Originalmente publicado no livro: Arlindo Machado. O Quarto Iconoclasmo (e outros ensaios hereges), (Rio de Janeiro: Contracapa, 2001), pp. 70-93.

Corpos e Mentes em Expansão

Arlindo Machado

Já houve um tempo em que todos nós proclamamos o advento de uma “revolução eletrônica”, um tempo em que os artistas, cientistas e pensadores em sintonia com o seu tempo acreditaram que os computadores e as redes telemáticas constituiriam certamente o próximo ambiente das novas formas culturais, ou os motivos mais prementes para uma mudança radical dos próprios conceitos de arte e cultura. Hoje, porém, quando tudo é, num certo sentido, “eletrônico”, quando escritores, pintores, compositores e fotógrafos se sentam diante de um computador para criar seus trabalhos, e mais freqüentemente para criá-los dentro de um enfoque tradicional, talvez tenha chegado a hora de perguntar se expressões como “cultura digital” e “arte eletrônica” significam ainda alguma coisa distintiva, ou designam um específico campo de acontecimentos.
Este capítulo visa examinar o trabalho mais recente do artista brasileiro que mais decisivamente tem contribuído para o desenvolvimento de um novo paradigma dentro desse rótulo impreciso das “artes eletrônicas”. Eduardo Kac, um pioneiro na aplicação artística de um amplo leque de novas tecnologias, tem se dedicado mais recentemente à exploração das últimas dimensões de criatividade abertas pelo novo fronte biológico. Como alguns outros que estão tentando apontar novas direções para a arte, ele também tem focado seus últimos trabalhos em questões relacionadas com a nova biologia, a vida artificial, a ecologia da bio-tecnosfera, entre outras tantas coisas. Depois da generalização dos happenings, das performances e das instalações, depois de questionar o cubo branco dos museus e saltar para o espaço público, depois de empregar todas as espécies de máquinas e aparatos tecnológicos, depois ainda de discutir a tragédia da condição humana e de colocar a nu os constrangimentos, as segregações, os interditos derivados do sexo, da raça, da origem geográfica e da condição sócio-econômica, depois de ter experimentado tudo isso, um certo número de artistas parece agora reorientar a sua arte para a discussão da própria condição biológica da espécie.

A Revolução Biolítica

Num livro recente sobre as mudanças que a espécie humana está vivenciando graças às últimas descobertas e invenções nos campos da nova biologia, medicina, ciências cognitivas, robótica, bioengenharia e vida artificial, o escritor francês Hervè Kempf (1998) propõe a hipótese de que estamos saindo da era neolítica, uma vez que, num certo sentido, logramos a tarefa de dominar nosso ambiente. Segundo ele, estamos agora entrando numa nova era, que ele denomina a revolução biolítica (do grego bios = vida e lithos = mineral), quando nossas próximas tarefas serão o domínio de nosso próprio corpo e dos organismos vivos em geral. Nessa nova era, nós estaremos transferindo para as máquinas ou para a matéria inorgânica parte das propriedades que até aqui foram específicas das criaturas vivas. “No lugar de transformar o mundo – explica Kempf – nós vamos agora mudar o próprio ser (p. 9).” Como qualquer outra grande transformação, a passagem para o biolítico parece a princípio apocalíptica, uma vez que compreende novidades tão controvertidas, como a engenharia genética, a clonagem, a biocomputação e a biodiversidade artificial (criação de novas espécies). Sem dúvida, iremos realmente enfrentar todas as espécies de problemas e perigos nessa nova era, mas, por outro lado, nós podemos também compreendê-la de uma forma menos apocalíptica, como um período em que os seres vivos, o ambiente natural e os dispositivos tecnológicos não estarão mais destinados a ser rivais, menos ainda vistos como entidades fundamentalmente diferentes entre si.
Alguns exemplos dessa revolução são bastante eloqüentes. De um lado, as intervenções no interior do corpo humano estão ganhando crescente atenção: a descoberta de materiais biocompatíveis, que podem coabitar o ambiente agressivo do corpo humano, a manufatura de ossos artificiais e sangue sintético, o cultivo de pele humana fora do corpo, a criação de órgãos artificiais, a clonagem de células embrionárias (o caso Dolly), a inseminação artificial, a gravidez fora do útero feminino, tudo isso são apenas alguns passos em direção a uma completa manufatura do processo de vida, ou a uma síntese integral do humano. De outro lado, nós estamos também assisitindo à crescente invasão do corpo humano por dispositivos implantáveis. Já há mesmo uma especialidade em medicina – a biônica – cuja finalidade principal é vencer o desafio de integrar funções eletrônicas no corpo vivo, a fim de assistir ou incrementar a performance dos órgãos.
O marca-passo tem sido utilizado com sucesso na medicina desde 1958. Hoje, a taxa anual é da ordem de 400.000 implantes (Kempf, 1998). Outros dispositivos estão sendo também implantados no corpo humano, ao largo dos últimos anos. Por exemplo, elétrodos para fazer conexão elétrica à espinha dorsal, de modo a estimular órgãos paralisados (utilizado em Larry Flynt, o famoso editor da revista pornográfica Hustler, para recuperar sua virilidade, após uma tentativa de assassinato que o deixou paraplégico) e o incrível implante de olhos artificiais (na verdade, câmeras CCD ligadas a processadores de imagens) para os cegos, projeto desenvolvido pelos oftalmologistas norte-americanos John Wyatt e Joseph Rizzo. O corpo humano, que até aqui havia sido considerado objeto de investigação exclusivo do médico e do biologista, daqui para a frente irá conhecer a intervenção do engenheiro, do especialista em eletrônica e – por que não? – do artista. Se até aqui havia sido difícil para o biólogo dizer exatamente o que era a vida, a partir de agora será quase impossível distinguir com segurança entre o vivo e o não-vivo.
De fato, começando com Norbert Wiener nos idos de 1950, os cientistas frequentemente têm se perguntado se existiria alguma diferença ontológica entre seres humanos, organismos vivos em geral (animais e plantas), matéria inorgânica e as máquinas criadas pelo homem. Se tal diferença existe, ela está certamente relacionada com o nível de complexidade na definição de cada entidade. A vida talvez seja uma propriedade da organização da matéria e se formos capazes de duplicar o seu processo dinâmico em algum outro meio, nós poderemos sintetizar um organismo vivo. Isso quer dizer que nós poderíamos, num certo sentido, “criar” vida, mesmo que “artificial”, ou ainda, se essa expressão soar muito pretensiosa, nós poderíamos, pelo menos, criar alguma coisa que satisfaça nosso próprio critério de vida (Levy, 1993: 116-120). Estamos hoje transferindo o que nós sabemos sobre máquinas para os organismos vivos e vice-versa. É por essa razão que às vezes nos referimos aos corpos como máquinas e às máquinas ou aos processos técnicos em geral como uma espécie de vida (vida artificial).
Vida artificial é um campo de pesquisas dedicado à concepção e criação de organismos semelhantes aos organismos vivos dentro de um ambiente não-orgânico. “Vida”, nesse campo, é uma denominação geral para aqueles sistemas complexos que gozam de capacidade de auto-organização e auto-reprodução. Eles podem aprender com sua experiência, entender suas necessidades, perceber seu ambiente e escolher o melhor comportamento para sobreviver, desenvolvendo dinâmicas grupais e estratégias adaptivas. O conceito de sistema complexo é um componente chave na vida artificial e ele se refere àqueles sistemas cujos componentes interagem de forma tão intrincada que não podem ser previstos através de equações lineares. O comportamento geral de um sistema complexo é irredutível à soma dos comportamentos de todos os seus elementos e só pode ser entendido como o resultado das miríades de interações que acontecem dentro dele. “Os sistemas vivos condensam de tal maneira a complexidade, que muitos cientistas estão agora considerando a complexidade como a característica definidora da vida” (Levy, 1993: 8).
A melhor maneira de duplicar ou “mimetizar” os sistemas vivos é assimilando tudo o que nós sabemos sobre os mecanismos biológicos ao estado-da-arte da informática. Neste momento, as criaturas sintéticas não vivem ainda in vitro, mas in silico, se bem que um computador bioquímico, capaz de empregar moléculas de DNA no lugar de impulsos elétricos, certamente irá superar as limitações atuais. Bons exemplos de mimetismo da vida são as técnicas de programação conhecidas como redes neurais, que simulam o processamento paralelo do cérebro e o diálogo entre os neurônios; os algoritmos genéticos, que mimetizam a reprodução sexual e a seleção natural; e também os virus de computador, que imitam os virus da vida real no modo como eles se reproduzem e infetam os organismos.
No futuro, os seres artificiais não serão tão distintos ou desconectados dos seres “orgânicos”. Da mesma forma como hoje nós vemos dispositivos eletrônicos no interior do corpo vivo, amanhã nós veremos “órgãos” biológicos implantados nas máquinas. Robôs poderão usar órgãos como sensores bioeletrônicos, ou ter bactérias e moléculas de DNA como componentes. O experimento realizado por Raphael Holzer, que consistiu em fixar um dispositivo eletrônico nas costas de uma barata, depois de ter substituído suas antenas por elétrodos e os ter ligado ao sistema nervoso do inseto, tornou possível dirigir uma barata por controle remoto. Depois do cyborg – o humano com partes mecânicas ou eletrônicas – nós vamos conhecer agora o biobô (conceito introduzido por Eduardo Kac no catálogo do ISEA’97), uma criatura robótica que tem partes animais ou vegetais.

Um Microchip no Corpo

Nos últimos anos, artistas como Orlan e Stelarc se dedicaram à discussão cultural e política da possibilidade de ultrapassar o humano através de radicais intervenções cirúrgicas, de interfaces entre a carne e a eletrônica, ou ainda de próteses robóticas para complementar ou expandir as potencialidades do corpo biológico. Mais que apenas antecipar profundas mudanças em nossa percepção, em nossa concepção de mundo e na reorganização de nossos sistemas sócio-políticos, esses pioneiros anteciparam transformações fundamentais em nossa própria espécie. Essas transformações poderão inclusive alterar nosso código genético e reorientar o processo darwiniano de evolução.
Um importante marco simbólico dessa tendência aconteceu no dia 11 de novembro de 1997, na Casa das Rosas, em São Paulo. Nesse dia, Eduardo Kac implantou no interior de seu próprio tornozelo um microchip contendo um número de identificação de nove caracteres e o registrou num banco de dados norte-americano, utilizando a Internet como meio. O microchip é, na verdade, um transponder utilizado na identificação animal em substituição à antiga marcação com ferro quente. Como tal, ele contém um capacitor e uma bobina, todos lacrados hermeticamente em vidro biocompatível, para evitar a rejeição do organismo. O número memorizado no chip pode ser recuperado através de um tracker (scanner portátil que gera um sinal de rádio e energiza o microchip, fazendo-o transmitir de volta o seu número inalterável e irrepetível). A implantação do chip no tornozelo do artista tem um sentido simbólico muito preciso, pois era nesse local que os negros foram marcados a ferro, durante o período da escravidão no Brasil.
A descrição feita acima é bastante simplificada e incompleta. O trabalho abrange ainda uma série de eventos paralelos, relacionados direta ou indiretamente com o implante. Há, em primeiro lugar, o espaço físico da Casa das Rosas, convertido temporariamente numa espécie de quarto de hospital, com instrumental cirúrgico e um médico para atender a eventuais dificuldades, além de ambulância à porta do edifício. Há também uma coleção de fotografias nas paredes com as únicas memórias que restaram da família da avó materna do artista, dizimada na Polônia durante a Segunda Guerra. Há os computadores que permitem acessar o banco de dados nos Estados Unidos, “escanear” o chip por controle remoto através da Internet e disponibilizar, para espectadores situados em qualquer outro lugar do mundo, as imagens do evento através da Web. Depois do evento, um painel com o raio-X da perna do artista mostrando o microchip implantado foi acrescentado ao local da ocorrência. E como se isso tudo não bastasse, houve ainda a transmissão ao vivo de toda a experiência, através de uma rede comercial de televisão (Canal 21 de São Paulo), além da repercussão na imprensa escrita e no telejornalismo locais antes, durante e depois do evento. Mesmo o artista talvez não tenha sido capaz de prever e dimensionar todas as implicações e conseqüências de sua intervenção. Graças à transmissão televisual e à cobertura jornalística, por exemplo, o implante ultrapassou os limites do gueto intelectual e ganhou uma dimensão pública: no dia seguinte, a estranha história do homem que implantou um chip de identificação no próprio corpo estava sendo contada nos cafés, nos metrôs e nos ambientes de trabalho, por gente que sequer remotamente acompanha a discussão artística ou científica.
A intervenção de Kac toca em pontos difíceis e incômodos da discussão ética, filosófica e científica a respeito do futuro da humanidade. Um mês antes do evento na Casa das Rosas, a mesma experiência havia sido proibida no Instituto Cultural Itaú de São Paulo, durante a exposição Arte e Tecnologia, sob a alegação de que a implantação de um chip num ser humano poderia trazer problemas legais à instituição promotora. Nos E.U.A., importantes centros de pesquisa de Chicago e Boston solicitaram cópias dos registros em vídeo para analisar a experiência, enquanto a lista de debates da Wearable Computing discutia intensamente a obra na Internet. O fato de ter despertado polêmica dentro e fora do Brasil constitui o melhor sintoma de que algo importante foi tocado na intervenção de Kac. Da mesma forma como a colocação da bacia sanitária duchampiana no ambiente sagrado do museu desencadeou um número incalculável de conseqüências para a arte e para as demais manifestações da cultura contemporânea, a implantação de um chip no interior do corpo de um artista deverá reacender o debate sobre os rumos que deverão tomar a arte e a espécie humana no limiar do novo milênio.
Uma vez que Eduardo Kac é um artista e não um ativista político, o evento que realizou na Casa das Rosas permanece aberto às mais variadas interpretações. É possível ler o significado do implante como um alerta sobre formas de vigilância e controle sobre o ser humano que poderão ser adotadas num futuro próximo (a imprensa brasileira explorou muito o evento sobre esse viés interpretativo). Assim, um chip implantado em nosso corpo desde o nascimento poderia ser o nosso único documento de identidade. Sempre que houvesse necessidade de nos identificarmos, seriamos “escaneados” e imediatamente um banco de dados diria quem somos, que fazemos, que tipo de produtos consumimos, se estamos em débito com a receita federal, se estamos respondendo a processo criminal ou se somos foragidos da justiça.
De fato, o transponder implantável, associado a um sistema de monitoramento por satélite, como o GPS (Global Positioning System), permite ao proprietário localizar animais perdidos. A vigilância eletrônica de prisioneiros também está sendo considerada em muitos países. A lei francesa permite o uso de transponders em forma de braceletes, que seriam usados por presidiários em liberdade condicional, de forma a monitorá-los durante o perído de probação. A polícia da Flórida e da Pensilvânia está testando um novo dispositivo de monitoramento chamado Pro Tech, que é também um bracelete controlado por satélite e compulsório aos prisioneiros em liberdade condicional. Quando o usuário do bracelete entra numa área proibida ou deixa sua área permitida, o satélite acusa e faz soar um alarme na delegacia de polícia correspondente. Tanto a lei francesa quanto o projeto Pro Tech admitem que a substituição do bracelete por um microchip implantável é uma questão de tempo: dentro de alguns anos, os prisioneiros usarão um transponder implantável em seus corpos, como os animais. Isso poderá ser tomado como um primeiro passo em direção à generalização da prática. O sonho benthamiano de uma sociedade inteiramente monitorada por dispositivos de vigilância está mais perto da concretização do que se supõe (Machado, 1992: 43-64).
Mas também se pode ler a experiência de Kac numa outra perspectiva, como sintoma de uma mutação biológica que deverá acontecer proximamente, quando memórias digitais forem implantadas em nossos corpos para complementar ou substituir as nossas próprias memórias. Esta última leitura é claramente autorizada pela associação que faz o artista da implantação de uma memória numérica em seu próprio corpo e a exposição pública de suas memórias familiares, suas memórias externas, materializadas sob a forma de velhas fotografias de seus antepassados remotos. Essas imagens que estranhamente contextualizam o evento remetem a pessoas já mortas e que o artista nem chegou a conhecer, mas que foram responsáveis pela “implantação” em seu corpo dos traços genéticos que ele carrega desde a infância e que carregará até a morte. No futuro, ainda portaremos esses traços, ou poderemos substituí-los inteiramente por outros artificiais ou por memórias implantadas? Seremos ainda negros, brancos, mulatos, índios, brasileiros, poloneses, judeus, mulheres, homens, ou compraremos esses traços numa loja de shopping center? Neste caso, poderemos ainda compor família, raça, nacionalidade? Teremos ainda algum passado, uma história, uma “identidade” a preservar?

Uma Nova Ecologia

Antes da realização do implante em São Paulo, Kac concebeu três outros eventos diretamente relacionados com o Time Capsule. Um deles foi inaugurado por ocasião do ISEA'97, com a colaboração de Ed Bennett, um projetista de hardware especializado em robótica. Denominado A-Positive, o evento compreendia um intercâmbio intravenoso entre um homem (o próprio Kac o testou pela primeira vez, mas qualquer outra pessoa podia fazê-lo) e um robô. O corpo humano doava sangue ao robô e este, por sua vez, extraía oxigênio do sangue, com o qual mantinha acesa uma pequena chama em seu próprio mecanismo. Em troca, o robô doava dextrose ao corpo humano. Tanto o corpo quanto o robô (na verdade, um biobô) estavam atados por via intravenosa e tubo esterilizado, através dos quais se alimentavam mutuamente: o corpo mantinha “viva” a chama no robô, enquanto este último alimentava o corpo para mantê-lo vivo.
Já estamos habituados a conviver com os modelos generalizados pela ficção científica mais ordinária, em que os robôs são retratados como escravos ou rivais dos humanos. Kac, entretanto, nos coloca no coração de uma nova ecologia em que pessoas e máquinas convivem juntos num relacionamento delicado, ocasionalmente criando intercâmbios simbióticos. As máquinas, de um lado, estão se tornando dispositivos cada vez mais híbridos, incorporando elementos biológicos para funções sensoriais e metabólicas. De outro lado, dispositivos tecnológicos atravessam as sagradas fronteiras da carne, possibilitando novas possibilidades de terapia ou de vigilância. A obra de Kac parece sugerir que formas emergentes de interface homem-máquina estão mudando profundamente as bases de nossa cultura antropocêntrica e deverão reconciliar o corpo humano não apenas com a biosfera inteira, mas também com a tecnosfera. Como observou Kac no catálogo de ISEA'97, “o problema da vida artificial é que ela tem sido largamente explorada quase que exclusivamente como um tópico da informática. A-Positive dá expressão material ao conceito de vida artificial através do apagamento das margens que separam organismos reais (físicos) e artificiais (virtuais). (...) Nesse sentido, pode-se falar de uma ética da robótica e reconsiderar muitos dos pressupostos sobre a natureza da arte e das máquinas na nova fronteira biológica” (1997: 62).
Essas idéias têm sido caras a Kac nos últimos anos. Ele esteve trabalhando com robôs desde meados dos anos 80 e freqüentemente lhes dava nomes animais. Mas sua visão da interface homem/animal/máquina talvez lhe tenha sido sugerida pela primeira vez quando criou Rara Avis, uma instalação interativa de telepresença em que um pássaro tele-robótico simulando uma arara brasileira coabitava uma grande gaiola junto com pássaros reais e plantas artificiais. Fora do aviário, espectadores usando capacetes de realidade virtual podiam ver a cena toda do ponto de vista da arara, como se eles fossem o pássaro do outro lado da grade de arame. O pássaro tele-robótico tinha câmeras estereoscópicas coloridas no lugar dos olhos e podia mover sua cabeça de acordo com os movimentos dos espectadores. A peça, instalada pela primeira vez no Nexus Contemporary Art Center, em Atlanta (1996), podia também ser acessada por qualquer pessoa do planeta via Internet. Kac concebeu originalmente Rara Avis como um comentário sobre a relatividade de noções tais como identidade e outridade (Kac 1996: 393). Esta foi a primeira vez em sua obra que humanos podiam compartilhar o corpo de um pássaro que era ao mesmo tempo uma máquina e viver, pelo menos num sentido psicológico ou metafórico, a experiência de “ser” um pássaro e uma máquina.
Foi todavia numa modesta instalação feita para Sigraph'96 que Kac conseguiu criar sua melhor metáfora da nova ecologia da biosfera. Um dos propósitos da instalação era, como colocado no catálogo de Siggraph (1996), tomar “a idéia de teletransporte de partículas (e não de matéria) fora de seu contexto científico e transportá-la para o domínio da interação social possibilitada pela Internet”. Significativamente, o título da instalação – Teleporting an Unknown State – era um fragmento poético extraído do título do primeiro artigo científico sobre teletransporte. Mas o que a instalação realmente logra, partindo da idéia de transmissão remota da luz, é colocar diante de nossos olhos e mentes a nova condição da vida num ambiente tecnológico. A peça conectava o espaço físico do New Orleans Contemporary Arts Center ao espaço não-localizável da Internet. Na galeria, nós apenas víamos um video-projetor apontado para um pedestal em que uma simples semente jazia num vaso cheio de terra. Pessoas anônimas de diferentes lugares do planeta e que estavam surfando na Internet eram encorajadas a apontar câmeras digitais para o céu e transmitir luz do sol para o site da galeria, usando recursos de videoconferência. O conteúdo das imagens não importava. O que contava era o envio de luz com o único propósito de possibilitar a germinação de vida real no espaço da instalação. Conforme as imagens da luz do sol chegavam à galeria, elas eram projetadas no pedestal, iluminando a semente. Esta última se pôs então a germinar e uma bela plantinha começou a crescer diante de nossos olhos. O processo inteiro de crescimento foi transmitido de volta ao mundo todo, novamente através da Internet, permitindo que os participantes acompanhassem os resultados de sua ajuda.
Depois de Time Capsule, Kac seguiu ainda orientando seu trabalho rumo a uma nova ecologia capaz de reconciliar a humanidade, os demais seres vivos, a natureza inanimada e a tecnologia criada pelo homem. Duas outras obras interativas foram ainda importantes para a evolução do seu processo nessa direção. A primeira, Darker Than Night (1999), foi projetada para o Blijdorp Zoological Gardens, em Rotterdam. Trata-se de um evento de telepresença que explora as relações de empatia entre homem, máquina e animal. Nesta peça interativa, um morcego robótico é instalado dentro de uma caverna escura no jardim zoológico de Rotterdam junto com mais de 300 morcegos vivos da espécie Rousettus aegyptiacus. O tele-robô em forma de morcego tem uma cabeça rotatória e pode varrer o espaço em todos os sentidos. Ele emite um sinal de ultrassom aos outros morcegos e é capaz de captar as respostas deles, convertendo-as em ruídos perceptíveis pelo homem, bem como numa imagem de sua localização na caverna (pontos brancos movendo-se em tempo real sobre um fundo escuro). Os participantes, utilizando um capacete de realidade virtual, podem adotar o “ponto de vista” do tele-robô, “transportar-se” à caverna e, num certo sentido, “dialogar” com os morcegos, uma vez que o comportamento de cada uma das partes afeta o comportamento da outra. Nesse sentido, o evento estimula uma experiência de deslocamento do eu e de ampliação da esfera vivencial.
O evento seguinte, Uirapuru (1999), foi originalmente apresentado no InterCommunication Center de Tóquio, por ocasião da ICC Biennale’99. Uirapuru, a ave amazonense famosa por seu canto e também pelas lendas a ela associadas, transformou-se, na versão interativa de Kac, num peixe voador tele-robótico que canta quando incorpora os espíritos daqueles que estão longe (no caso, na Internet). Através de uma interface própria, o Uirapuru-robô pode ser movido livremente no espaço da galeria e esse movimento, captado por sensores, é enviado a um servidor que, por sua vez, utiliza os dados de seu deslocamento para mover um avatar do peixe voador no espaço virtual da Web. Inversamente, usuários em qualquer parte do mundo também podem mover o peixe físico fazendo deslocar na tela de seus computadores o correspondente avatar. Ao entrar no site do Uirapuru, os usuários podem também adotar seus próprios avatares em forma de peixe voador e interagir com o avatar do Uirapuru tele-robótico ou com os outros avatares que estão nesse momento navegando na rede. No mesmo espaço da galeria, encontram-se ainda diversos pássaros robóticos que simulam a fauna aviária tropical da Amazônia e a exuberante sonoridade de seus cantos. Esses pássaros enviam comandos a servidores localizados na região amazônica e um sistema experto calcula o ritmo do tráfego na Internet, com base no tempo levado para os comandos enviados de Tóquio serem respondidos pelos servidores de Manaus. Os resultados obtidos são utilizados para modular a melodia do canto dos pássaros. Assim, os pássaros cantam na galeria de acordo com o volume total de trânsito de informação na rede planetária.
Até há pouco tempo, a humanidade era entendida, tanto no plano filosófico quanto no nível do senso comum, como alguma coisa que se contrapunha essencialmente às máquinas e às próteses que simulam as funções biológicas. A essência do humano parecia residir ali justamente onde robô falhava e mostrava seus limites. Mas com a evolução da robótica, biobótica e a vida artificial, o autômato foi progressivamente assumindo competências, talentos e até mesmo sensibilidades que supúnhamos específicas de nossa espécie, forçando-nos a um constante deslocamento e a uma contínua redefinição de nossa humanidade. Mais que isso: o desenvolvimento de interfaces húmidas e biocompatíveis estão viabilizando agora a inserção de elementos eletrônicos dentro de nosso próprio corpo. Os eventos emblemáticos de Kac – de Rara Avis a Uirapuru – parecem sugerir que a máquina e o robô, tantas vezes representados na ficção científica como intrusos, usurpadores do lugar dos homens, no futuro poderão estar dentro de nós, ou seja, poderão ser nós mesmos.

Por uma Arte Transgênica

Num artigo publicado originalmente na revista Artforum e republicado em português na antologia Ficções Filosóficas, Vilém Flusser (1988: 14-15; 1998: 83-88) defende a idéia de que, atualmente, encontra-se reemergindo entre nós a mais antiga concepção de arte já existente, aquela a que os latinos denominavam ars vivendi, a arte da vida, ou o saber como viver. A convergência atual da telemática com a biotecnologia promete, para dentro de algum tempo, que a vida poderá ser programável e programável no seu nível mais fundamental, no nível dos genes que transmitem as informações sobre a vida. Todas as artes, até agora, estiveram limitadas a uma manipulação mais ou menos sofisticada da matéria inanimada, perecível e entrópica. A novidade fabulosa e assustadora é que, a partir de agora, será possível elaborar informação, imprimi-la na matéria viva e fazer com que essa informação se multiplique e se preserve ad infinitum, pelo menos enquanto puder existir vida no planeta. E mais: dentro de pouco tempo, será possível não apenas mimetizar as formas de vida conhecidas, como também criar formas “alternativas” de vida, com sistemas nervosos de outra natureza, inclusive com processos mentais diferentes dos que conhecemos. Uma vez que se torne possível produzir obras vivas, capazes de se multiplicar e de dar origem a novas obras vivas, como continuar a fazer arte com objetos inanimados e perecíveis?
Dada esta consideração estonteante – conclui Flusser (1998: 87) – fica claro que não é possível abandonar-se a biotecnologia aos técnicos e que é preciso que artistas participem da aventura. O desafio é óbvio: dispomos atualmente de técnica (arte) capaz não apenas de criar seres vivos novos, mas igualmente formas de vida com processos mentais (“espíritos”) novos. Dispomos atualmente de técnica (arte) apta a criar algo até agora inimaginado e inimaginável: um espírito vivo novo. Espírito este que o próprio criador será incapaz de compreender, já que fundado sobre informação genética que não é sua. Isto é tarefa não para biotécnicos abandonados à sua própria disciplina, mas para artistas em colaboração com os laboratórios atualmente estabelecidos”.
Depois do implante digital, era natural que Kac fosse gradativamente se aproximando da engenharia genética. De fato, nos últimos anos, o trabalho de Kac radicalizou na direção dos aspectos mais propriamente biológicos de sua indagação e assumiu de modo mais categórico a tarefa de “criar obras vivas”, no sentido de que falava Vilém Flusser. O artista chegou mesmo a propor dois novos termos, à falta de outros mais adequados, para identificar a natureza do terreno em que ele estava se movendo: de um lado, a arte biotelemática, uma forma de arte em que processos biológicos estão intrinsecamente associados a sistemas de telecomunicação baseados em computador e, de outro, a arte transgênica, forma de criação artística baseada na utilização de técnicas de engenharia genética para transferência de genes (naturais ou sintéticos) a um organismo vivo, de modo a criar novas formas de vida. Esta última vertente representa o foco privilegiado de suas mais recentes experiências. Num texto-manifesto publicado originalmente na versão eletrônica da revista Leonardo (Kac, 1998), o artista explica que, daqui para a frente, a tarefa da arte não será mais criar artefatos, peças materiais ou conceituais inanimadas, mas sim criaturas vivas, dotadas elas próprias da capacidade de se reproduzir e de preservar a nova forma nas próximas gerações. Ainda de acordo com o mesmo manifesto, a manipulação da vida está sendo desenvolvida hoje em laboratórios científicos permeados de um racionalismo cego e mantidos pelos interesses exclusivos do capital global, sem consideração dos aspectos éticos, sociais e históricos envolvidos. Em outras palavras, as novas descobertas científicas estão sendo conduzidas por velhas instituições econômicas e políticas na direção de uma apropriação legal (sob a forma de patentes) de plantas e animais transgênicos, células geneticamente modificadas, genes sintéticos e genomas, configurando portanto uma forma de enquadramento da vida como propriedade privada. “O uso da genética em arte – propõe Kac (1998) – oferece a oportunidade de uma reflexão em torno desses novos desenvolvimentos, mas de um ponto de vista ético e social.” Aí reside justamente a diferença introduzida pela intervenção artística nas pesquisas com biotecnologia: ela traz à luz toda a complexidade e toda a ambiguidade que envolvem os processos de tecnologia genética, evitando portanto que questões relevantes (“tais como a integração doméstica e social de animais transgênicos, a delineação arbitrária do conceito de ‘normalização’ através de testes, aperfeiçoamentos e terapia genéticos, a discriminação de seguros de vida baseada no resultado de testes genéticos e os sérios perigos da eugenia” – Kac, 1998) sejam mascaradas no debate público.
Até o momento de redação deste artigo, Kac estava conduzindo duas experiências de arte transgênica. A primeira – uma obra ainda em progresso e de realização impossível no momento, devido ao estagio atual da pesquisa relativa ao mapeamento dos genomas animais – se chama GFP K-9, onde GFP é uma abreviatura de Green Fluorescent Protein (Proteina Verde Fluorescente), proteina que é hoje isolada de uma medusa (Aequorea Victoria) da região noroeste do Pacífico e que emite uma luz verde brilhante quando exposta à radiação ultravioleta, enquanto K-9 é uma maneira jocosa de se referir ao adjetivo inglês canine (canino). A idéia que Kac defende junto aos laboratórios de engenharia genética consiste em aplicar essa proteina ao embrião de um cachorro para gerar um animal capaz de responder com emissão de raios verdes a certas condições de iluminação do ambiente. Para justificar sua empreitada, Kac realizou uma exaustiva investigação para provar que a evolução do cão doméstico foi largamente influenciada pela presença humana, desde aproximadamente 15.000 anos atrás, através da adoção seletiva de lobos portadores de características imaturas (processo evolutivo conhecido como neotenia) e mais modernamente através do controle dos acasalamentos. O cão transgênico e fluorescente, o cão que ilumina o ambiente com sua luz verde, o cão “sublime”, essa espécie de obra de arte viva, poderia ser apenas mais uma etapa da intervenção do homem na evolução do animal que historicamente sempre esteve mais próximo dele.
Enquanto o cão fluorescente não vem, Kac obteve uma antecipação dessa possibilidade, na forma da coelha Alba (dentro do projeto GFP Bunny), dotada das mesmas características genéticas pretendidas com o K-9. A coelha, originalmente pertencente a uma família albina (sem nenhum pigmento de cor na pele) foi geneticamente modificada, através da aplicação de uma versão incrementada do gene fluorescente encontrado na medusa Aequorea Victoria, para responder com coloração verde a qualquer emissão de luz azul. Completada em fevereiro de 2000 em Jouy-en-Josas, na França, com a ajuda dos cientistas Louis Bec, Louis-Marie Houdebine e Patrick Prunnet, Alba deveria ser mostrada publicamente no programa Artransgénique do festival Avignon Numérique, em junho de 2000, mas a sua exibição foi proibida pela direção do instituto de pesquisa onde a coelha foi geneticamente modificada. A interdição, obviamente autoritária, só fez reacender o debate e trazer à tona todas as questões implicadas na intervenção de Kac: as conseqüências culturais e éticas da engenharia genética, a complexidade das questões relacionadas com evolução, biodiversidade, normalidade ou pureza racial, heterogeneidade, hibridismo, alteridade, bem como ainda a comunicação entre as espécies e a integração gregária ou social das espécies modificadas. No momento atual, Kac continua travando uma batalha legal e intelectual no sentido de libertar Alba de sua prisão laboratorial, integrá-la socialmente e devolvê-la à vida.
A segunda experiência de Kac com arte transgênica – Genesis – foi apresentada em 1999, numa primeira versão, junto com imagens e diagramas de GFP K-9, no Ars Electronica, evento que ocorre anualmente em Linz (Áustria) e numa segunda versão no Instituto Itaú Cultural, em São Paulo. Para a materialização dessa proposta, Kac concebeu inicialmente aquilo que ele próprio chamou de “gene de artista”, ou seja, um gene sintético, inventado por ele mesmo e não existente na natureza. O gene foi criado através de uma transferência de um trecho em inglês do Velho Testamento para código Morse e depois de código Morse para DNA, de acordo com um princípio de conversão desenvolvido especialmente para esse trabalho (os traços do código Morse representam a timina, os pontos a citosina, o espaço entre as palavras a adenina e o espaço entre as letras a guanina; assim, tem-se os quatro constituintes fundamentais do ácido desoxirribonuclêico ou DNA cujas combinações formam o “alfabeto” ou código genético). A sentença bíblica diz: “Deixe que o homem domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os seres vivos que se movem na terra” (Gênesis 1, 28). As escolhas, evidentemente, já estão carregadas de significado e ironia: a sentença bíblica parece autorizar a supremacia humana sobre as outras espécies, inclusive as intervenções da engenharia genética sobre a criação divina; o código Morse, empregado nos primórdios da radiotelegrafia, representa a aurora da idade da informação e da comunicação global.
O gene sintético contendo o texto bíblico é, em seguida, transformado em plasmídeo (anel de DNA extracromossômico, capaz de auto-replicação e presente em grande parte das bactérias) e então introjetado em bacterias Escherichia coli, que o reproduzirá às próximas gerações. As bacterias contendo o gene Genesis apresentam a propriedade de fluorescência ciã (azul esverdeado) quando expostas a radiação ultravioleta e coabitam uma placa de Petri (prato de vidro utilizado para culturas bacteriológicas) com outra colônia de bactérias, não transformadas pelo gene Genesis e dotadas da propriedade de fluorescência amarela quando submetidas à mesma radiação ultravioleta. À medida que as bactérias vão entrando em contato umas com as outras, um processo de transferência conjugal de plasmídeos pode acontecer, produzindo diferentes alterações cromáticas. A combinação das duas espécies de bactérias pode determinar três tipos de resultados: 1) se as bactérias ciãs doarem seu plasmídeo às amarelas (ou vice-versa), teremos o surgimento de bactérias verdes; 2) se nenhuma doação acontecer, as cores individuais serão preservadas; 3) se as bactérias perderem seus respectivos plasmídeos, elas se tornam ocres.
O processo de mutação cromática das bactérias pode se dar naturalmente, através da interação dos seres unicelulares, ou pode ser também ativado e incrementado por decisão humana, através da radiação ultravioleta, que acelera a taxa de mutação. No espaço da galeria onde ocorre a experiência, tanto os visitantes locais como os visitantes remotos (que participam do evento através da Web) podem ativar a radiação ultravioleta, interferindo portanto no processo de mutação e ao mesmo tempo possibilitando visualizar o estágio atual das combinações de ciã, amarelo, verde e ocre. Uma microcâmera apontada para a placa de Petri permite projetar numa grande tela à frente, em tempo real, uma imagem ampliada das combinações cromáticas, imagem esta que, dependendo da interação dos diversos fatores e das intervenções do acaso, pode resultar particularmente bela enquanto resultado visual. O mais importante, porém, é observar como essa instalação singela transforma o ato mais banal do mundo tecnológico – apertar um botão, seja ele o botão do mouse ou de qualquer outro dispositivo – num gesto carregado de sentido, pois não se trata mais de fazer aparecer ou desaparecer imagens, textos ou sons, mas de interferir sobre o próprio processo da vida. Em Genesis, Kac nos coloca numa situação de responsabilidade, convidando-nos a refletir sobre as implicações de cada um de nossos gestos.
Mais surpreendente que tudo, no final da exibição pública em Linz, o artista inverteu o processo e transformou novamente o texto bíblico alterado pelas mutações genéticas das bacterias em código Morse, e finalmente em inglês. O resultado é um texto corrompido, ligeiramente desarticulado, mas pleno de possibilidades interpretativas, podendo ser entendido como uma espécie de resposta rebelde da natureza à pretenção divina de designar o homem como o senhor de todas as formas vivas do universo. Eis a mensagem da natureza: “Let aan have dominion over the fish of the sea and over the fowl of the air and over every living thing that ioves ua eon the earth.” Conforme observou o próprio artista em seu texto de apresentação do evento (Kac, 1999: 55), “as fronteiras entre a vida baseada em carbono e os dados digitais estão se tornando tão frágeis quanto as membranas das células”.
Toda a concepção e materialização do projeto Genesis obteve o apoio logístico do Departamento de Medicina Genética do Illinois Masonic Medical Center, sobretudo na pessoa de seu diretor, o Dr. Charles Strom. À diferença de muitos artistas que hoje tentam promover uma troca de experiências entre arte e ciência, Kac não utiliza os conceitos científicos apenas como referências, citações ou pretextos, a título de inspiração ou metáfora do seu trabalho artístico, mas, pelo contrário, como o alicerce mais fundo de sua criação. Isso implica enfrentar muito seriamente todos os detalhes da démarche científica e buscar o entendimento mais profundo possível da área de conhecimento em que está atuando, embora também, por outro lado, Kac não endosse qualquer visão determinista da genética, baseada na idéia delirante de que o gene encerra o segredo último da vida. A sua meta é sempre a dimensão simbólica da genética e não a sua dimensão simplesmente operacional. A exposição pública do projeto Genesis foi acompanhada ainda de uma peça musical especialmente composta por Peter Gena e gerada ao vivo no espaço de exposição (ao mesmo tempo em que era disponibilizada na Web), cujos parâmetros são derivados da multiplicação bacteriológica da e.colli, da seqüência de DNA do gene Genesis e de algoritmos de mutação genética
Tanto as bactérias emissoras de luz ciã quanto o cão de pele verde fluorescente estão lançando agora uma luz nova sobre a conturbada discussão do futuro biológico da humanidade e das outras espécies. As formas de vida transgênicas são em geral estigmatizadas pelas suas aparências de seres de laboratório, ainda mais quando imaginamos os interesses escusos (em geral de ordem econômica, mas possivelmente também bélica) que podem estar por detrás dessas experiências. É quase inevitável que as discussões não técnicas envolvendo as biotecnologias resvalem muito facilmente na condenação sumária, um tanto e quanto conservadora, na invocação de cenários de ficção científica apocalíptica, quando não em interditos dogmáticos de natureza religiosa (uma vez que se supõe que a criação de vida é privilégio exclusivo da autoridade divina). O deslocamento dessa discussão para a esfera muito mais experimental e muito menos conformista da arte; a criação, com recursos da engenharia genética, de trabalhos simplesmente belos, em lugar de utilitários ou potencialmente rentáveis do ponto de vista econômico; a recolocação dos produtos geneticamente modificados no espaço “cultural” do museu ou da galeria de arte, ou no ambiente doméstico, onde o animal de estimação, seja ele natural, sintético ou híbrido, deve ser cuidado e amado como tudo o que pertence à esfera do humano, tudo isso pode ajudar a recolocar a discussão pública da genética e dos transgênicos num patamar mais sofisticado de argumentação. Eis porque a obra atual de Kac está possibilitando pensar o desenvolvimento atual da ciência e da tecnologia fora da dicotomia estúpida do bem e do mal, do certo e do errado, mas na direção do enfrentamento de toda a sua complexidade.
Num dos primeiros livros a tratar seriamente do problema do engendramento da vida – La maîtrise du vivant –, François Dagognet (1988) observa que toda a nossa cultura intelectual, de Aristóteles aos atuais ecologistas, produziu uma sacralização do natural em detrimento do artificial, condenando este último a personificar o mal que se deve combater. No entender de Dagognet, nós não vamos conseguir enfrentar com maturidade o desafio das novas tecnologias biológicas se não nos desvenciliarmos dessa dicotomia simplificante. Os atuais debates sobre os rumos que a engenharia genética deverá imprimir à reinvenção da vida num futuro próximo estão ainda carregados de uma moralidade pseudo-humanista e de um dogmatismo de fundo religioso, nada diferentes, aliás, daqueles que, em outros tempos, tentaram nos privar de bens hoje tão humanizados como a pintura, o livro impresso, a eletricidade, o automóvel, o registro técnico da imagem e do som, a intervenção cirúrgica no interior do corpo, a pílula anticoncepcional e assim por diante. Em contraposição ao moralismo e ao dogma, Dagognet propõe a construção coletiva de uma política da vida, uma biopolítica, que vise o interesse geral, entendendo-se como interesse geral a necessidade de permanência de todas as coisas e seres, portanto não apenas o interesse do homem e muito menos ainda o interesse dos grupos econômicos que atualmente estão confiscando os Estados para impor a sua vontade de domínio. Quiçá possa a arte – neste caso, a arte pioneira de Eduardo Kac – servir como o elemento catalizador de uma nova consciência ética, capaz de amparar o homem na tarefa de enfrentar os desafios do milênio que se inicia.

Referências:

Eight International Symposium on Electronic Art, the (Catalog) 1997, Chicago, The School of the Art Institute of Chicago.
Kac Eduardo (1996). “Telepresence Art on the Internet”. Leonardo, vol. 29, n. 5.
Kempf, Hervé (1998). La Révolution Biolithique: Humains Artificiels et Machines Animées. Paris: Albin Michel.
Levy, Steven (1993). Artificial Life. London: Penguin.
Machado, Arlindo (1992). “La Culture de la Surveillance”. Chimaera, n. spécial 2.
Visual Proceedings: The Art and Interdisciplinary Programs of Siggraph 96(catalog) 1996. New Orleans: ACM Siggraph.




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