EDUARDO KAC: TELEPRESENÇA PROBLEMATIZA A VISÃO

Entrevista a Simone Osthoff

Artista poliglota de descendência européia, Kac cresceuno bairro de Copacabana no Rio de Janeiro. Esse carioca cosmopolita quereside nos Estados Unidos e leciona arte eletrônica na The Schoolof the Art Insitute of Chicago, transita confortavelmente entre culturasdiversas. Em sua obra mediática, Kac aciona novas formas de percepção,criando a experiência daquilo que é presente mas nãoimediatamente visível e questionando a hegemonia da visualidadena arte. Ele subverte a passividade cômoda e unidirecional das transmissõesdo rádio e da televisão, e utiliza as telecomunicaçõescom uma ênfase marcadamente democrática e dialógica.As implicações culturais da obra de Kac, ao mesmo tempo querefletem questões epistemológicas, linguísticas, eperceptivas, não deixam por issode refletir também experiênciasautobiográficas.

Em sua obra "Rara Avis," por exemplo, de 1996, o telerobôde Kacque da nome aa obra -- híbrido de ave tropical e tecnologiade ponta --existe para sabotar noções que ainda fazem deararas, bananas, e Copacabanaobjetos exóticos aos olhos estrangeiros.Através da paradoxal experiênciade proximidade à distânciada telepresença, Rara Avis desloca o ponto devista do observadore questiona hierarquias culturais, tecnológicas epolíticas,problematizando as fronteiras entre o familiar e o exótico. Aousaro visor de realidade virtual na galeria, o observador habitavirtualmenteo corpo da arara-telerobô passando a ver a si próprio comosolhos do outro. Nesse espelho virtual, observador e observado, sujeitoeobjeto ocupam o mesmo espaço dentro e fora do aviário, edividem, em temporeal, imagens com participantes remotos localizados emvários pontos darede, com multiplos protocolos (CU-SeeMe, Web, MBone),e que por sua vez ativam o aparato sonoro do telerobô. Os sons noaviário são tambémouvidos na Internet e vice-versa.A fluidez entre identidade e alteridade, proximidade e distância,espaço físico e virtual, dissolve dualismos que opõehumanismo e tecnologia, matéria e metafísica.

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Osthoff: Qual o papel do computador em seu trabalho?

Kac: Nao sou um artista que se especializa no uso de um meioem particular. Considero todos os meios aa minha disposicao. O conceitode cada trabalho ee que dita o meio que emprego ­­ e o computadornao ee excecao. Isto implica que devo ensinar novos recursos tecnicos amim mesmo quando necessario, ou trabalhar com equipe propria, ou mesmoem regime de colaboracao, se for o caso. Um elemento comum ao meu trabalhocomo um todo, de 1980 ate o presente, eh a investigacao dos processos decomunicao e da "mediascape" (linguagem, visualidade, telecomunicacoes,redes telematicas, etc.) e sua relacao direta com a nossa experiencia doreal, isto eh, com o processo de construcao do real. Meu trabalho comecouno inicio dos anos 80 com performances e fotoperformances, e prosseguiuainda na mesma decada com uma serie de outros meios experimentais, taiscomo a instalacao publica de "outdoors", letreiros luminosos,livros de artista e outros multiplos, holografia, computacao grafica etelecomunicacoes. Em 1983, por exemplo, inventei uma nova poetica experimentalque denominei de Holopoesia. A holopoesia corresponde diretamente aa experienciacontemporanea em sua imaterialidade, nao-linearidade e fluidez. Minhasexposicoes individuais de holopoesia ­­ no MIS de Sao Paulo, em1985 (a primeira do genero em nivel internacional), e no Museu de Holografiaem Nova York, em 1990 ­­ foram bons exemplos. Entre 1987 e 88 fizmeu primeiro holopoema digital no Rio de Janeiro. Desde 1989 venho criandotodos os meus holopoemas digitalmente, o que de fato me liberou dos limitesda materia fisica (limites como solidez e rigidez do objeto, gravidadee decomposicao do material). Talvez, de forma ainda mais importante, estenovo processo ­­ que desenvolvi em Chicago entre 1989 e 1990 ­­me permite uma relacao fluida entre a imaterialidade do pensamento, doprocesso de criacao e producao, e de visualizacao da obra, que jamais adquireforma tangivel. Ja na decada de 90 meu trabalho tem utilizado holografia,computacao grafica, instalacao, interatividade, telematica e a Internet,bem como outras formas de criacao ainda nao codificadas no mundo da arte,como o "software de artista", a telerobotica, e questoes biologicas,por exemplo. Desde 1989 venho desenvolvendo uma nova forma de arte queinventei e que chamei de "telepresence art". Este trabalho temsido mostrado nos Estados Unidos, na America do Sul, na Europa e, virtualmente,no mundo inteiro atraves de videoconferencia digital, em tempo real, naInternet. Esta nova arte se define na intersecao entre interatividade,telecomunicacao, e robotica. Tenho um interesse agudo na investigacao dasnovas possibilidades da tecnologia na arte, mas trata-se de um interessecritico. Eu misturo tecnologias velhas e novas, e as forco a revelar seucarater limitado e limitador, criando com formas hibridas situacoes ondemodelos mais democraticos e/ou criticos emergem. "Rara Avis,"instalacao que originalmete preparei para a mostra de arte dos jogos olimpicos,em 1996, em Atlanta, eh um bom exemplo. Eu tento investigar o impacto cultural,social, filosofico, e politico que estas tecnologias, presentes ou ausentesno horizonte imediato, teem em nossas vidas.

Osthoff: Tambem queria conhecer algumas de suas opinioes sobrea relacao entre arte e tecnologia. Em que medida os recursos oferecidospelo computador ampliam as possibilidades da criatividade? Quais novasperspectivas a maquina oferece ao artista? Quais sao suas limitacoes?

Kac: A tecnologia sempre esteve presente na criacao artistica.Ate hoje se debate a tecnologia inovadora empregada pelos egipcios na criacaode piramides, mas as piramides, como legado cultural, sao mais importantesque a tecnica. O lapis, quando surgiu no seculo 16, foi algo de revolucionario.Eh impossivel pensar a revolucao pictorica impressionista sem a rica paletacromatica tornada possivel por avancos na ciencia quimica da epoca. Mas,obviamente, o lapis e o tubo de tinta nao fazem, sozinhos, obras de arte.O computador eh uma entre outras tambem muito importantes tecnologias contemporaneas.O computador oferece por um lado uma liberdade jamais usufruida por artistasem qualque epoca, mas por outro o computador traz tambem o risco de restringiro espectro da nova arte. A questao da tecnica so interessa na medida emque uma ideia nova so pode ser realizada se a nova tecnica existir. A tecnicanao interessa em si mesma. Neste fim de seculo, quando esta claro que apintura esgotou seu potencial radicalmente inovador, contestatorio, e critico,o uso do computador (nao apenas para criar imagens graficas, este um usosecundario) pode abrir novas possibilidades. No meu caso, por exemplo:holografia digital, fotografia eletronica, software de artista, telepresenceart, instalacao telematica, Webwork, projetos biologicos. Talvez nao estejamosdiante de novos objetos e sim de novas relacoes entre elementos conhecidos­­ e estas novas relacoes sao fundamentais. A tecnologia eh importante,mas apenas como potencializadora da obra. Muitos artistas simplesmente"usam" novas tecnologias na esperanca de emprestar algum valora obras que de fato sao vazias. Isto eh o que alguem uma vez definiu como"desperdicio de tecnologia a servico da falta de criatividade".O problema nao esta do lado dos artistas, que compreendem claramente anecessidade e a importancia do que fazem. O problema esta no fato de osistema da arte ser movido por uma maquina esclerosada que se baseia nummercado artificial, que empresta valor cultural a obras que sao vendidaspor grandes somas. Ora, o fato de que alguem esta disposto a pagar umagrande soma por um objeto nao indica que este objeto tenha, de fato, grandeimportancia artistica. O mercado da parafernalia historica de baseball,ou de antigas bonecas Barbie, nos Estados Unidos, sao um exemplo clarode se paga muito dinheiro por artefatos de alto valor comercial e baixoconteudo. Com isto quero dizer que a maioria dos criticos e curadores prefereminvestir no que ja eh conhecido, por comodismo cultural e medo de arriscara carreira naquilo que nao compreendem bem. Enquanto isso, a nova bienalda Koreia convidou Nam June Paik e Cynthia Goodman para organizar uma grandeexposicao de InfoArte, e a bienal de Lyon tematizou os novos meios. Importanteseventos internacionais, como Ars Electronica (Linz), Interface (Hamburg),ISEA (novo pais a cada ano), e Siggraph (EUA) ­­ dos quais participoregularmente ­­ indicam claramente a presenca definitiva da arteeletronica aa revelia do mercado de objetos. A mudanca de valores eh iminente.Levara tempo, mas nao ha duvida de que uma nova geracao de curadores, quecrescera com a televisao desligada e a Internet acesa, aceitara esta novaforma de arte sem preconceitos.

Osthoff: E sobre direitos autorais e comercializacao da arte?Sera que as obras feitas de pincel, papel, marmore, maquina de escreverterao maior valor comercial dentro de algum tempo? Qual a melhor formade socializacao da arte nos tempos ciberneticos? O acesso de milhares depessoas em todo o mundo aos computadores pode democratizar a arte? As formastradicionais de arte podem encaixar no mundo cibernetico? A Venus de Milopode ser digitalilzada e mantida em um disco rigido e ainda ser uma obrade arte considerada uma referencia no mundo das artes?

Kac: O mercado de arte fara tudo para se re-inventar e continuarlucrando com o que for que as pessoas estiverem interessadas em comprar,ou puderem ser convencidas a comprar. Esta eh uma questao secundaria. Claro,o artista precisa sobreviver e nao ha nada de errado em vender obras ouobter apoio na realizacao de projetos. O problema esta na especulacao artificiale na validacao artistica baseada em preco ­­ e nao na importanciada intervencao cultural da obra. O projeto do Bill Gates de digitalizarobras impressionistas, por exemplo, eh tambem um "desperdicio de tecnologiaa servico da falta de criatividade". Eu preferiria ver esta fortunasendo gasta para ajudar os artistas que criam obras de arte eletronicade verdade. Pensar na arte eletronica como uma arte mais socializada ehum pouco de ingenuidade. Claro, em principio, a ideia de que a arte podeser vista na tela de televisao, ou que a arte pode ser distribuida viatelefone na Internet, sugere que um maior numero de pessoas estaria emcontato com a arte. Isto eh, um numero maior do que a quantidade de pessoasque frequentam o museu. Mas se voce pensar bem, voce vera que apenas 20%da populacao do mundo tem telefone, aproximadamente. Neste sentido, educacaogratuita e generalizada e melhor distribuicao de renda farao muito maispara democratizar a arte do que alguns dispositivos eletronicos. Alem domais, ver uma representacao digital de uma obra de Chagall nao pode sercomparado com estar diante de um de seus gigantescos e belos paineis, comoos que estao no Museu Chagall, em Nice, Franca. Por outro lado, o artistaque quer de fato levantar problemas da contemporaneidade nao pode simplesmentefazer uma pintura de uma familia vendo televisao, ou pintar pessoas comlinhas horizontais e brilho que se assemelha ao da televisao­­isto nao eh suficiente. Lichtenstein tinha medo de deixar suas imagensna Web porque alguem pode copiar. Isto eh ridiculo. Um numero muito maiorde pessoas tem acesso aa suas imagens em livros do que na Web. Muitos artistasnao parecem compreender ou aceitar a natureza da profunda mudanca em curso.Colocar imagens de pintura e escultura na Web tem valor educacional, masestas imagens nao constituem obras de arte. Uma nova arte demanda novoscodigos e meios, novas formas de distribuicao e preservacao, e novos modosde apreciacao critica.

Osthoff: Qual o contexto da arte em meio as novas tecnologias?

Kac: Nenhuma obra deve ser julgada de acordo com a presenca ouausencia de novas tecnologias. A obra de arte deve ser vista no que elacomunica nos niveis visuais, semanticos, intelectuais e emocionais. O contextoda arte eh o mesmo, seja a obra feita em oleo sobre tela ou com um telerobona Internet. Nao ha duvida sobre isso. A questao eh mudar a forma de pensarde curadores e publicos, para que vejam as duas manifestacoes sem preconceitos.Um outro dado muito importante eh a relacao da arte contemporanea com outroscampos do saber e outras areas profissionais, o que a torna menos presaaas tradicionais belas artes e mais integrada aa cultura como um todo.Eh neste novo espaco cultural que a arte eletronica realiza a sua maisimportante contribuicao.


Originalmente realizada em 1995, esta entrevista foi publicada em 1997no Cadernos da Pós-Graduação do Instituto de Artesda Unicamp, Vol. 1, N. 1, São Paulo, pp. 7-12.