uma tecnologia que a princípio capta a frente de onda reflectida por um objecto, a luz reflectida por um objecto, e ela capta não só as variações de intensidade como faz a fotografia, porque a fotografia só capta isso, ela capta se é claro ou escuro, e mesmo quando há o registo cromático essencialmente você tem a variação de tonalidade, a holografia capta como as ondas se estão comportando no espaço. É por isso que quando ela recria a imagem, ela reproduz o comportamento das ondas no espaço e você vê o objecto tridimensional. Mas isso não me interessava, pela mesma razão que trabalhar na tela não me interessava, porque a tela embora pudesse ter o movimento controlado, cinemático que a página não tem, a tela ainda é essencialmente uma página, num determinado momento você está a contemplar uma representação bidimensional ainda que depois ela se suceda. Então o aspecto tridimensional da holografia não me interessava, porque a holografia como a tela poderia funcionar, se usada da maneira como ela foi concebida, de uma maneira muito próxima ao poema tridimensional, o que essencialmente seria uma mímese. Então o que fui fazer na holografia foi trabalhar o holograma não como um espaço tridimensional, mas simplesmente trabalhar o holograma como um meio de armazenamento de informação. Porque o holograma, ao contrário de uma fita sonora, ou de um dispositivo linear, permite uma maneira de armazenar a informação que é total e exclusivamente única à holografia, tanto é que o futuro da memória do computador reside na memória holográfica. Um determinado lugar num holograma pode armazenar várias unidades de informação simultaneamente, basta que o raio incida de um outro ponto de vista para recuperar a informação. Se você tem o raio aqui, tem a informação, e você recupera do outro. Esta polivalência topográfica, por assim dizer, não é do objecto, nem é da página, nem é da fita magnética, nem é do livro, nem é do disco. Porque embora o livro seja um artefacto aleatório, eu posso abrir a página 2 depois da página 30, ainda é um processo linear, condicionado materialmente, etc. Então, a holografia tem outras possibilidades plásticas e semânticas, que normalmente são inúteis para aqueles que usam a holografia como ela é concebida, mas que me pareceram fascinantes. Por exemplo, no meu primeiro holopoema eu exploro o que se chama imagem pseudoscópica, que é na verdade a imagem inversa, é como se você pudesse entrar no espelho e tirar o que está dentro do espelho para fora. O tempo é invertido e então, por exemplo, se eu me visse no espelho eu faço assim e estou vendo aquele lado e então é uma lógica contrária e isso você pode exteriorizar no holograma. E, no espaço, se me olho no espelho vejo a minha imagem convexa e se esse objecto está atrás de mim, no espelho também está atrás de mim. Na imagem pseudoscópica não apenas o vector temporal é reverso mas como o vector espacial também é reverso, é uma imagem totalmente oposta. Isso é um exemplo, o outro exemplo é que no holograma um pequeno fragmento contém a totalidade, então abandona-se a idéia da Gestalt, de que você tem na superfície uma forma unitária, etc., cada ponto tem em si a própria forma toda, de um ponto de vista particular. Ao que é que poderiam corresponder fenómenos particulares da holografia no universo da linguagem?, eram questões que me colocava e que você não pode colocar no papel ou na madeira a não ser metaforicamente. Nunca foi o meu interesse parar no universo metafórico, a metáfora surge no procedimento linguístico para falar do céu, da lua, etc., tudo bem, mas do ponto de vista da realização material da obra o meu interesse foi sempre o de uma realização efectiva e material, uma semiótica material, no sentido de realizar realmente uma ideia. Então o primeiro holopoema opera as duas coisas, ele trabalha com a pseudoscopia, se chama Holo/Olho, é uma visão que é totalmente invertida e cortada. Cortei os hologramas e remontei em imagem pseudoscópica. Então se cria um outro espaço-tempo próprio daquele holopoema, e que não interessaria a ninguém trabalhar dessa maneira para uma outra situação. Já no segundo holopoema, por exemplo, peguei a palavra “abracadabra”, que vem do hebraico Baruch, que é a bênção, que é uma palavra originalmente usada cabalísticamente nos exorcismos de demónios, então os cabalistas iam eliminando a última letra na esperança de que esse processo de redução verbal que resultava não só na última letra mas que depois era a ausência desta última letra e que resultasse na eliminação desse espírito maligno, etc. Então eu peguei, mas não interessado nesse fenómeno, e criei uma estrutura atómica porque a palavra “Abracadabra” e nessa fase brasileira, eu criei tudo em português, a letra “a” aparece no ritmo, ela torna-se um eixo estrutural. Você tem quatro consoantes que são repetidas, eu eliminei a redundância e como essa letra que é a única vogal, é central, eu fiz ela flutuar sozinha no campo central. E fiz com que as consoantes orbitassem, como se fosse um átomo, os eléctrons em redor do átomo, mas, não como uma escultura, veja bem, isso é que é importante entender, não como uma forma tridimensional. A letra “a” é registrada num canal espaço-temporal no holograma, sozinha, entende? Cada consoante é registrada num canal espaço-temporal sozinho, você jamais vê a totalidade de uma vez só, rompendo com a Gestalt. Zonas de visão, rompendo com a Gestalt total e deliberadamente, anulando um dos motores propulsores da poesia experimental dos anos anteriores. Na poesia experimental que precede, o branco da página, à maneira de Mallarmé, é carregado simbolicamente como silêncio, porque a letra em preto é carregada simbolicamente como som, como matéria verbal. No holopoema não há essa polaridade som/silêncio, seria mais no domínio da gramatologia do que num domínio jakobsoniano se você colocar nesses termos, seria mais num domínio gramatológico do que num domínio linguístico tradicional porque, como a minha letra, a minha palavra holográfica não existe no espaço específico que você possa dizer, você pega a página e divide ela em 1, 2, 3, 4, 5, 6, e A, B, C, D, você pode pegar e dizer: a letra X ou a letra V se encontra no eixo, neste ponto, e isso é impossível com a palavra holográfica porque a Marta vai olhar o holopoema e dizer “estou a ver a palavra borboleta” e você diz “bom, eu não estou a ver absolutamente nada”. Você é mais alto do que a Marta, do seu ponto de vista olhando exactamente do mesmo lugar onde ela estava você vai dizer “eu estou a ver a palavra céu”. Então não há constância, e factores do leitor como a altura, que é uma coisa completamente circunstancial, são determinantes. Há um princípio da incerteza que é literalmente trazido para a experiência da leitura, já no domínio da concepção. Não se trata portanto da concepção poética que flagra o resultado do processo no poema. É o processo da concepção, não o resultado do processo, que é dado a perceber ao leitor, a explorar ao leitor, porque se trata da não-concreção, justamente a antítese da concreção do signo, é a criação do signo fluído, não concretizado, imaterial, intangível, de uma leitura, de uma sintaxe perceptual, fluida; você está a ver aquilo, moveu o olho um pouco, já não mais está e o que há ali não é o silêncio que se opõe, é um vazio, um vazio como esse aqui, claro que o vazio é sempre feito de átomos, mas no domínio da percepção não é um uso simbólico do silêncio, a letra pura e simplesmente desapareceu, ela não mergulhou no silêncio, ela desapareceu, ela se dissolveu.

 

MM

O que eu conheço de ti tem mais a ver com biologia. Estou-me a lembrar do Génesis, da mutação da frase, operada pelos espectadores. Quando começaste, em que falaste que trabalhavas não a página, não trabalhavas o material, mas neste aspecto estás a trabalhar na vida. E aí é um outro caminho completamente diferente.

 

EK

O comentário que eu acho importante mencionar tem haver justamente com a noção de tradução, eu acho que talvez seja importante deixar claro que, ao trabalhar com a ideia de tradução, faço-o não acreditando que a tradução seja possível no sentido literal, pelo contrário, o que é interessante é essa impossibilidade, como a linguagem é instável e, efectivamente, a tradução é impossível, ela só é interessante quando você tem a consciência dessa impossibilidade, uma vez tendo conhecimento dessa impossibilidade, ela passa a ser um campo onde você pode exercer a sua imaginação, sabendo que uma utopia de uma tradução literal é impossível de realizar porque cada língua é um material plástico da sua própria natureza. Tendo a consciência de que na verdade a tradução é um processo de produção não de reprodução.

 

JU

Até posso dizer que a ti a semântica te interessa pouco?

 

EK

Não, a semântica é contextual ou circunstancial mas nem por isso ela tem menos valor, existem dois elementos aí: um é o momento em que esse engajamento semântico ocorre, e o outro é a leitura que se faz no tempo daquilo, por exemplo, no caso da poesia holográfica havia um contexto que permitia uma certa leitura daquele material, semanticamente. Uma leitura daquele material que é como disse, a emergência das redes globais digitais, etc. Hoje nós temos outros factores, questões éticas, questões de transformação da vida, o papel do ser humano na evolução de outros seres vivos, e vice-versa, é um contexto, e então podem-se ler os genes e outras obras à luz desse contexto que cria uma possibilidade de leitura semântica. O domínio da preocupação comunicacional é a linguagem humana, a chamada linguagem natural, e eu procuro cancelar a possível pretensão de que a linguagem é capaz de traduzir sentido. Na holopoesia, no momento em que você vê a palavra “garrafa”, a palavra “garrafa” já é a palavra “carro”. Então você mexe o olho um pouquinho e ela já é uma linha, então você vê ela virar uma mancha de cor no espaço, aí você tenta olhar direito e ela desaparece, então essa relação estável entre significante e significado é rompida completamente, porque não é que naquele momento é “carro” e depois é linha. Eu criei um outro signo que é carro, que é linha, que é passagem de “carro” para linha, que é mancha, que é desaparecimento, que é tudo isso simultaneamente e de acordo com diferentes pontos de vista. É uma nova unidade, é uma nova forma de pensar que de certa maneira retorna ao meu fascínio primeiro pela polivalência gráfico-plástica da linha no tempo e espaço, a linha que pode ser palavra, poder ser mancha, pode desaparecer, pode ser cor. Ao anular a estabilidade significante/significado da chamada linguagem natural o que estou na verdade fazendo é um gesto outro, é reconhecer que a linguagem enquanto plasmação de resultado de pensamento é ilusória, porque a linguagem é sempre dialógica. Então vou buscar a realização da experiência dialógica, e aí vou trabalhar com vídeofones, com fax, Xerox (mas em trânsito pela rede), vou trabalhar com outros meios que me permitem a busca das experiências intersubjectivas e dialógicas, vou buscar os meios que me permitem a realização dessas experiências dialógicas, que têm de ser, por necessidade, meios interactivos. E isto para criar experiências efémeras, de intercomunicação entre participantes, comunicações efémeras, intersubjectivas, como o diálogo. O diálogo é tudo. Não é tanto que o diálogo interfere no processo, o processo é o diálogo e o diálogo é a obra (é o próprio acontecimento). O que interessa é o diálogo, na sua imprevisibilidade, na sua intersubjectividade, só que aí já não vou mais usar a palavra e o contexto no qual estou criando essa plataforma estética é o contexto global das redes de comunicação, então interessa trabalhar a distância, interessa criar o drama da distância, o drama plástico da distância, a distância não é um factor aleatório.

 

JU

Mas o que é interessante é que a própria distância captura, cria uma relação particular. É uma presença mas um outro tipo de presença.

 

EK

Exactamente, é um outro tipo de presença que requer um outro tipo de diálogo, um outro tipo de entendimento, um outro tipo de acção plástica, e a distância é ela mesmo um elemento interno da obra. Ela não é uma consequência, não é distância porque a pessoa se encontra lá, a outra pessoa se encontra lá e é com ela que estou realizando essa obra porque a função da obra…

 

JU

De algum modo o contexto alimenta a própria obra...

 

EK

Exactamente, a obra é a rede e o diálogo é o diálogo em rede. E aí eu já vou trabalhar não tanto mais a palavra, embora eu continuasse a desenvolver a poesia holográfica. Fechei o ciclo da poesia holográfica em 93 e comecei a trabalhar com a rede em 85 já. Então as coisas vão meio que evoluindo. Comecei a trabalhar na rede ainda com a palavra, mas plástica, em movimento, em transição…É uma obra distribuída… mas vou rompendo com isso e criando uma obra não mais com a palavra em rede, redes que não eram a Internet, redes que são construídas para que a obra possa existir e dissolvidas uma vez a experiência realizada, justamente porque essa forma de trabalhar cria subjectividades à distância, formas de presença especificas. Fui cunhar então em 86 a noção da “arte da telepresença” tentando ir com ela além dos limites da tela, porque o medo que me ocorria era que o potencial plástico dessa experiência dialógica pudesse ficar, no fundo, reduzido a uma tela rectangular, e toda a lógica da interacção que se baseia muito na experiência fenomenológica do corpo se perdesse. Então passei a inventar corpos e a convidar os participantes a habitar esses corpos, que existiam em espaços sociais inventados também, e criar, assim, novas formas de telepresença, em corpos inventados. Então inventar o corpo deste ser, para o qual você transferia aspectos da sua cognição e sensorialídade, passou a ser um elemento que vou retomar depois no biológico, inventar o corpo. Inventar o corpo envolve decidir se tem ou não sensores, quais tem, onde estão, com o que você apreende, etc. O domínio da telepresença implica novos problemas estéticos, como é esse corpo, qual é o aspecto sensorial desse corpo, qual o interface para esse corpo, como se dá a ligação com a rede, o espaço onde se encontra esse corpo, se há seres vivos nesse espaço, o que já abre para o domínio da comunicação entre espécies. Então todos esses problemas fazem parte desta nova estética da telepresença. Uma exploração da linguagem humana que elimina o vector unidireccional da linguagem. Para a criação de uma arte da intersubjectividade, para a presença do outro num corpo inventado à distância, começo a preocupar-me com a questão, justamente, de você perceber o mundo numa perspectiva que não é a sua, porque você estando num outro corpo tem uma presença inventada, uma presença que não é a sua habitual. E essa ideia de perceber o mundo por uma perspectiva outra me abriu a ideia de uma arte dialógica para modalidades de cognição, de disponibilidade emocional do mundo, que não é humana, e aí em 94, por exemplo, crio uma obra que é o Ensaio sobre o entendimento humano que é título do livro do Locke, crio essa obra que é a minha primeira obra que não é para seres humanos, é uma obra criada para os dispositivos sensoriais e emocionais, no caso, de um pássaro e  de uma planta, na rede, em que é um diálogo sonoro entre o pássaro que está a buscar uma companheira e a planta...

 

JU

O pássaro está um ponto do mundo e a planta está no outro e recebe a informação, recebe o canto.

 

EK

É, recebe o canto e transmite som sem ter aparelho vocálico.E esse som é transmitido electronicamente, pela rede que o pássaro escuta. E isso em aberto, por semanas a fio dá-se essa possibilidade de interacção. O pássaro ouve sons que são compatíveis com o seu universo acústico, que ele pode de facto ouvir.

 

JU

Um dos teus campos exploratórios é o para além da nossa própria capacidade sensorial?

 

EK

É, aí vou trabalhar no Mais escuro que a noite, que é a obra com os morcegos, que é uma banda-sonora outra, é ultra-som. Mas você vê que Ensaio sobre o entendimento humano é uma obra essencialmente não-escópica, uma obra que essencialmente não apela tanto ao domínio visual porque ela não é uma obra para a visão humana, ela é uma obra para o aparato sensorial de dois seres que pertencem a espécies distintas.

 

JU

Estamos a falar de uma planta e de um pássaro?

 

EK

Isso, era um canário. Então, esse interesse pela subjectividade não-humana começou a emergir, a necessidade de criar novos corpos para poder criar novas formas de presença, na rede, tudo isso vai evoluindo e em 97 torna-se num momento decisivo do meu trabalho, porque achava que isso convergia, em última análise, para um trabalho mais directamente envolvido com o processo da vida em que não se trata apenas de uma manifestação da vida mas do próprio processo que leva a essa vida, como no canto, e é claro que o cognitivo e o emocional integram o processo da vida, e como artista começava a interessar-me investigar esse processo também. Então em 97 eu crio duas obras que são decisivas na guinada transgénica: uma se chama A-Positivo e a outra se chama Cápsula do Tempo. A A-Positivo é uma obra na qual eu crio pela primeira vez a noção da biorobótica, mas não como mímese robótica do que é vivo, como sempre a minha preocupação não é mimética. O biorobot é o robot biológico, é um robot que tem elementos biológicos verdadeiros no seu corpo, que são responsáveis por certos aspectos do seu comportamento. De novo, isso não faz parte do nosso universo ordinário, então a obra busca criar essa experiência. O robot biológico do A-Positivo é o seguinte: trata-se de uma obra que é muito especulativa, no entanto ela realiza tudo o que se propõe realizar no universo material. Vou descrever primeiro a obra: é uma obra interactiva, dialógica, que pressupõe um ser humano que vai disponibilizar o seu sangue para o robot por uma interface intravenosa, e ao doar o sangue para o robot que o recebe numa câmara de vidro que se parece um pouco com um coração, há um sensor foto-eléctrico que capta o volume, ele percebe quando é que o volume já ultrapassou um determinado valor, e que não é recomendável que o ser humano doe mais sangue. Dentro desta câmara de vidro há um pequeno objecto metálico que vai emitir uma fagulha, então quando o sangue, já no corpo do robot exteriorizado, atinge um certo nível, essa fagulha é activada e o robot levanta o braço e passa então intravenosamente ao outro braço humano um liquido nutriente para compensar a perda de sangue e enquanto isso está ocorrendo, no “coração” por assim dizer do robot, essa câmara de vidro onde o sangue humano se encontra, essa fagulha, por emitir gás carbónico que entra contacto com o sangue, faz com que o sangue emita ou extraía o oxigénio. Na presença excessiva do gás carbónico as células vão trazendo mais oxigénio, que é o que ocorre no corpo humano. Então a ausência original do oxigénio, que não permitiria que essa chama, que se acende no “coração de vidro” do robot, se mantivesse, é compensada pela liberação do oxigénio do sangue humano que vai sustentar a chama no coração do robot. Isto é um fenómeno factual mas do qual emerge uma metáfora que especula sobre um futuro, que é qual? Particularmente não acredito na ideia de uma consciência maquínica, acho que ela vai sempre ser metafórica, acho que não vai haver uma consciência fenomenológica da máquina, mas penso que o acoplamento do biológico com a máquina origina a presença de alguma terceira coisa que pode assim fazer surgir algo que não sabemos o que vai ser. E essa obra procura abrir essa ideia. E ela é dialógica no limite, porque para mim o dialógico no fundo só ocorre na troca entre dois seres-vivos, e esse robot não é vivo, mas como esse robot incorpora o vivo, ela é dialógica no limite, talvez quase-dialógica. No Time Capsule passa-se o contrário. O Time Capsule traz a máquina para dentro de mim, porque no Time Capsule, eu implanto um microchip, ao vivo na televisão e na rede, que é um microchip de memória e faço isso perante sete fotografias em tom sépia da parte da minha família que foi completamente dizimada pelos nazis na Polónia. Então é uma obra que busca questionar o papel da memória nesta cultura global digital contrapondo essa memória fotográfica, que tem contexto histórico, factores de formação de identidade subjectivos, lentos, graduais, contrastando isso com a memória digital que está na palma da mão e poucos segundos depois está incorporada dentro do corpo, está integrada ao corpo. Então a presença do biológico na máquina e do maquínico do corpo sugerem fluidez, e fluidez da qual eu mesmo não escapo. A primeira experiência do A-Positivo, fui eu mesmo que fiz, mas a obra pressupõe uma interactividade ou convivência com outros, que aceitassem participar, porque afinal, como você fuma mais do que eu, a tua chama provavelmente duraria mais tempo do que a minha, porque você tem mais oxigénio a revelar do que eu tenho. Então no limite, o biológico e o tecnológico já não servem tanto como categorias do pensamento e aí a arte transgénica realiza a eliminação dessa dicotomia, e aí já estamos em 98.

 

JU

De algum modo, então, ao propores quase um manifesto de arte transgénica, no que é que ela se distingue daquilo que já era de algum modo a bio-arte?

 

EK

Bom, nessas duas obras, em 97, eu falava na bio-arte, o termo surge aí nesse momento, porque uma arte biológica, uma bio-arte, etc., efectivamente a dimensão biológica da vida propriamente dita era importante, mas aí era a vida como nós a conhecemos, por isso o biológico, a lógica da vida, o Logos, o conhecimento, o conhecer a vida enquanto tal, mas a arte transgénica não é a vida como nós a conhecemos, ela é a vida como nós a imaginamos, como o artista vai imaginar, primeiro você imagina depois você cria.

 

JU

A comunidade da bio-arte de certa maneira teve algumas reticências em relação à Alba, não foi?

 

EK

O que é importante salientar nesse sentido é que o projecto GFP Bunny, que já está em desenvolvimento desde 2000, data do nascimento da Alba, é uma obra que coloca um problema novo e que é justamente o problema de que a obra não é um objecto de arte em si, mas sim um sujeito de arte. A gente pode falar no uso comum da linguagem que determinado elemento é objecto da nossa atenção no sentido de que nós estamos focalizando nossa atenção sobre aquela entidade, aquele sujeito. Mas, quando você olha uma pintura, uma escultura, qualquer que seja ela, efectivamente há uma unidade material, aquele objecto é inerte, não possui vida própria ou qualquer que seja, é feito de pedra..., a não ser que você seja um animista, mas aí trata-se de uma leitura espiritual que se faz, mas no caso de GFP Bunny o que o artista cria não é um objecto, qualquer que seja ele, o artista cria um sujeito, que tem os seus desejos próprios, fome, cansaço. Esta é a questão central, é conceber o papel do artista já não mais como o de criador de objectos mas como o criador de sujeitos.

 

JU

Diria que no teu espaço comunicacional já havia essa tentação, era o próprio espaço comunicacional que se tornava um novo sujeito diremos. Não era um sujeito animal, natural, vivo, mas era uma nova entidade.

 

EK

Bom, os elementos que me vão levar a isso já estavam lá, não é? A criação de um novo corpo, o engajamento com subjectividades não-humanas, a progressiva dissolução das dicotomias entre o biológico e o tecnológico e assim por diante. Esses elementos já estavam lá, mas eles convergem e se integram na arte transgénica a tal ponto que tudo se torna uma única plataforma estética. Agora, a preocupação dialógica intersubjectiva é fundamental porque, em primeiro lugar, a experiência dialógica não é mais com um sujeito dado, com um outro ser humano ou, por exemplo, com o pássaro. Ela é com um sujeito inventado pelo próprio artista. Então a ideia era de você criar um novo ser vivo e passar a viver a sua vida com esse ser vivo, gerando experiência dialógicas diárias imprevisíveis. Então, a ideia era um pouco essa, era extremar a experiência do dialogismo, e para isso romper com a noção de objecto, criando a noção da obra como sujeito, sujeito de arte, o que eu chamo de ética performativa, que é não a preocupação ética que resulta de uma acção qualquer que ela seja, mas a preocupação ética que já é totalmente parte da obra no momento da sua concepção e realização, o artista desempenha, no sentido de performer, a preocupação ética no desenrolar da obra, e a ética performativa e a experiência dialógica é tanto dos que vão viver com aquele animal, como daqueles que vão participar num debate global sobre aquela experiência, então a Alba não é tão-somente uma obra sobre a qual se possa pensar, mas é uma obra com a qual se pode pensar.

 

JU

Mas há um segundo saldo também nessa obra que é: tem uma tal repercussão comunicacional nos media, que tu te vais apropriar dos próprios media para dentro da obra, o que não tinhas propriamente pré-programado quando iniciaste o próprio processo da Alba.

 

EK

Isso, a ideia do debate era uma ideia fundamental já no começo mas eu esperava um debate que talvez ocorresse numa escala menor, tanto temporal quanto geográfica, talvez entre filósofos, estudiosos, talvez aqueles que se interessam por ética, etc. Entrou nos mass-media e entrou nas escolas, entrou nos debates governamentais e entrou em vários outros terrenos do dia-a-dia das pessoas, entrou em outros terrenos que tornou o debate muito mais interessante e complexo. Outra coisa que eu não esperava era a censura, porque tudo estava acertado, esperava trazer a Alba para casa sem nenhum problema. Tudo estava encaminhado, os papéis com o advogado, então a censura, a multiplicidade da recepção, a escala global, a extensão temporal e geográfica do debate criou uma esfera dialógica absolutamente nova no meu trabalho e, como tudo isso começou a gerar novas narrativas que se tornaram extremamente interessantes, eu percebi que a recepção era o novo material plástico, não era cobertura jornalística. Como dizia Benjamin, a quantidade é uma qualidade, não no sentido de bom ou ruim mas no sentido da quantidade em si mesma. Então a multiplicidade dessa recepção, os seus ritmos, as suas tensões internas, a sua natureza plástica, a sua extensão geográfica e temporal, a sua escala global, tudo isso se constituiu num novo material, então fui-me apropriar da apropriação que os meios de massa fizeram da minha obra e criar um trabalho a partir da recepção como material. A partir disso começa um novo ciclo de recepção de que faço a remixagem. Agora o projecto está numa terceira fase que se chama Rabbit Remix que abriu na galeria Laura Marsiaj no Brasil, e que vai depois para Roma.

 

JU

Nunca mais viste a Alba?

 

EK

Não…

 

JU

Pegando naquilo que tu chamas um sujeito de arte, parece-me que esse sujeito de arte rapidamente mata a arte. O que é que isso quer dizer? Imaginemos que num futuro previsível a arquitectura começa a ser construída também com tecidos vivos, e que se criam casas que são organismos vivos. Se levarmos isso ao extremo, um dia, essa tal casa dirá assim: “mas eu não tenho de ser casa”.

 

EK

Mas isso já acontece, isso já está no manifesto de 98, de que, num mundo em que se destrói, eliminam espécies diariamente, pelo menos uma espécie é extinta por dia no planeta, num mundo em que se elimina uma espécie por dia, quando não mais, um dos papéis que o artista pode exercer é justamente o de contribuir para a biodiversidade, inventando uma espécie por dia, desafiando esse equilíbrio ecológico, porque é claro que aí também há o potencial de novos desequilíbrios ecológicos serem gerados. A tecnologia não é a solução para todos os problemas.

 

JU

E achas que o artista também não tem um carácter predatório? Não se põe nos ombros dos engenheiros e da própria sociedade tecnocapitalista e é a partir daí que olha mais para diante? Se não se alimenta desse próprio dispositivo?

 

EK

O artista está inserido numa economia social, numa rede de relações sociais, sem dúvida, mas o artista em última análise tem um papel subversivo. Ele integra-se nesses espaços mas mina a lógica desses espaços, ele resiste à instrumentalização da vida por ela mesma, a serviço da eliminação da biodiversidade. Tanto é que o artista vai propor a criação de novas formas de vida. Quando a proposta radical do artista for apropriada pelos meios de massa, pela publicidade, o artista terá que se deslocar novamente e ocupar um outro espaço e subverter aquele espaço e isso é uma dinâmica, uma dialéctica.

 

JU

A imagem da Alba parece agora esvoaçar num estandarte num centro chinês de biotecnologia...

 

EK

…há uma espécie de apropriação. Bom, isso é um roubo porque a imagem foi usada, mas aí é a recepção e então podia-me apropriar de coisas desse laboratório ou dessa sequência de imagens e fazer uma outra coisa com isso que seria a minha forma de comentar, que é a parte do Remix. Bom… mas essa ideia da diversidade já está enunciada no manifesto e a noção de sujeito de arte, ela é justamente esse exemplo que você deu da casa porque, veja bem, quando um casal seja ele qualquer decide ter um filho, não importa de que forma, quando um casal toma uma decisão dessas, você poderia dizer, “mas essa é uma decisão arbitrária”. A não ser que você tomasse essa decisão, esse esperma jamais se uniria a esse ovo, é uma decisão, é um exercício do poder último do ser humano determinar a criação de uma situação na qual uma vida vai ser gerada. É um poder máximo, o casal se outorga à função divina de produzir uma nova vida. E, uma mulher loura, de olhos azuis, ao ter como companheiro um homem negro de alta estatura, e vice-versa, estão mutuamente tomando decisões sobre a herança genética desse novo ser vivo, seja essa união por amor, ou pelo que for. Então, há sempre um factor determinante nesse processo de geração da vida porém, uma vez nascida, essa criança, se você for reduzir a existência dessa criança àquela condição arbitrária, àquela decisão original, você está objectificando aquela criança, porque ao nascer, o vector existencial daquela criança é próprio. Cabe a essa criança viver a sua vida e exercer o seu livre-arbítrio. Da mesma maneira, a Alba é criada por um artista, concebida e produzida, trazida ao mundo por um artista, ela nasce no contexto da arte, criada para existir originalmente nesse contexto da arte. O sujeito da arte é o sujeito que, embora seja concebido e nascido, no contexto da arte, ele tem uma subjectividade, enquanto ser vivo, que lhe é própria, que não pode ser reduzida àquele gesto original e que a ele escapa.

 

JU

Gostava que falasses um bocadinho sobre como é que vez o nosso horizonte humano ou pós-humano: será que nós nos vamos transformar noutra coisa, as implicações da biotecnologia, etc., essa tal biotecnodiversidade de que tu também falas.

 

EK

A noção de pós-humano vai inevitavelmente desaparecer porque aquilo que se pensa hoje como pós-humano será, dentro de dez, vinte anos, simplesmente humano. Isso não significa, como eu já digo no fim do manifesto de 98, uma crise ontológica de nenhuma maneira, simplesmente o que se passa é que o genoma humano deixa de ser pensado como uma finalidade, um fim, e sim como um princípio, como um início. Então o que se vai entender como humano simplesmente vai ser mais amplo. Pensa-se hoje o genoma como algo dado, quase um ready-made, o genoma está aí pronto. Mas na verdade não é assim, o genoma foi-se constituindo, ao longo da evolução, plasticamente. Factores externos ao primata foram-se incorporando ao genoma, genes de bactérias, genes de vírus, o que significa dizer que o ser humano sempre foi transgénico e nunca soube disso, só soube agora por causa do mapeameento do genoma humano. O ser humano sempre teve material genético de outros seres. Este conhecimento é uma coisa recente, que se aprendeu agora, e praticamente inexiste reflexão filosófica sobre esse facto, é na arte que essa reflexão se assume. É uma coisa muito nova. Então isso só se descobriu muito recentemente com o genoma humano, há poucos anos atrás.

 

JU

Mas tens um Vilém Flusser, que já falava dessas coisas há muito tempo.

 

EK

No final dos anos 80, o Flusser se pergunta porque é que os cavalos não floresciam à noite, ou não tinham manchas azuis ou vermelhas. Eu só fui descobrir esse texto do Flusser depois de escrever o meu manifesto, mas já havia lido o Flusser, nas suas reflexões sobre a fotografia, nos anos 80. Já tinha uma apreciação pelo seu pensamento, embora eu não conhecesse a sua reflexão directa sobre a biotecnologia, porque na verdade, no meu caso, isso vem daquela trajectória que nós acabamos de conversar. É uma lógica interna.


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