Originally published in Visão, Oct. 11, 2001, Lisbon, pp. 136, 138.


Genes de artista

Ana Correia Moutinho


Alba é uma coelhinha especial. Fruto da engenharia genética e da criatividade, foi concebida como uma obra de arte, destinada a deixar o laboratório, onde tantos outros animais transgénicos participam em experiências científicas. À semelhança do que acontece com os avanços da biotecnologia, os novos conceitos gen(est)éticos prometem dar que falar, enquanto o brilho das ferramentas da ciência ilumina os círculos artísticos mais futuristas.

Para um cientista, Alba não tem nada de extraordinário. Nem sequer chega a ser um Frankenstein de última geração. É um animal saudável, que possui apenas a particularidade de brilhar como uma aparição verde, quando é iluminada com luz azul (ver caixa O brilho verde da ciência). O seu criador, Eduardo Kac, 39 anos, é um artista brasileiro, professor no Art Institute de Chicago, nos EUA, e está habituado a explorar as tecnologias contemporâneas: "A diferença entre as velhas tecnologias da pintura e as que eu emprego é que estas permanecem em mudança e ainda não são familiares para a maioria das pessoas." Pois não, e o resultado é que Alba ainda não saiu do laboratório francês onde nasceu.

Nas primeiras obras transgênicas, foram utilizadas bactérias, formas de vida microscópicas, facilmente controladas em laboratório, que não ilustram de modo tão óbvio como um coelho o poder da biotecnologia. Em 1999, Eduardo Kac apresentou Genesis, a sua primeira instalação geneticamente manipulada: um gene sintético, criado pela tradução de uma frase bíblica (Génesis 1, 26) para código Morse e daí para as moléculas que constituem o material genético. Uma vez sintetizado, este "gene de artista" foi introduzido em bactérias expostas no Centro de Arte Contemporânea de Linz, na Áustria. A interactividade com o público, uma constante no trabalho de Kac, funcionava através da Internet) capazes de provocar a mutação do gene artificial no interior das bactérias.

Laboratórios abertos

Para realizar esta experiência, Kac necessitou da colaboração de cientistas.
Aliás, desde os anos 80 que o artista procura na ciência as soluções práticas para os seu probllemas estéticos. Rogério Tenreiro, professor e investigador na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, acredita que "a associação artistítica é uma grande valorização para a própria ciência". Ao seu laboratório já chegaram muitos colegas em busca de ajuda, na área das novas tecnologias moleculares, "mas até hoje todas as solicitações foram científicas". O que não quer dizer que recusasse uma colaboração com fins artísticos: "Este tipo de actividades desperta a atenção das pessoas para os assuntos , obriga-as a reflectir."

Como explica José Bragança de Miranda, professor de Cibercultura na Universidade Nova de Lisboa, "a crítica e a auto-reflexão fazem aqui parte da própria obra". Alba, por exemplo, além de promover o debate, destinava-se a partilhar o ambiente familiar do autor como animal de estimação (a ideia inicial era produzir um cão, mas a ciência ainda não manipula bem este animais). "Esta obra é esteticamente interessante porque revela o oculto da manipulação genética", continua Bragança de Miranda. "E ao exibir a lógica dos cientistas tem também um efeito crítico."

Limites da arte

Portugal já recebeu, por duas vezes, o trabalho de Kac, na ocasião peças interactivas ainda sem manipulações biológicas. Rui Trindade, o comissário da exposição Cyber: A criação na Era Digital, que trouxe, em 1997, uma instalação do artista ao Centro Cultural de Belém, conhece Kac e os circuitc alternativos da arte tecnológica (ver caixa Arte e ciência em festival). "Kac não é um provocador", afirma. "Consciente e criterioso, vai ao cerne das linguagens contemporâneas, o que faz muita falta para alargar a reflexão e mostrar que é possível ter um discurso diferente." Claro que não basta utilizar as ferramentas da ciência e confiar na surpresa ou no bizarro para produzir arte. Já no caso das obras digitais, José Bragança de Miranda alerta para os perigos da presença excessiva da técnica: "Muitos artistas contemporâneos utilizam a interactividade, a ligação em rede ou a multimédia como uma panaceia estética." De modo que o brilho verde dos organismos transgénicos do momento enfrenta não só os argumentos éticos, como também o desgaste da vulgarização. Mas se os cientistas podem elaborar novas cores, já o debate sobre os limites da manipulação genética promete maiores desafios.

"Produzir orquídeas azuis ou coelhos fluorescentes difere apenas no grau de manipulação", lembra Bragança de Miranda. Porém foi o suficiente para pôr em alerta as associações de defesa dos animais e promover manifestações de repúdio sob pretextos éticos.

Entretanto, longe da polémica criativa, multiplicam-se nos laboratórios de todo o mundo criaturas fluorescentes utilizadas para pesquisas que procuram compreender doenças ou melhorar espécies vegetais para a agricultura. Atento a esta matéria-prima, Kac planeou o Oitavo Dia, uma instalação que reúne amibas, plantas, ratinhos e peixes transgénicos vivos sob uma cúpula transparente. Com exibição marcada para Outubro, nos EUA, não se prevê, contudo, que Kac descanse do seu trabalho como criador.


O brilho verde da ciência

Não é um símbolo ecologista nem a cor provém da clorifila vegetal. O brilho verde que caracteriza muitos dos organismos transgénicos produzidos nos laboratórios resulta da expressão artificial de uma proteína identificada, em 1962, numa medusa do Oceano Pacífico.

Nos últimos anos, esta proteína verde fluorescente (conhecida como GFP - green fluorescent protein) tornou-se numa ferramenta essencial para os cientistas, ao funcionar como marcador das alterações genéticas introduzidas nas células. Ao contrário do que acontece na medusa, que emite luz por luminescência (como também fazem os pirilampos), para se observar a fluorescência verde da GFP é preciso iluminar as células com luz ultravioleta ou azul. O efeito produzido é visualmente semelhante ao da luz negra das discotecas que dá à roupa clara um aspecto fantasmagórico. Os artistas, que já se maravilharam com este brilho verde, têm agora à disposição uma maior paleta de cores para as suas obras, uma vez que os cientistas já conseguiram fabricar variantes azuis, amarelas e vermelhas da GFP inicial.


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