Por uma Arte Transgênica
Arlindo Machado
Num artigo publicado originalmente na revista Artforum, Vilém Flusser (1988: 14-15) defende a idéia de que, atualmente, encontra-se reemergindo entre nós a mais antiga concepção de arte já existente, aquela a que os latinos denominavam ars vivendi, a arte da vida, ou o saber como viver. A convergência atual da telemática com a biotecnologia promete, para dentro de algum tempo, que a vida poderá ser programável no seu nível mais fundamental, no nível dos genes que transmitem as informações sobre a vida. Todas as artes, até agora, estiveram limitadas a uma manipulação mais ou menos sofisticada da matéria inanimada, perecível e entrópica. A novidade fabulosa e assustadora é que, a partir de agora, será possível elaborar informação, imprimi-la na matéria viva e fazer com que essa informação se multiplique e se preserve ad infinitum, pelo menos enquanto puder existir vida no planeta. E mais: dentro de pouco tempo, será possível não apenas mimetizar as formas de vida conhecidas, como também criar formas "alternativas" de vida, com sistemas nervosos de outra natureza, inclusive com processos mentais diferentes dos que conhecemos. Uma vez que se torne possível produzir obras vivas, capazes de se multiplicar e de dar origem a novas obras vivas, como continuar a fazer arte com objetos inanimados e perecíveis?
"Dada esta consideração estonteante" -- conclui Flusser (1998: 87) -- "fica claro que não é possível abandonar-se a biotecnologia aos técnicos e que é preciso que artistas participem da aventura. O desafio é óbvio: dispomos atualmente de técnica (arte) capaz não apenas de criar seres vivos novos, mas igualmente formas de vida com processos mentais ("espíritos") novos. Dispomos atualmente de técnica (arte) apta a criar algo até agora inimaginado e inimaginável: um espírito vivo novo. Espírito este que o próprio criador será incapaz de compreender, já que fundado sobre informação genética que não é sua. Isto é tarefa não para biotécnicos abandonados à sua própria disciplina, mas para artistas em colaboração com os laboratórios atualmente estabelecidos".
Este artigo visa examinar o trabalho mais recente do artista brasileiro que está criando os fundamentos de uma ars vivendi e que mais decisivamente tem contribuído para o desenvolvimento de um novo paradigma no campo das artes. Eduardo Kac, um pioneiro na aplicação artística de um amplo leque de novas tecnologias, tem se dedicado mais recentemente à exploração das últimas dimensões de criatividade abertas pelo novo fronte biológico. Como alguns outros que estão tentando apontar novas direções para a arte, ele também tem focado seus últimos trabalhos em questões relacionadas com a nova biologia, a ecologia da bio-tecnosfera, a síntese e a metamorfose da vida, entre outras tantas coisas. Depois da generalização dos happenings, das performances e das instalações, depois de questionar o cubo branco dos museus e saltar para o espaço público, depois de empregar todas as espécies de máquinas e aparatos tecnológicos, depois ainda de discutir a tragédia da condição humana e de colocar a nu os constrangimentos, as segregações, os interditos derivados do sexo, da raça, da origem geográfica e da condição sócio-econômica, depois de ter experimentado tudo isso, um certo número de artistas (Orlan, Stelarc, Antúnez Roca, além de Kac) parece agora reorientar a sua arte para a discussão da nossa própria condição biológica.
Logo após Time Capsule, apresentado na Casa das Rosas, em São Paulo (1997), quando Eduardo Kac implantou no interior de seu próprio corpo um microchip contendo um número de identificação, era natural que o artista fosse gradativamente se aproximando da engenharia genética. A obra discutia as mutações biológicas decorrentes da implantação de memórias digitais e artificiais em nossos corpos e a questão da identidade numa época de mutações genéticas (Machado, 1999: 8-12). Nos últimos anos, o trabalho de Kac radicalizou na direção dos aspectos mais propriamente biológicos de sua indagação e assumiu de modo mais categórico a tarefa de "criar obras vivas", no sentido de que falava Vilém Flusser. O artista chegou mesmo a propor dois novos termos, à falta de outros mais adequados, para identificar a natureza do terreno em que ele estava se movendo: de um lado, a arte biotelemática, uma forma de arte em que processos biológicos estão intrinsecamente associados a sistemas de telecomunicação baseados em computador e, de outro, a arte transgênica, forma de criação artística baseada na utilização de técnicas de engenharia genética para transferência de genes (naturais ou sintéticos) a um organismo vivo, de modo a criar novas formas de vida. Esta última vertente representa o foco privilegiado de suas mais recentes experiências.
Num texto-manifesto publicado originalmente na versão eletrônica da revista Leonardo (Kac, 1998), o artista explica que, daqui para a frente, a tarefa da arte não será mais criar artefatos, peças materiais ou conceituais inanimadas, mas sim criaturas vivas, dotadas elas próprias da capacidade de se reproduzir e de preservar a nova forma nas próximas gerações. Ainda de acordo com o mesmo manifesto, a manipulação da vida está sendo desenvolvida hoje em laboratórios científicos permeados de um racionalismo cego e mantidos pelos interesses exclusivos do capital global, sem consideração dos aspectos éticos, sociais e históricos envolvidos. Em outras palavras, as novas descobertas científicas estão sendo conduzidas por velhas instituições econômicas e políticas na direção de uma apropriação legal (sob a forma de patentes) de plantas e animais transgênicos, células geneticamente modificadas, genes sintéticos e genomas, configurando portanto uma forma de enquadramento da vida como propriedade privada. "O uso da genética em arte -- propõe Kac (1998) -- oferece a oportunidade de uma reflexão em torno desses novos desenvolvimentos, mas de um ponto de vista ético e social." Aí reside justamente a diferença introduzida pela intervenção artística nas pesquisas com biotecnologia: ela traz à luz toda a complexidade e toda a ambiguidade que envolvem os processos de tecnologia genética, evitando portanto que questões relevantes ("tais como a integração doméstica e social de animais transgênicos, a delineação arbitrária do conceito de 'normalização' através de testes, aperfeiçoamentos e terapia genéticos, a discriminação de seguros de vida baseada no resultado de testes genéticos e os sérios perigos da eugenia" -- Kac, 1998) sejam mascaradas no debate público.
Até o momento de redação deste artigo, Kac estava conduzindo duas experiências de arte transgênica. A primeira -- uma obra ainda em progresso e de realização impossível no momento, devido ao estagio atual da pesquisa relativa ao mapeamento dos genomas animais -- se chama GFP K-9, onde GFP é uma abreviatura de Green Fluorescent Protein (Proteina Verde Fluorescente), proteina que é hoje isolada de uma medusa (Aequorea Victoria) da região noroeste do Pacífico e que emite uma luz verde brilhante quando exposta à radiação ultravioleta, enquanto K-9 é uma maneira jocosa de se referir ao adjetivo inglês canine (canino). A idéia que Kac defende junto aos laboratórios de engenharia genética consiste em aplicar essa proteina ao embrião de um cachorro para gerar um animal capaz de responder com emissão de raios verdes a certas condições de iluminação do ambiente. Para justificar sua empreitada, Kac realizou uma exaustiva investigação para provar que a evolução do cão doméstico foi largamente influenciada pela presença humana, desde aproximadamente 15.000 anos atrás, através da adoção seletiva de lobos portadores de características imaturas (processo evolutivo conhecido como neotenia) e mais modernamente através do controle dos acasalamentos. O cão transgênico e fluorescente, o cão que ilumina o ambiente com sua luz verde, o cão "sublime", essa espécie de obra de arte viva, poderia ser apenas mais uma etapa da intervenção do homem na evolução do animal que historicamente sempre esteve mais próximo dele.
A segunda experiência de Kac com arte transgênica -- Genesis -- foi apresentada em 1999, numa primeira versão, junto com imagens e diagramas de GFP K-9, no Ars Electronica, evento que ocorre anualmente em Linz (Áustria) e numa segunda versão, em junho de 2000, no Instituto Itaú Cultural, em São Paulo. Para a materialização dessa proposta, Kac concebeu inicialmente aquilo que ele próprio chamou de "gene de artista", ou seja, um gene sintético, inventado por ele mesmo e não existente na natureza. O gene foi criado através de uma transferência de um trecho em inglês do Velho Testamento para código Morse e depois de código Morse para DNA, de acordo com um princípio de conversão desenvolvido especialmente para esse trabalho (os traços do código Morse representam a timina, os pontos a citosina, o espaço entre as palavras a adenina e o espaço entre as letras a guanina; assim, tem-se os quatro constituintes fundamentais do ácido desoxirribonuclêico ou DNA cujas combinações formam o "alfabeto" ou código genético). A sentença bíblica diz: "Deixe que o homem domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os seres vivos que se movem na terra" (Gênese 1, 28). As escolhas, evidentemente, já estão carregadas de significado e ironia: a sentença bíblica parece autorizar a supremacia humana sobre as outras espécies, inclusive as intervenções da engenharia genética sobre a criação divina; o código Morse, empregado nos primórdios da radiotelegrafia, representa a aurora da idade da informação e da comunicação global.
O gene sintético contendo o texto bíblico é, em seguida, transformado em plasmídeo (anel de DNA extracromossômico, capaz de auto-replicação e presente em grande parte das bactérias) e então introjetado em bacterias Escherichia coli, que o reproduzirá às próximas gerações. As bacterias contendo o gene Genesis apresentam a propriedade de fluorescência ciã (azul esverdeado) quando expostas a radiação ultravioleta e coabitam uma placa de Petri (prato de vidro utilizado para culturas bacteriológicas) com outra colônia de bactérias, não transformadas pelo gene Genesis e dotadas da propriedade de fluorescência amarela quando submetidas à mesma radiação ultravioleta. À medida que as bactérias vão entrando em contato umas com as outras, um processo de transferência conjugal de plasmídeos pode acontecer, produzindo diferentes alterações cromáticas. A combinação das duas espécies de bactérias pode determinar três tipos de resultados: 1) se as bactérias ciãs doarem seu plasmídeo às amarelas (ou vice-versa), teremos o surgimento de bactérias verdes; 2) se nenhuma doação acontecer, as cores individuais serão preservadas; 3) se as bactérias perderem seus respectivos plasmídeos, elas se tornam ocres.
O processo de mutação cromática das bactérias pode se dar naturalmente, através da interação dos seres unicelulares, ou pode ser também ativado e incrementado por decisão humana, através da radiação ultravioleta, que acelera a taxa de mutação. No espaço da galeria onde ocorre a experiência, tanto os visitantes locais como os visitantes remotos (que participam do evento através da Web) podem ativar a radiação ultravioleta, interferindo portanto no processo de mutação e ao mesmo tempo possibilitando visualizar o estágio atual das combinações de ciã, amarelo, verde e ocre. Uma microcâmera apontada para a placa de Petri permite projetar numa grande tela à frente, em tempo real, uma imagem ampliada das combinações cromáticas, imagem esta que, dependendo da interação dos diversos fatores e das intervenções do acaso, pode resultar particularmente bela enquanto resultado visual. O mais importante, porém, é observar como essa instalação singela transforma o ato mais banal do mundo tecnológico -- apertar um botão, seja ele o botão do mouse ou de qualquer outro dispositivo -- num gesto carregado de sentido, pois não se trata mais de fazer aparecer ou desaparecer imagens, textos ou sons, mas de interferir sobre o próprio processo da vida. Em Genesis, Kac nos coloca numa situação de responsabilidade, convidando-nos a refletir sobre as implicações de cada um de nossos gestos.
Mais surpreendente que tudo, no final da exibição pública em Linz, o artista inverteu o processo e transformou novamente o texto bíblico alterado pelas mutações genéticas das bacterias em código Morse, e finalmente em inglês. O resultado é um texto corrompido, ligeiramente desarticulado, mas pleno de possibilidades interpretativas, podendo ser entendido como uma espécie de resposta rebelde da natureza à pretenção divina de designar o homem como o senhor de todas as formas vivas do universo. Eis a mensagem da natureza: "Let aan have dominion over the fish of the sea and over the fowl of the air and over every living thing that ioves ua eon the earth." Conforme observou o próprio artista em seu texto de apresentação do evento (Kac, 1999: 55), "as fronteiras entre a vida baseada em carbono e os dados digitais estão se tornando tão frágeis quanto as membranas das células".
Toda a concepção e materialização do projeto Genesis obteve o apoio logístico do Departamento de Medicina Genética do Illinois Masonic Medical Center, sobretudo na pessoa de seu diretor, o Dr. Charles Strom. À diferença de muitos artistas que hoje tentam promover uma troca de experiências entre arte e ciência, Kac não utiliza os conceitos científicos apenas como referências, citações ou pretextos, a título de inspiração ou metáfora do seu trabalho artístico, mas, pelo contrário, como o alicerce mais fundo de sua criação. Isso implica enfrentar muito seriamente todos os detalhes da démarche científica e buscar o entendimento mais profundo possível da área de conhecimento em que está atuando, embora também, por outro lado, Kac não endosse qualquer visão determinista da genética, baseada na idéia delirante de que o gene encerra o segredo último da vida. A sua meta é sempre a dimensão simbólica da genética e não a sua dimensão simplesmente operacional. A exposição pública do projeto Genesis foi acompanhada ainda de uma peça musical especialmente composta por Peter Gena e gerada ao vivo no espaço de exposição (ao mesmo tempo em que era disponibilizada na Web), cujos parâmetros são derivados da multiplicação bacteriológica da e.colli, da seqüência de DNA do gene Genesis e de algoritmos de mutação genética.
Tanto as bactérias emissoras de luz ciã quanto o cão de pele verde fluorescente estão lançando agora uma luz nova sobre a conturbada discussão do futuro biológico da humanidade e das outras espécies. As formas de vida transgênicas são em geral estigmatizadas pelas suas aparências de seres de laboratório, ainda mais quando imaginamos os interesses escusos (em geral de ordem econômica, mas possivelmente também bélica) que podem estar por detrás dessas experiências. É quase inevitável que as discussões não técnicas envolvendo as biotecnologias resvalem muito facilmente na condenação sumária, um tanto e quanto conservadora, na invocação de cenários de ficção científica apocalíptica, quando não em interditos dogmáticos de natureza religiosa (uma vez que se supõe que a criação de vida é privilégio exclusivo da autoridade divina). O deslocamento dessa discussão para a esfera muito mais experimental e muito menos conformista da arte; a criação, com recursos da engenharia genética, de trabalhos simplesmente belos, em lugar de utilitários ou potencialmente rentáveis do ponto de vista econômico; a recolocação dos produtos geneticamente modificados no espaço "cultural" do museu ou da galeria de arte, ou no ambiente doméstico, onde o animal de estimação, seja ele natural, sintético ou híbrido, deve ser cuidado e amado como tudo o que pertence à esfera do humano, tudo isso pode ajudar a recolocar a discussão pública da genética e dos transgênicos num patamar mais sofisticado de argumentação. Eis porque a obra atual de Kac está possibilitando pensar o desenvolvimento atual da ciência e da tecnologia fora da dicotomia estúpida do bem e do mal, do certo e do errado, mas na direção do enfrentamento de toda a sua complexidade.
Num dos primeiros livros a tratar seriamente do problema do engendramento da vida -- La maîtrise du vivant --, François Dagognet (1988) observa que toda a nossa cultura intelectual, de Aristóteles aos atuais ecologistas, produziu uma sacralização do natural em detrimento do artificial, condenando este último a personificar o mal que se deve combater. No entender de Dagognet, nós não vamos conseguir enfrentar com maturidade o desafio das novas tecnologias biológicas se não nos desvenciliarmos dessa dicotomia simplificante. Os atuais debates sobre os rumos que a engenharia genética deverá imprimir à reinvenção da vida num futuro próximo estão ainda carregados de uma moralidade pseudo-humanista e de um dogmatismo de fundo religioso, nada diferentes, aliás, daqueles que, em outros tempos, tentaram nos privar de bens hoje tão humanizados como a pintura, o livro impresso, a eletricidade, o automóvel, o registro técnico da imagem e do som, a intervenção cirúrgica no interior do corpo, a pílula anticoncepcional e assim por diante. Em contraposição ao moralismo e ao dogma, Dagognet propõe a construção coletiva de uma política da vida, uma biopolítica, que vise o interesse geral, entendendo-se como interesse geral a necessidade de permanência de todas as coisas e seres, portanto não apenas o interesse do homem e muito menos ainda o interesse dos grupos econômicos que atualmente estão confiscando os Estados para impor a sua vontade de domínio. Quiçá possa a arte -- neste caso, a arte pioneira de Eduardo Kac -- servir como o elemento catalizador de uma nova consciência ética, capaz de amparar o homem na tarefa de enfrentar os desafios do milênio que se inicia.
Obras Citadas
Dagognet, François (1988). La maîtrise du vivant. Paris: Hachette.
Flusser, Vilém (1988). "Curie's Children". Artforum 26 (7), March.
Kac, Eduardo (1998). "Transgenic Art". Leonardo Electronic Almanac, vol. 6, n. 11, december. (http://mitpress.mit.edu/e-journals/LEA/).
__________ (1999). "Genesis." In Ars Electronica'99: Spike/Genesis. Oberösterreich: O. K Centrum für Gegenwartskunst.
Machado, Arlindo (1999). "A Microchip Inside the Body". Performance Research, Cardiff, vol. 4, n 2.
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