Luz & Letra
“Luz & Letra - Ensaios de arte, literatura e comunicação”, de Eduardo Kac. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2004.
Carlos Augusto Moreira da Nóbrega
Dentre as dezenas de imagens que figuram o livro Luz & Letra uma delas reverbera sutilmente o tom dessa publicação. Nessa fotografia, registrada no alto do prédio da Embratel do Rio de Janeiro, Eduardo Kac e seu amigo Mario Ramiro, um dos precursores da tele arte no Brasil, fitam o céu. Ao fundo uma antena parabólica aponta para mesma direção contextualizando a cena. O ano é 1986 e o Brasil acabara de lançar seu primeiro satélite ao espaço. O artigo Arte e Satélite, ilustrado com a imagem descrita, nos ajuda a dimensionar o que de fato antevia o artista e teórico Eduardo Kac.
"O Satélite permitirá a emissão de sinais com alta densidade de potência, em uma abrangência em tempo real, concretizando o fenômeno da simultaneidade informativa. Através da comunicação interativa e da supressão absoluta das distâncias, o artista desempenhará sensível papel na telecultura da nova era, ao integrar a Terra e o espaço em uma desconhecida perspectiva ambiental.”
Mesmo que a física contemporânea nos dê provas, de que ao olharmos para o espaço estamos sempre olhando para trás no tempo, já que o que vemos são processos, pequenas quantidades de informação fotônica que viajam até nós, o conteúdo de Luz & Letra nos apresenta o pensamento crítico e analítico de um artista cujo olhar parece sempre apontar para um futuro.
Eduardo Kac, artista brasileiro radicado nos EUA, professor e diretor do Departamento de Arte e Tecnologia do Instituto de Arte de Chicago é um artista visionário. Pioneiro da arte digital desenvolveu a partir da década de oitenta a holopoesia, a arte da telepresença e a arte robótica, alcançando com sua envergadura domínios interdisciplinares que o levaram a produzir inquietantes obras no campo da biotecnologia e da genética. Luz & Letra - Ensaios de Arte, Literatura e Comunicação, livro lançado em 2004 traz de uma compilação de mais de 60 textos escritos pelo artista entre 1982 e 1988, em sua maioria publicados em jornais de grande circulação no Brasil, que nos auxiliam a compreender as bases da arte contemporânea no que tange a criação mediada pelas novas tecnologias informacionais. Estruturado em quatro partes: Artes Plásticas, Tecnologia e comunicação, Literatura e Documentos, o livro é um documento de 439 páginas que apresenta uma década de oitenta criativamente fecunda e interessada no terreno estético-experimental da arte tecnológica.
Um dos pontos relevantes do livro é trazer à luz uma Geração 80 cujas idéias e produções artísticas não se atrelavam à transvanguarda italiana ou ao neo-expressionismo alemão. A geração Brasil High-Tech, cujos expoentes exibiram suas obras em mostra homônima no Rio de Janeiro, é representante de uma linhagem artística engendrada em solo brasileiro, tendo Waldemar Cordeiro como um dos seus precursores. Conforme é analisado no livro as obras dessa geração que contabiliza entre os nomes: Otávio Donaci, Mario Ramiro e Paulo Bruscky, exigem que o espectador se despoje dos conceitos artísticos aos quais se habituou, e que experimente uma nova sensorialidade: perceba volumes imateriais, interaja com ondas eletromagnéticas invisíveis, dialogue com robôs e consulte obras de arte em um banco de dados. São trabalhos que refletem um pensamento original, todavia, ressonante às teorias e produções artística internacionais. Cabe lembrar que nessa mesma década eventos como Electra, exibida no Museé d’art Moderne de la Ville de Paris (83), ARTMEDIA em Salermo, Itália (85) e Electronic Arts Festival of Art and Technology em Linz, Austria (89) demarcavam a cultura da communication art e ampliavam as bases para uma Estética da Comunicação [1].
Apresentado por Abraham Palatnik e prefaciado por Paulo Herkenhof, Luz & Letra traz vários depoimentos, entrevistas e textos sobre poetas e artistas. Alguns nomes como Nam June Paik, Harriet Casdin-Silver, Antoni Muntadas ou a poetisa Ana Hartherly, perfilam ao lado dos brasileiros Reynaldo Jardim, Paulo Brusky, Hudinilson Junior, Mario Ramiro, cujas obras e experiências artísticas são resgatadas por Eduardo Kac
A terceira parte de Luz & Letra é dedicada à poesia experimental brasileira. Essa etapa explicita as bases teóricas dessa arte tendo como horizonte a obra de seus protagonistas. Dos poemas-objeto de Ferreira Gular aos poemas digitais de Erthos Albino de Souza, Kac investiga os desdobramentos de uma produção poética que influenciou significativamente a história da literatura e da arte brasileira. Um outro ponto marcante do livro são os textos do artista sobre sua própria invenção: a Holopoesia. Os vários artigos sobre esse assunto evidenciam o caráter inovador de sua criação. Fica claro que a operação que a Holopoesia propunha não se tratava apenas de levar a poesia para a holografia ou vice-versa, mas sim de provocar no cruzamento dessas duas vertentes o surgimento de uma nova linguagem poética baseada numa sintaxe perceptual.
Luz & Letra é um livro que nos auxilia a compreender, através do panorama hight-tech da década de oitenta e suas reverberações, a dimensão estética da arte tecnológica e suas interfaces. Sendo assim, é indispensável ao olhar que busca conhecer com profundidade o fenômeno da tecnocultura e suas variáveis artísticas. Nesse sentido funciona como um dispositivo que nos auxilia a perceber as simbioses dos campos: arte, ciência e tecnologia, nos preparando para um futuro que se ilumina no aqui e agora.
[1] COSTA, Mario. O sublime tecnológico. São Paulo: Experimento, 1995.
Carlos Augusto Moreira da Nóbrega é bolsista da CAPES para doutoramento no The Planetary Collegium – Plymouth - UK
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