Folha de São Paulo, 04/07/200



Estética transgênica
------------------------------------------------------------------------
Pioneiro na arte com manipulação genética, brasileiro radicado nos EUA Eduardo Kac vem a SP

CASSIANO ELEK MACHADO
da Folha de S.Paulo

Quando tinha sete anos, Eduardo Kac leu um gibi no qual um vilão criava uma réplica holográfica gigante de si mesmo para combater o super-herói. Era 1969 e o garotinho não tinha muita idéia do que era um holograma.
Mas a alegoria da revistinha entrou em sua mente com tanto embalo que acabou por se transformar em uma sombra do seu futuro.

Foi pela holografia que esse artista carioca penetrou naquilo que é mais próximo do ambiente de ficção científica que ele leu na surrada edição de "Superboy", cuidadosamente guardada desde a infância.

Em 1983 já era um dos primeiros do mundo a fazer arte holográfica, no caso seus "holopoemas". Foi apenas o primeiro pioneirismo. Pouco depois começou a desenvolver a telepresença artística, que permitia que alguém no Rio de Janeiro controlasse movimentos de um robô nos Estados Unidos.

E é de lá, dos EUA, onde vive desde 1989, que Kac vem controlando o pioneirismo que faz holografia parecer coisa do século passado.

Aos 40 anos, o diretor do departamento de arte e tecnologia e de holografia do Instituto de Arte de Chicago, uma das principais escolas artísticas do mundo, agora deu para criar com vida.

Kac, ou 026109532, número gravado em um microchip que ele mesmo implantou em seu tornozelo esquerdo, na performance "Cápsula do Tempo", de 1997, é um dos pais da chamada arte transgênica, no qual os antigos pincéis, tintas e papéis são substituídos por sofisticadas ferramentas da biologia molecular.

Até aqui, sua "Monalisa" é o trabalho "GFP Bunny", responsável pela criação do simpático animal fluorescente da foto acima.

Tema de debates em todo o mundo, Alba, a coelhinha, vira agora objeto de discussões em São Paulo. A futurista comedora de cenouras é um dos temas de uma palestra que Kac faz no evento Emoção Art.ficial, que o Itaú Cultural promove em agosto.

Na conferência, o artista discute toda a sua obra (fartamente documentada no site www.ekac.org), que ele classifica como um "laboratório social" ("É experimentar no presente situações que se tornarão corriqueiras no futuro").
Na entrevista a seguir, Kac adianta mais uma vez o futuro e fala sobre os temas que discutirá por aqui. Leia trechos a seguir.

Folha - Você virá ao Brasil no mês que vem para o evento Emoção Art.ficial. Quanto tempo levaremos para chegar ao robô sentimental?

Eduardo Kac - Em 97 fiz "A Positivo", no qual o ser humano dá sangue ao robô, que filtra o oxigênio e alimenta uma chama em um coração de vidro. O robô devolve soro para o homem. O robô biológico existe como tal, com algum elemento biológico vivo dentro do seu corpo robótico. No caso do "biobô" que criei em "O Oitavo Dia", existe uma colônia de amebas transgênicas que vivem no robô e são responsável pelo movimento das pernas dele.

Não acredito que robôs poderão manifestar determinados aspectos da vida por recursos puramente eletrônicos. É da mescla que poderá surgir um tipo de existência híbrida capaz de manifestar algo semelhante ao que chamamos de emoção.

Folha - Você já escreveu que a essência de seus trabalhos é a comunicação. Isso se aplicaria também para suas criações chamadas de arte transgênica?

Kac - Você pode dizer que toda arte envolve comunicação. Mas a arte não precisa estar delimitada a processos comunicacionais como os da pintura e da escultura. Trabalho com um modelo de comunicação dialógico, que incorpora a subjetividade de outras pessoas como fator fundamental da obra.
A arte dialógica é muito semelhante à conversa que estamos tendo agora. É fruto da interação de uma ou mais entidades vivas no sentido biológico mais comum. No caso de "GFP Bunny" a dimensão dialógica é elevada ao grau máximo. Você estaria experimentando o contato emotivo, cognitivo, o partilhar de seu universo simbólico diariamente.

Folha - Você já disse que seu objetivo não era criar objetos genéticos, mas inventar sujeitos transgênicos. Sua obra está mais no campo da ética ou da estética?

Kac - Ética e estética são indissociáveis. No meu caso poderia dizer que há uma preocupação estética grande, mas a natureza dessa preocupação não é formal. Minha preocupação estética é a de inventar novos sujeitos sociais. Criar seres com características físicas sim, como a coloração, mas também mentais e emotivas.
A invenção de uma vida leva a uma confrontação. Aí está a dimensão ética. No momento em que esse ser está em sua frente e te olha nos olhos é impossível não levar em consideração a responsabilidade que você passa a ter.

Folha - Por que a criação desses seres transgênicos pode ser arte?

Kac - Aquilo que não reconhecemos como arte devemos passar a conhecer como tal. Falamos de um gesto fundador. Não tem, assim, referência no passado. Duchamp não ajuda, Picasso não ajuda, Dalí não ajuda. Nada do que se conhece ajuda a entender esse gesto virado para o futuro.

Folha - O que é que se está fundando com esse "gesto fundador"?

Kac - O gesto é fundador em dois níveis, nas idéias e no nível material. No material, basta dizer que se está trabalhando com organismos vivos. É a criação de genes sintéticos, como em "Gênesis", ou a clonagem de genes para criar formas de vida que não existiam. No nível das idéias também se está lidando com coisas novas. A metáfora da vida como arte e da arte como vida já existiu, mas eu lido com a vida literalmente.

Folha - A manipulação genética pode trazer grandes riscos para a sociedade, não? Você mesmo não tem medo de suas criações?

Kac - Acho que o temor que é expresso ocasionalmente deve ser respeitado. Há razões históricas para que haja esse temor. Basta ver casos como a Segunda Guerra, experiências de eugenia baseadas em noções de pureza, de superioridade, de eliminação de diferenças.

Ter preocupação é necessário, mas cada caso deve ser examinado de maneira detalhada. Temoroso mesmo é a preocupação generalizada. Isso não é produtivo, não ajuda a identificar o que merece a tensão gerada por essa preocupação. Temos de respeitar o temor e usá-lo produtivamente.


Back to Kac Web