Originally published in No.Com, Rio de Janeiro, September 20, 2000.

 


no.com.br, 20 de Setembro de 2000

 

Arte, ciência ou aberração?

Pedro Doria <pdoria@no.com.br>

Alba é uma doce coelhinha branca, nasceu na França em abril e vive num centro de pesquisas em Jouy-en-Josas, Avignon. Branca? Não exatamente. Jogue-se uma luz azul sobre ela que fica verde. E fluorescente. A coelhinha é transgênica. Foi geneticamente modificada pela equipe do biólogo francês Louis-Marie Houdebine sob encomenda, recebendo um trecho de código genético de medusa que causa este efeito. 

Por trás da encomenda está um professor da Escola do Art Institute of Chicago, EUA, o brasileiro Eduardo Kac. Com Alba, Kac quer levantar questões e incentivar o debate. Que é diferença? Que é linguagem? A obra de arte, para ele, não é a coelhinha mas a relação de sua família com ela. O nome, aliás, foi escolhido em conjunto com Ruth, sua mulher, e Miriam, sua filha. Excêntrico? Talvez. Polêmico com certeza. Alba foi proibida de deixar o centro de pesquisas. Alega-se que Kac não teria condições de criá-la.

Kac, 38, é professor de Chicago, carioca, formado em comunicação pela PUC-Rio e cria do Instituto de Artes Visuais do Parque Lage – centro onde nasceu a Geração 80. Falou por telefone ao no. de seu gabinete no instituto, tendo sido interrompido várias vezes pelo celular. Era a imprensa americana, intrigada com sua história.

De onde vem isso?

Eduardo Kac - Desde o início dos anos 80, quando fiz algumas apresentações na Praia de Ipanema, no Rio, venho trabalhando com a arte acontecendo no espaço social. As pessoas costumam pensar em comunicação com uma mensagem que vai de um ponto ao outro. Eu quero negociar esse sentido, quero pensar em comunicação como experiência.

Desde os anos 40, cada vez mais, vemos a genética como código. O processo da biologia é informacional, não apenas químico.

Sim, no discurso. Mas houve a mudança de um ser vivo, não? 

EK - Não, não há mudança de um ser vivo porque não havia ser vivo quando a mudança ocorreu. O que havia eram duas células. Alba é o resultado da ação direta sobre o gameta (célula sexual) masculino. Isso é importante porque clarifica que você está mudando uma única célula.

Outra coisa que acho importante é ver que a obra de arte não é a coelha. Se pensarmos assim estamos objetificando ela, mas o que quero enfatizar é a relação num espaço social. A obra, que chamo "GFP bunny", é um evento social complexo e tem três fases.

A primeira foi sua concepção. A segunda é sua integração social, que um sujeito transgênico pode se relacionar como qualquer outro. A terceira é o diálogo que isso traz, a discussão.

Mas e se mudássemos o foco. Ver um coelho e interagir com ele é uma coisa. E se fosse um ser humano que brilhasse no escuro? 

EK - Aí é que está a questão, que é a questão da diferença. O que é diferença? Quem vive com cachorro, com gato, com coelho, sabe que são indivíduos únicos. Um é mais quieto, outro brincalhão, têm personalidade própria. O que vemos é que tudo que há é diferença.

Os outros coelhos não têm a seqüencia da medusa que Alba tem. Mas quantas vezes você joga uma luz azul contra um coelho? Então onde está a diferença? No indivíduo. Os chimpanzés têm 99% de seu código genético em comum com nós, humanos. Isso quer dizer que temos, entre nós, menos de 1% do DNA de diferença. Só por curiosidade, a planta da mostarda tem de 30% a 40% do código em comum conosco.

A obra procura mostrar isso, que genética é freqüentemente usada para falar de diferença, mas também pode ser usada para mostrar semelhança.

Certo, mas na transgenia há outras questões a ser levantadas. Modificando geneticamente um animal, como podemos saber se não estamos colocando, além de, digamos, luz verde, também uma bomba relógio, uma possibilidade de câncer, por exemplo? 

EK - Isso. Se houvesse alguma indicação de que pudesse ser nocivo eu não faria isso, afinal estava trabalhando com um ser vivo. Mas há um estudo profundo no trabalho.

Alba foi criada por Louis-Marie Houdebine, que é o maior especialista em biologia molecular de coelhos da Europa. A escolha do gene que usamos também foi muito estudada. Esta seqüência é conhecida há bastante tempo, já foi usada em outros animais e, mesmo os cientistas que são contra o projeto, reconhecem que ela não causa nenhuma mudança morfológica ou comportamental no animal.

Não estou sugerindo que passemos a misturar qualquer coisa com qualquer coisa.

Outra coisa, essa engraçada. Muitos repórteres me entrevistaram sobre Alba e, na seqüência, entrevistaram cientistas perguntando suas opiniões. Agora, quando um cientista anuncia sua descoberta, seu trabalho, não consultam artistas, não é? E arte, com ciência, com religião, mídia, todas não formam nossa cultura?

De qualquer jeito houve um problema, não é? Alba não pode ir para sua casa. Os cientistas não deixaram.

EK - Meu projeto era montar em Avignon, onde fica o instituto em Jouy-en-Josas (França), uma sala de estar. Eu pretendia morar com Alba durante uma semana lá, e as pessoas visitariam, interagiriam, fariam festa, alimentariam. Aí a levaria para casa, para morar com minha família.

Mas, conforme a história começou a rolar, o diretor, que está acima de Louis-Marie, proibiu que eu fizesse isso, alegando que "não teríamos condições ideais", sem nunca explicar que condições eram essas. Impediu o diálogo quando meu objetivo era levantar o diálogo. É censura.

Agora este diretor saiu e uma nova diretora está a caminho. Vamos ver. Para Alba a casa será melhor, onde terá amor, carinho, melhor que num instituto.

E a questão do equilíbrio da natureza, Eduardo? Uma das preocupações levantadas é o medo de que Alba procrie, tendo filhos e netos geneticamente modificados. Você pretende castrá-la? 

EK - Acho castrar uma palavra muito forte, violenta. Mas conversei com minha mulher e pretendemos operá-la, sim. Existe até o conselho de veterinários para que façamos isso com animais domésticos. Meu objetivo não é criar uma animosidade pública.

O que vamos fazer é congelar seus óvulos para o futuro, para quando essas questões de equilíbrio, por exemplo, estejam solucionadas.

No seu trabalho anterior, "Genesis", você cita um trecho do Gênesis da Bíblia. Brincar com genética, modificar geneticamente um animal, isso não é um pouco brincar de Deus? 

EK - No judaísmo existe uma figura mitológica, o Golem, que foi criado pelo homem. Não é visto como um Frankenstein, mas como uma entidade protetora e abençoada por Deus. Quer dizer, está previsto, faz parte da cultura.

Assumir um papel divino é uma noção questionável já que alguém que acredita em Deus jamais acreditaria que isso seja possível.

Outra coisa, o homem faz isso, criar espécies, há muito tempo. Existem indícios arqueológicos de que domestica lobos, mudando mesmo, há 14 mil anos. Hoje sabemos que, contando as mudanças que os cachorros – que não existiam na natureza – sofreram, devem estar sendo domesticados e cruzados entre si há pelo menos 60 mil anos. E não só eles, como vacas, galinhas, muitos outros.

Você acredita em Deus? 

EK - Não. Mas respeito as diferentes versões mitológicas que, como o (antropólogo Claude) Levi-Strauss dizia, são uma ferramenta para entendermos o mundo ao nosso redor.


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