Quoted by Mario Ramiro in: “Gravidade Zero, uma
nova dimensão para o Objeto”, in A Virada do Século XX,
Anna Carboncini, ed., (São Paulo: Paz e Terra/Ed. da Unesp,
1987) pp.107-111.
Reproduced, with images, in: Eduardo Kac, Luz
& Letra. Ensaios de arte, literatura e comunicação
(Rio de Janeiro: Editora
Contra Capa, 2004), pp. 65-74.
O satélite e a obra de arte na era das telecomunicações
Eduardo Kac
O primeiro sistema de telecomunicações via satélite surgiu em
1945, na fantasia do famoso escritor de ficção científica
Arthur C. Clarke, autor de um dos maiores clássicos do gênero:
2001, uma odisséia no espaço. Foi nesse ano que Clarke
publicou um texto visionário, “Extraterrestrial relays”
[“Repetidoras extraterrestres”], na edição de outubro da
revista Wireless World, antecipando o lançamento real dos
satélites artificiais, cujo marco inaugural se deu em 1957,
quando a União Soviética colocou em órbita o seu Sputinik. De
lá para cá, o desenvolvimento tecnológico e a corrida
espacial foram tão acelerados que hoje já há cerca de cem
satélites de telecomunicações a girar em torno da Terra.
Idéias são
intangíveis. Satélites são reais. Depois do rádio, eles são
provavelmente as ferramentas mais importantes na comunicação
do século XX. A importância dos satélites começa agora a se
fazer sentir, embora ainda permaneça um mistério, mesmo para
as pessoas que dependem deles para o trabalho ou o lazer. Por
quê? De um lado, satélites são invisíveis. Quando uma pessoa
faz uma ligação telefônica, não está preocupada se a
conversa será transmitida por cabo, microonda ou satélite,
desde que seja bem realizada. De outro, o custo de operação do
satélite é pulverizado entre tantos usuários que nenhum deles
parece ter direito de propriedade sobre ele. O design, o
lançamento e a manutenção de um satélite estão além dos
recursos de qual quer um, a não ser das grandes corporações
ou instituições públicas, daí as pessoas se sentirem alheias
ao empreendimento e provavelmente admiradas de que alguém possa
entendê-lo (Glatzer 1983).
De fato, a
compreensão total do mecanismo de funcionamento de um engenho
espacial escapa ao conhecimento leigo. Não é difícil
entender, contudo, que os sinais são emitidos das estações
terrestres, amplificados no interior do satélite e recebidos na
Terra em outra estação. Pairando sem gravidade a 36 mil
quilômetros de altura, os satélites soltam diariamente sobre
nossas cabeças um enorme contingente de informações que
abrangem toda a gama de interesses e atividades dos homens.
Notícias, conversas pessoais, novelas, programas educativos,
documentos, anúncios, fenômenos naturais, competições
esportivas, filmes, catástrofes, serviços bancários, música,
conferências, dados digitais, guerras, espetáculos, tudo é
recebido via satélite, em âmbito público ou particular,
nacional ou internacional.
Telecultura, videofone, nova arte
Hoje o uso criativo
das telecomunicações é discutido de duas maneiras: o acesso
dos artistas aos meios de massa do gênero teledifusão
(broadcast) ou teledistribuição (a cabo) – Arte versus Dallas
– de um lado, e as mágicas high tech – tipo Buck Rogers e
Guerra nas Estrelas – do outro. A oposição Arte/ Dallas peca
pela unidirecionalidade do sistema, uma vez que este não é
especificamente interativo ou “comunicativo”. O material flui em
uma direção apenas, do produtor do programa ao telespectador,
elemento passivo que serve aos canais de televisão à medida
que estes possam mensurar e controlar o consumo. Neste caso,
pouco importa o tipo de emissão difundida (Arte = Dallas): a
relação entre as partes permanece a mesma, uma vez que a
hierarquia não é questionada pela simples alteração do tipo
de material transmitido (Adrian X 1984).
O uso do
satélite artificial em arte, portanto, aprofunda os problemas
levantados por outros gêneros de arte telemática. Se a
memória dos computadores introduz as questões do acesso (o
espectador observa apenas as obras que deseja e na ordem que
opta) e do armazenamento (centenas de obras podem ser guardadas
em um disquete), o satélite possibilita ao artista gerar um
fluxo bidirecional de signos em tempo real; em outras palavras,
criar um fato estético que é consumido simultaneamente com a
mesma carga informacional em dois locais distantes, em
decorrência de uma troca e não de uma consulta. A supressão
do espaço (físico) em função do tempo (real) estabelece uma
relação transmaterial entre signos (sinais) e uma percepção
simultânea (instantânea) entre públicos diferentes. Ao
funcionar como videofone (troca de sinais de áudio e vídeo), a
artesat desencadeia novas formas de telecomportamento.
Surpreendentemente,
o avanço tecnológico parece às vezes conduzir a percepção a
um ponto extremo, no qual tangencia um estado mental paralelo ao
real, comumente denominado parapsicológico. É o caso, por
exemplo, do fenômeno estudado por Jung e conhecido como
“sincronicidade de eventos”, o qual encontra um correlato direto
em um interlink por satélite.
Telespaço, teletempo
Na arte
eletrônica, a palavra espaço perde o sentido a ela agregado
pelas correntes mais radicais da vanguarda, do cubismo ao
abstrato-expressionismo, e até mesmo o proposto pelas vertentes
da nova es cultura. Não se trata mais do rígido espaço
pictórico nem do espaço vazio sugerido na ou ao redor da
matéria, e sim de um espaço cósmico que possui relação
dialógica com o espaço informacional, tornado presente pela
holoiconografia e a percepção multidimensional que demanda.
Ao criar
artesat, o artista trabalha o espaço de propagação das ondas
eletromagnéticas, virtualmente integrado pelo processo de
transmissão e recepção mútuas, que não pode ser visualizado
au grand complèt, nem experimentado sensorialmente in loco pelo
espectador, esteja ele no vácuo ou em um dos dois pontos
conectados na superfície terrestre. Ao pressupor a conexão
entre duas regiões distantes do globo, digamos Brasil e Japão,
o artista opera com noções relativas de tempo, pois o fuso
horário deve ser agenciado como um elemento expressivo da obra.
A artesat, do
ponto de vista da pesquisa estética, amplia os limites da
experiência sensorial e do conhecimento humano. O artista high
tech processa um tipo de investigação espacial que não é a
do cientista nem a do ufologista; de ambas, porém, extrai
elementos para a formulação de uma nova gramática e de um
novo vocabulário. O trabalho de especulação se dá no espaço
da imaginação, valendo-se de um novo código expressivo que se
fundamenta em dois links (subida e descida do sinal), cujo
principal agente é o satélite artificial. Estamos diante de
uma “ressemantização” perceptual, pois no espaço livre a
menor distância entre dois pontos não é necessariamente uma
linha reta e as noções de “acima” e de “abaixo” perdem o
sentido diante do desaparecimento dos pontos de referência que
orientam nossos processos mentais.
Também o
nosso conceito de distância se modifica ante a sensação de
proximidade que temos ao contemplar a Lua. Saber que a
distância da Terra ao satélite natural é de 380.000 km e
visualizar fotos da Terra se pondo no horizonte lunar não
apenas substituem o olhar romântico pela consciência cósmica,
como também fundam uma nova escala psicológica. O próprio
sistema solar passa a ser a nossa casa, a nossa referência, e
não mais o homem. A idéia de distância se desfaz diante da
grande incógnita que é a estrutura do universo.
A paixão dos
artistas pelas máquinas voadoras surgiu com os futuristas,
amantes da aventura, da velocidade e das alturas. Foi em 1984,
entretanto, que Ginny Lloyd, artista-residente no centro
espacial de Alamogordo, New Mexico, e Mike Mages, artista e
técnico em foguetes, lançaram, na Califórnia, Leonardo I, o
primeiro foguete-arte de que se tem notícia. A propósito de
Leonardo I, Terrence McMahon, em seu artigo “Suborbital Art”,
defende: “Precisamos de um artista de vanguarda no espaço que
reflita os elementos caóticos e unificados que formam a alma do
cosmo” (McMahon 1985).
O lançamento
do primeiro foguete artístico conduz a outros vôos, como o da
colocação de uma escultura ou poema (satélite artificial
não-utilitário) no campo orbital terrestre ou o do envio de
uma obra de arte holográfica aos confins do universo (visível
apenas quando houver luz incidindo em ângulos exatos), para ser
observada pelos cosmonautas, colonos ou, sabe-se lá, seres
extraterrestres. Refletindo a luz, essas obras chegariam a
espectadores muito distantes como pseudo-estrelas. O artista
norte-americano Arthur Woods, residente na Suiça, já
desenvolveu projetos de esculturas espaciais.
Assim, a
artesat reformula de maneira direta a rigidez das noções que
estruturam nossa consciência. Uma escultura de Henry Moore
possui o mesmo peso em qualquer parte do globo, entretanto o
peso de um corpo no espaço não é o mesmo que na atmosfera,
pois depende da distância do centro da Terra em que se
encontra.
Um artista que
projete a colocação em órbita de uma escultura ou poema
cósmicos deve aplicar, em seu cálculo, a clássica fórmula da
gravitação universal, segundo a qual dois corpos se atraem com
força proporcional ao produto de suas massas e inversamente
proporcional ao quadrado da distância entre eles. Deve fazê-lo
para equacionar a força centrífuga a ser criada pela escultura
ou poema, pois é esta força, produzida pelo giro dos
satélites, que compensará seu peso e os sustentará em
órbita.
Para manter a
escultura ou poema na velocidade correta, o artista deve se
preocupar com a altura de vôo, e não com a massa, pois
satélites de massa diferentes em altitudes idênticas voam à
mesma velocidade: quanto maior a altura de vôo de um satélite,
menor a velocidade para conservá-lo em órbita. Outro aspecto a
ser considerado é que uma obra de arte aeroespacial não
precisa ter linhas aerodinâmicas: no espaço, não há ar e,
conseqüentemente, inexiste atrito. Daí as formas estranhas e
incomuns que são dadas aos satélites. Desafiando nosso sistema
visual que associa a massa ao peso, um corpo celeste artificial
possui um pequeno peso em razão da altura da órbita e da
força centrífuga, bastando uma simples peça de metal para
unir dois elementos com peso superior a uma centena de
toneladas. Na atmosfera terrestre, essa harmonia é impossível,
da mesma maneira que o equilíbrio térmico se mostra inviável,
uma vez que a superfície de um satélite no vazio, por exemplo,
pode oscilar entre mais de 100°C e menos de 50°C negativos.
O espião que veio do vácuo
A Lua é o
espaço-porto mais próximo e as estrelas, uma fonte de energia
barata e lucrativa. Na ausência quase total de gravidade,
conhecida por “microgravidade”, pode-se obter cristais, ligas
metálicas e misturas químicas perfeitas dificilmente obtidas
na Terra. O céu, que já foi um dia o limite, é hoje um rico
filão comercial e industrial. Com o vôo solitário do homem
com a mochila cósmica no espaço, abriu-se uma nova dimensão
existencial para a espécie, rompeu-se o cordão umbilical com o
planeta mãe. Não é em vão que a NASA planeja uma estação
espacial, na qual oito pessoas viverão durante um ou dois anos,
trabalhando em uma oficina de satélites e em um observatório
de astronomia, livres do calor, da poluição e das distorções
causadas pela atmosfera. A vida humana no espaço sai lentamente
do papel e começa a se tornar realidade.
Enquanto isso,
na Terra, a apreensão natural dos sentidos é substituída
pelos sistemas intermediativos. A própria Natureza cedeu lugar
a uma nova paisagem, da qual fazem parte as tecnoimagens e os
novos hardwares, como terminais de videotexto e antenas
parabólicas. Nessa telessociedade, um veículo fundamental como
o satélite propicia ao artista uma nova vivência de uma pouco
experimentada realidade tecnoespacial, ao mêsmo tempo em que
alarga os limites sensoriais ao desempenhar o que lhe cabe nesta
natureza informatizada, ou seja, o papel de agente propulsor do
espírito de um mundo futuro, nos planos tecnocientífico,
sociocultural e político-econômico.
Nos planos
social e político, o uso criativo do satélite artificial
assume importância simbólica (artística) particular. O
controle institucional dos meios de comunicação planetários
é, na verdade, o controle do imaginário coletivo e, portanto,
da consciência social e individual, pois este mecanismo filtra
as palavras, os sons, as imagens e as “sintaxes” a que o grande
público pode ter acesso, impondo uma visão de mundo limitada e
limi- tadora. Contrariamente, o artista usa os mesmos meios de
maneira livre, solta a imaginação (a sua e do público) no
espectro de freqüências empre- gado nas telecomunicações
terrestres e espaciais. Ao exercer domínio sobre hardwares e
sistemas, o artista não só recupera para a arte um pouco da
espontaneidade característica da conversação interpessoal, em
que cada estímulo corresponde a outro, numa reação em cadeia
de improvisos, como também a equilibra com o uso racional e
programático da teletecnologia. Desta harmonia resulta, então,
uma nova experiência, que só pode ser realmente vivenciada no
terreno da arte, que não tem por obrigação comunicar
mensagens fechadas, nem empregar sistemas de maneira ortodoxa.
Outro aspecto
importante é que as grandes descobertas científicas e
inovações tecnológicas são fruto da injeção de verbas
militares, pois os próprios satélites podem atuar como
verdadeiros espiões eletrônicos, ao captar sinais de tropas,
bases de mísseis em construção e demais comunicações
secretas em circulação pela estratosfera. Paira no ar,
portanto, a ameaça de uma hecatombe sideral e o uso artístico
dos satélites artificiais reforça seu caráter pacífico, como
um sinal lançado ao infinito em defesa da vida.
Gigahertz à estratosfera
O artista
propõe situações qualitativamente novas entre arte, hardwares
e sistemas. Cria um vínculo que produz o “estético”, no
instante em que o improvável se converte em um elo acausal de
situações possíveis. Assim, a artesat afirma o que possui de
específico e irredutível em relação às artes
videográficas, performáticas e televisivas. A fruição do
estado estético não converge para a apreensão do objeto,
mesmo porque a artesat não tem por finalidade a produção de
nenhum tipo de artefato. Essa fruição se dá, à diferença de
outras estéticas não-objetais, como a “arte conceitual”, no
emprego da lógica (sintaxe) dos sistemas de telecomunicação,
que são deslocados de seu contexto social para uma rede
individualizada que enfatiza sua própria estrutura.
Assim como Mozart
dominou com maestria o recém-inventado clarinete, o artista que
trabalha com satélite deve compor sua arte de acordo com
determinadas condições físicas e gramaticais. A artesat, no
sentido superior, não é apenas a transmissão de sinfonias e
óperas para outras regiões. Ela deve saber como atingir uma
conexão em mão dupla entre pontos opostos da Terra; como dar
uma estrutura conversacional à arte; como controlar diferenças
no tempo; como jogar com improviso, indeterminação, ecos,
feedbacks e espaços vazios; e como operar, instantaneamente,
com preconceitos e diferenças culturais existentes entre
várias nações. A artesat deve empregar esses elementos,
enfraquecendo ou reforçando-os, na criação de uma sinfonia
multiespacial, multitemporal (Paik 1984).
A verdadeira
arte sempre redefine seus parâmetros, coloca em xeque seus
estatutos, ultrapassa barreiras historicizadas e códigos
assimilados. O uso criativo do satélite artificial ou artesat
proporciona a projeção da subjetividade interpessoal sobre o
complexo tecnológico, em contraste com a imposição da
objetividade que a paisagem tecnotrônica exerce sobre o homem e
as categorias do seu pensamento. O que está em jogo, na
verdade, é a revelação do significado do humano no contexto
eletrônico da nova sociedade telematizada. Assim, palavras,
imagens e ações envolvidas em uma obra de artesat visam não
à simples troca informacional entre dois emissores /
receptores, e sim à expressão dessa troca. Na arte e na vida,
estamos em sintonia com o desconhecido. Assim na Terra, como no
céu.
Referências
bibliográficas
ADRIAN X,
Robert (1984) “Die Kunst der Kommunikation / Communicating /
L’art de communiquer”. Em: Art + Telecommunication,
Western Front, Canada & Blix, Áustria.
GLATZER, Hal.
(1983) The birds of Babel: satellites for a human world.
Indianapolis: Howard W. Sams & Co.
McMAHON,
Terence. (1985) “Suborbital art”, Light works, no 17,
Michigan.
PAIK, Nam
June. (1984) “Satelliet/Kunst/Art/Satellite”. Em: Het
Lumineuze Beeld / The Luminous Image. Amsterdam: Stedelijk
Museum.