404nOtF0und    ANO 4, VOL 1, N. 42 · julho/2004

ISSN 1676-2916
Publicação do Ciberpesquisa - Centro de Estudos e Pesquisas em Cibercultura

http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/404nOtF0und

Editor: André Lemos
Editor Assistente: Cláudio Manoel



O artigo de Priscila Arantes toca na atualíssima questão do controle e da vigilância na cibercultura. A partir de uma abordagem plural, Priscila vai tratar do "problema do excesso, da transgressão dos limites permitidos, da aspiração àquilo que é divino e sublime, estando portanto além dos limites do entendimento humano."

Priscila Arantes é crítica e pesquisadora em arte e novas mídias e estética digital. Professora de arte digital e estética tecnológica da PUC/SP. Fez parte do corpo de jurados do Festival Internacional de Linguagens Eletrônicas (2003) e faz parte do Conselho técnico e consultivo do Curso de Design e Planejamento de Games da Universidade Anhembi-Morumbi. É pesquisadora no PEPG em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), onde desenvolveu o doutorado Arte e Mídia no Brasil: por uma estética em tempo digital.

Boa leitura,

Os editores.

Corpo e vigilância na sociedade de controle
Priscila Arantes

Na mitologia, o episódio de Prometeu, roubando dos deuses o segredo do fogo para entregá-lo à humanidade, tem sido utilizado para descrever o mundo das técnicas. É a partir do fogo, matéria divina da criação, que Prometeu possibilita que os homens construam suas moradas, regulem suas vidas, aprendam a matemática, o alfabeto, a arte de navegar pelos oceanos, a medicina e as artes.

É necessário, porém, lembrar que existe um outro personagem para o entendimento do mundo das técnicas. Trata-se de Fausto, figura lendária da literatura ocidental, que traz consigo uma visão mais sublime da técnica com poderes quase infinitos.

Apesar de haver mistério em torno de Fausto, ele parece ter vivido na Alemanha no início do século XVI, ganhando a vida como astrólogo e necromante. Por motivos que os estudiosos parecem ignorar, cresceu em torno dele uma lenda fabulosa de milagres . Contada e recontada por artistas e poetas de todo o mundo, foi o Fausto de Goethe, quem consegue melhor expressar e dramatizar as tensões que balançaram a sociedade européia nos anos que antecederam a Revolução Francesa e a Revolução Industrial.

Em Tudo que é sólido desmancha no ar, Marshall Bermam critica a idéia de que Fausto representaria somente a tragédia do desenvolvimento capitalista: um típico homem progresso que faria o mundo em pedaços em nome de uma expansão insaciável, sem se preocupar com os resultados que o avanço tecnológico[1] poderia trazer à natureza e à humanidade. A angústia fáustica se expressaria, também, no desejo de conquistar espiritualmente o universo, de vencer e diluir as fronteiras humanas e até mesmo as barreiras naturais:

“É de observar, também, que o Fausto de Goethe, ao contrário de muito de seus sucessores, especialmente no século XX, não realiza nenhuma fascinante descoberta científica ou tecnológica: seus homens parecem usar as mesmas pás e enxadas que vinham sendo usadas há séculos. A chave de seu êxito é uma organização de trabalho visionária, intensa e sistemática (...) o ponto crucial é não desperdiçar nada nem ninguém, passar por cima de todas as fronteiras: não só a fronteira entre a terra e o mar, não apenas os limites morais tradicionais na exploração do trabalho, mas também o dualismo humano primário do dia e da noite. Todas as barreiras humanas e naturais caem diante da corrida pela produção e construção”.Berman ( 1986:64)

Neste sentido Goethe, para Berman, parece ter restituído a Fausto a dignidade de grande filósofo: de alguém que tem o desejo das revelações dos mistérios da Natureza. Assim é que Fausto aparece na primeira cena, no seu gabinete de estudo, lamentando a inutilidade de todo o saber humano e de tudo o que ele mesmo estudou. O que Fausto deseja para si mesmo é um processo dinâmico de conhecimento que incluiria toda a sorte de experiências humanas “alegria e desgraças juntas, assimilando-as todas ao seu interminável crescimento interior; até mesmo a destruição do próprio eu seria parte integrante do seu desenvolvimento” ( Berman 1986:41).

Já Roger Shattuck em Conhecimento Proibido estabelece paralelos entre a lenda de Fausto e o romance Frankestein, ou o Prometeu moderno (1818) de Mary Shelley que conta a história do Doutor Victor Frankestein que, reunindo pedaços de cadáveres, construiu um monstro ao qual imprimiu a vida:

“nesse livro notável, concebido aos dezenove anos, Mary Shelley assimilou uma ampla gama de mitos clássicos e modernos, de Prometeu ao Satã de Milton e à tabula rasa de Locke. E, mais importante, o tema faustiano da “mordida da serpente” é central em sua obra”. (Shattuck 1998 :88)

A busca do conhecimento além de todos os limites ou melhor, o acesso ao conhecimento proibido - a mordida da serpente como assinala Shattuck- é o motor destas duas obras da história da literatura ocidental. O que se nota é que tanto no romance de Mary Shelley quanto em Fausto de Goethe, há uma preocupação em recusar qualquer limite, mesmo aqueles impostos pela Mãe Natureza:

“Num dos episódios iniciais do segundo volume de Fausto, Mefistófoles entra no laboratório de Wagner, antigo assistente de Fausto, agora pesquisador em genética avançada. Wagner consegue criar em um alambique em ebulição a entidade Homunculus, uma mente humanóide pura, sem corpo material Goethe trata o incidente como uma autoparódia. Um Fausto sem corpo, em miniatura, buscando em uma garrafa a plenitude de seu ser, recitando versos pseudofaustianos. “Desde que existo, devo estar sempre ativo”. Homunculus chama Wagner de “papai” e Mefistófeles de “Senhor Primo” .( Shattuck 1998 :100)

Independente das leituras que podemos fazer de Fausto, ele nos coloca diante do problema do excesso: da transgressão dos limites permitidos, da aspiração àquilo que é divino e sublime, estando portanto além dos limites do entendimento humano.

Não por acaso, para alguns estudiosos, os desenvolvimentos das tecnologias contemporâneas, principalmente aquelas ligadas à vida artificial, à criação de programas computacionais evolutivos e de seres biomecânicos, enfim, todas estas criações ‘ônticas’ assinalariam o fim de uma era prometeica e o início de uma era fáustica.[2]

De fato, se existe algum tema que tem se tornado essencial neste início de século é o estatuto que o corpo humano e a própria vida, nesta confluência com o mundo das tecnologias contemporâneas, vem adquirindo e, obviamente, a produção artística não poderia estar fora deste debate.O que parece estar em jogo pelas poéticas tecnológicas da contemporaneidade não é somente o processo dialógico, interativo, co-autoral e coletivo, possibilitado pelas tecnologias numéricas, mas também esta dimensão ontológica que repensa a natureza do ser humano, do corpo humano e da própria vida.

A performer francesa Orlan, por exemplo, vem, desde 1990, se dispondo a uma série de operações plásticas que têm reconstituído seu corpo e rosto, segundo figuras femininas da história da arte . A intervenção cirúrgica, com anestesias locais, contudo, não é feita a portas fechadas, mas é acompanhada por músicos, cantos e danças, em uma proposta midiática. Esta história, de fato singular, pela sua excentricidade, não é nem um pouco estranha à contemporaneidade. Hoje, com as tecnologias médicas, é possível redesenhar quase que totalmente o corpo humano com cirurgias plásticas, escolhendo o tamanho dos lábios, a cor dos olhos, o tamanho das bochechas.

Outro artista, que vem debatendo esta dimensão ontológica do corpo humano, é o australiano Stelarc, que desenvolve, desde os anos 70, projetos onde o corpo e a tecnologia se confrontam. Para Sterlac, o corpo humano, com suas estruturas não muito eficientes, susceptível às doenças da idade e fadado a uma morte certa e iminente, é totalmente obsoleto, necessitando ser repensado dentro de uma nova configuração. Neste sentido, o artista propõe estratégias para expandir as potencialidades e os limites impostos pelo corpo biológico, não com intervenções cirúrgicas, mas colocando o corpo em interface com próteses robóticas e computadores.

Seu lema the body is obsolete é levado a conseqüências extremas em performances como Fractal Flesh Split Body (1995) quando o artista conectou-se a um circuito de estimulação muscular controlado por um computador. Em outra obra Stelarc coloca uma escultura dentro do estômago. O artista engole um pequeno aparelho, fabricado com material de implante, que passa a funcionar como um ornamento estético. Neste trabalho, é o próprio interior de seu corpo, a obra de arte:

“Como um corpo, não se observa mais a arte, não se age mais como arte, mas se contém arte. O CORPO OCO TORNA-SE UM HOSPEDEIRO, NÃO PARA UM EU OU UMA ALMA, MAS SIMPLESMENTE PARA UMA ESCULTURA” (Stelarc 1997: 57)

Arte biológica, bioarte, arte transgênica, são alguns dos nomes que vêm sendo utilizados para definir uma produção surgida da intersecção com a biologia, deste universo das coisas vivas com o mundo artístico, potencializando a emergência de um novo segmento estético, onde a manipulação da natureza serve de ponto de partida para a criação artística. Dentro desta perspectiva pode-se citar os trabalhos do francês Hubert Duprat que vem, desde os anos 80, utilizando insetos para construir suas “esculturas”. Já o artista George Gessert pode ser considerado um dos pioneiros da arte genética. Utilizando o DNA como forma de arte, ele vem cruzando artificialmente plantas, mais especificamente orquídeas, discutindo as questões estéticas e éticas que envolvem a manipulação genética. Também sobre as questões éticas da manipulação genética é o trabalho de arte transgênica Gênesis (1999) desenvolvido por Eduardo Kac. Neste trabalho o artista brasileiro criou um gene através da tradução de um trecho do velho testamento[3] para o código Morse, e depois para o DNA. Kac então introduziu o gene em bactérias que foram colocadas em placas de petri em uma galeria de arte. Na galeria as placas foram postas sobre uma caixa de luz ultravioleta, controlada por participantes remotos na web. Ao acionar a luz, participantes remotos poderiam causar mutação no código genético das bactérias e, assim, mudar o ‘texto’ contido no corpo das bactérias e, conseqüentemente, o trecho bíblico. Desta forma Kac metaforiza a idéia de que, no mundo contemporâneo, o homem adquire um status demiúrgico, (ou talvez faustico?) podendo alterar as configurações naturais da espécie humana.

No mundo contemporâneo, sob a égide das tecnociências “fausticas”, a vida também pode ser simulada a partir de algorítimos genéticos. Esta, realmente, parece ser a última barreira a ser vencida por Fausto: não somente manipular, mas também criar vidas! Estas propostas, na verdade, refletem o debate e os avanços científicos recentes, principalmente aqueles resultantes do deciframento do DNA. Com a explosão da revolução digital, seguida do Projeto Genoma, os genes humanos passaram a ser comparados por longas fileiras de pura informação digital. Surgiram assim os algorítmicos genéticos, complexas fórmulas matemáticas injetadas pelo artista/biólogo às suas criaturas, cujo comportamento, apesar de ser programado no computador, mimetizam a seleção natural e a reprodução sexual desenvolvendo criaturas à semelhança dos organismos vivos.

Os trabalhos do artista Karl Sims podem ser uma boa introdução ao universo da vida artificial. Em Galápagos, por exemplo, o artista, fazendo uma referência nítida ao pensamento evolucionista darwiano, se utilizou de um software de programação genética para evoluir artificialmente criaturas em computador. Já Ken Rinaldo, em Autopoiésis[4], desenvolve uma instalação com 15 esculturas robóticas de vida artificial. Com articulações cinéticas, estas esculturas podiam desenvolver comportamentos comuns ao grupo, gerados mediante uma rede eletrônica de dispositivos sonoros.

Em harmonia com a visão fáustica da tecnologia, poderíamos também lembrar das pesquisas de Inteligência Artificial que procuram estudar e simular, em máquinas, o modelo do pensamento humano, em uma espécie de referência à imagem do homunculus faustiano. Um dos primeiros esforços, nesta área, parece ter sido desenvolvido por Alan Turing. Através do artigo Computing Machinery and Intelligence, ele introduz o chamado 'Turing Test’ que tinha como objetivo responder a seguinte questão: “pode uma máquina pensar”? O teste tinha a forma de um jogo e era desenvolvido por três participantes : uma máquina, um ser humano e um interrogador que, não vendo nem ouvindo os dois primeiros, teria de determinar quem era quem conversando com eles por meio, por exemplo, de um teletipo.

No painel das poéticas contemporâneas podemos citar Move 36, um trabalho recente de Eduardo Kac que coloca em questão os limites da mente humana e o desenvolvimento da inteligência artificial. O nome do trabalho faz uma referência ao jogo de xadrez desenvolvido em 1997 quando um computador, de nome Deep Blue, derrotou o campeão mundial, Garry Kasparov. Neste trabalho o artista brasileiro traduz, à semelhança Gênesis, palavras em uma sequência de DNA. Mas em Move 36 estas palavras não fazem referência ao trecho bíblico, mas à famosa base do pensamento racionalista cartesiano : Penso, logo existo ( Cogito, ergo sum) . O DNA é, então, introduzido em uma planta que é colocada em um tabuleiro de xadrez exatamente no lugar onde Garry Gasparov tinha sido derrotado pelo Deep Blue:

“a presença do “gene cartesiano” na planta, colocada precisamente no lugar onde o ser humano perdeu para a máquina, revela a tênue barreira entre a humanidade e organismos digitais”[5]

De fato a informática, as telecomunicações e a biotecnologia, hoje aglutinadas sob a denominação de revolução digital, têm contribuído fortemente para a ‘incorporação do corpóreo’ no debate teórico e na produção artística que faz uso de dispositivos tecnológicos.

Bernard Stiegler, por exemplo, assinala uma profunda transformação na natureza da tecnologia contemporânea. Em La Technique et le Temps , realizando uma incursão a grandes pensadores do mundo da técnica tais como Leroi-Gourhan, Bertrand Gille e Gilbert Simondon, inscreve a tecnologia não dentro de uma visão instrumentalista como faz Heidegger, mas dentro de uma visão antropológica e humanista. Para Stiegler, a especificidade da tecnologia contemporânea repousaria na destruição das margens precisas entre o natural e o artificial, atingindo um ponto de ruptura no sentido de que faz explodir a própria ontologia do vivo.

No Manifesto Ciborgue, Donna Haraway desenvolve a idéia de que a utilização de próteses simples, como relógios e óculos, já faz com que sejamos todos ciborgues e não simplesmente humanos. A autora vai ainda mais longe ao dissertar que a criação de ciborgues totais (apenas máquinas) poderia dissolver os problemas da discriminação feminina. É certo que esta visão está carregada de um forte feminismo contudo aponta para a idéia de que o corpo humano esta passando por profundas modificações neste início de século:

“assim meu mito do ciborgue significa fronteiras transgredidas ... as máquinas do século XX tornaram completamente ambígua a diferença entre o natural e o artificial, entre a mente e o corpo, entre aquilo que se autocria e aquilo que é externamente criado (...) nossas máquinas são pertubadoramente vivas e nós mesmos assustadoramente inertes”

Se a idéia do homem ciborgue manifesta e traz à tona esta inter-relação do artificial com o natural, deste rompimento de searas e fronteiras nítidas, por outro lado não se pode deixar de se ter uma postura mais política e ética em relação a estas questões. Sob este aspecto vale a pena resgatar o pensamento de Michel Foucault que, em História da Sexualidade, desenvolve a idéia de que o corpo humano foi o primeiro objeto a ser socializado no sistema capitalista: o corpo humano enquanto força de produção, força de trabalho. Para ele, o controle da sociedade sobre os indivíduos não se operou pela consciência ou pela ideologia, mas no e com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que a sociedade capitalista investiu:

“Agora é sobre a vida e ao longo de todo o seu desenrolar que o poder estabelece seus pontos de fixação; a morte é o limite, o momento que lhe escapa; ela se torna o ponto mais secreto da existência, o mais “privado” (...) este biopoder, sem a menor dúvida, foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pode ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos” (Foucault 1988: 132)

No início do século XXI é fácil notar que as redes de poder estão se tornando cada vez mais intensas. Na transição para a tecnociência fáustica , esse adensamento se acentua com a disseminação de dispositivos de sujeição cada vez mais sofisticados. As conquistas na área da biotecnologia, das tecnociências e na área da medicina têm imensa importância. Não questiono estas conquistas. Mas também não podemos deixar de perceber os processos, cada vez mais intensos, de mercantilização, de manipulação e de vigilância “sem limites” do corpóreo e da vida na contemporaneidade.

Desde o início do sistema capitalista, de acordo com Foulcault, o biopoder “pretendia aumentar a vida, prolongar sua duração, multiplicar suas possibilidades, desviar seus acidentes, ou então compensar suas deficiências”. Atiçada pelos influxos faústicos, nas formas atuais do biopoder, é intensificada essa vontade de aumentar, prolongar, multiplicar a vida, bem como de desviar, compensar, corrigir ou alterar suas “deficiências” agora entendidas como erros digitais fatalmente inscritos nos códigos genéticos, em uma espécie de preconceito genético. Como no filme Gattaca de Andrew Niccol, em que a vida é reduzida a um pacote de genes.

Por outro lado pode-se lembrar da criação e lançamento de chips subcutâneos que, tipo Minority Report, reforçam a idéia da sociedade de controle tal como denunciada por Gilles Deleuze.Para o filósofo francês, estamos passando de uma sociedade disciplinar (como descrita por Foucault) para uma sociedade do controle. A primeira constituia-se de poderes transversais que se disseminaram através das instituições modernas e de suas estratégias específicas de disciplina e confinamento. A segunda, caracteriza-se pela invisibilidade e pelo nomadismo, se expandindo junto às atuais redes de informação:

“As antigas sociedades de soberania manejavam máquinas simples, alavancas, roldanas, relógios; mas as sociedades disciplinares tinham por equipamento máquinas energéticas, com o perigo passivo da entropia e o perigo ativo da sabotagem; as sociedades de controle operam por máquinas de uma terceira espécie, máquinas de informática e computadores, cujo perigo passivo é a interferência e, o ativo, a pirataria e a introdução de vírus” (Deleuze, 1992:223)

Diferentemente dos sistemas de vigilância desenvolvidos nas sociedades disciplinares, tal como enumerados por Foucault, na sociedade de controle, a vigilância parece adquirir formas mais complexas e invisíveis . Ela invade a privacidade alheia a partir, por exemplo, de dispositivos subcutâneos , estabelecendo um controle nomádico e fluído, típico de uma sociedade onde o controle não se estabelece mais em lugares de confinamento, como em prisões e hospitais, mas dentro do próprio corpo humano:

“De fato o transpoder implantável, associado a um sistema de monitoramento por satélite como o GPS (Global Positioning System), permite ao proprietário localizar animais perdidos. Além disso, a vigilância eletrônica de prisioneiros está sendo considerada em muitos países (...) As polícias da Flórida e da Pensilvânia testam um novo dispositivo de monitoramento chamado Pro Tech , que também é um bracelete controlado por satélite e compulsório aos prisioneiros em liberdade condicional ”

Sob este aspecto vale a pena lembrar o trabalho Time Capsule (1997) de Eduardo Kac quando o artista implantou um microchip com um número de identificação em seu tornozelo, registrando-se, através da Internet, em um banco de dados. Apesar de não ser um ativista político esta experiência que, aliás, havia sido proibida pelo Instituto Cultural Itaú sob a alegação de que a implantação de um chip no ser humano poderia trazer problemas legais à instituição promotora, revela os processos de vigilância e controle desenvolvidos pela sociedade contemporânea.

Recentemente a NASA e o governo norte americano vêm desenvolvendo os computadores vestíveis (wearable computers) para auxiliar não somente expedições futuras para o planeta Marte , mas também para a utilização com objetivos militares. Atualmente estes micros vestíveis permitem, por exemplo, que um mecânico se debruce sobre um tanque ou um avião e transmita imagens diretamente para uma sala de comando. Imagina-se que, no futuro próximo, soldados possam transmitir e transitar pelo campo de batalha com imagens de satélite da região e cálculos de precisão balística a um clique em seus uniformes. Aqui, o próprio corpo, se tornará o centro e o nó da informação.

A análise de Foucault, tendo como emblemática a metáfora do Panóptico[6] nos alertou para as formas de poder na sociedade disciplinar, na qual as subjetividades são dominadas por estruturas institucionais baseadas no confinamento e na disciplina a fim de preservar as prerrogativas da lei e da ordem. Hoje, os campos de força nos quais se inserem as subjetividades talvez sejam mais sutis e complexos. Trata-se de uma realidade maquínica e paradoxal que, se por um lado faz acordar os desejos fáusticos rumo ao conhecimento proibido , por outro esta sujeita a uma lógica de controle cada vez mais intensa e complexa que invade o corpo humano e a privacidade alheia.

Priscila Arantes é crítica e pesquisadora em arte e novas mídias e estética digital. É formada em filosofia pela USP e professora de arte digital e estética tecnológica da PUC/SP. Fez parte do corpo de jurados do Festival Internacional de Linguagens Eletrônicas (2003) e faz parte do Conselho técnico e consultivo do Curso de Design e Planejamento de Games da Universidade Anhembi-Morumbi. É pesquisadora no PEPG em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), onde desenvolveu o doutorado Arte e Mídia no Brasil: por uma estética em tempo digital. Vem publicando uma série de artigos em revistas nacionais e do exterior sobre artemídia e estética digital tais como “As fronteiras entre o design e a arte” in: Faces do design, “Arte Digital é tema de dos encontros em São Paulo” in: Revista Galáxia e “Entre a arte e a tecnologia: o corpo como motor da obra” in: Revista Internacional Designs. Participa de eventos nacionais e do exterior tais como o X Congresso Internacional de Semiótica (Kassel – Alemanha ) e da sessão de painéis contemporâneos do 14 Videobrasil ( Sesc Pompéia- São Paulo).




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[1] O termo tecnologia é empregado neste ensaio no sentido que lhe atribui Lúcia Santaella em seu livro Cultura e artes do pós humano: “ Enquanto a técnica é um saber fazer, cuja natureza intelectual se caracteriza por habilidades que são introjetadas por um indivíduo, a tecnologia inclui a técnica, mas avança além dela. Há tecnologia onde quer que um dispositivo, aparelho ou máquina for capaz de encarnar, fora do corpo humano, um saber técnico, um conhecimento científico acerca de habilidades técnicas específicas”

[2] Esta é , por exemplo, a idéia defendida por Hermínio Martins em seu livro Hegel, Texas e outros ensaios de teoria social.

[3] No Gênesis encontramos a citação “deixe que o homem domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os seres vivos que se movem na terra”.

[4] Autopoiése é um termo criado nos anos 80 pelos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela. Formado de duas raízes gregas (auto: si próprio; poiese: formação) o termo se refere aos processos de autocriação dos sistemas vivos.

[5] A tradução é minha. (ver http://www.ekac.org/move36)

[6] Arlindo Machado em Máquina e Imaginário descreve bem o dispositivo do Panóptico: “Formulado pela primeira vez pelo jurista britânico Jeremy Bentham, ele era originalmente um projeto de prisão modelar , em que os prisioneiros ficariam enclausurados em celas individuais dispostas em círculo ao redor de uma torre central , onde estaria colocado estrategicamente o encarregado da vigilância”


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