Originalmente publicado em Expresso, XXI Section, Lisbon, April 19, 1997, p. 10
Um brasileiro da nova era
Eduardo, o Pensador Digital
Antônio Henriques
EDUARDO Kac é brasileiro, vive nos Estados Unidos e tem ascendência polaca. Presente na Exposição Cyber - A Criação na Era Digital, no CCB em Lisboa, fala ao EXPRESSO do seu trabalho: uma metáfora sobre o mundo digital e a democracia.
A Rara Avis é uma gaiola com 30 mandarins e uma arara - um telerobô através do qual os visitantes se vêem livres e presos, recorrendo a óculos de realidade virtual. E onde se mistura espaço virtual e espaço real. A imagem é enviada para a Internet, mas não é igual para todos. Tal como o futuro, apesar da tecnologia.
EXPRESSO - A Rara Avis (exposta pela primeira vez no Centro de Arte Contemporânea de Atlanta, Estados Unidos, em 1966) é uma crítica à ideia de exotismo. Porquê?
EDUARDO KAC - Hoje vendera-me um gelado de frutas exóticas. Perguntei o que era isso. Responderam-me que são mangas, goiabas e coisas assim. Gostava de saber o que há de exótico numa manga. A noção de exotismo é pejorativa e revela um distanciamento. Mais por falta de consciência daquele que julga do que pela qualidade do que é observado. É isso que procuro captar no meu trabalho.
EXP. - Os visitantes são convidados a pôr-se no lugar do exótico...
E.K. - Sim, mas são ao mesmo tempo observadores e observados, porque podem ver-se a si próprios dentro e fora da gaiola. Isso anula a distância entre eles. Quando o visitante mexe a cabeça para a esquerda e para a direita, o telerobô faz o mesmo. A instalação está ligada à Internet, pelo que os participantes remotos observam a gaiola do ponto de vista da arara. Através da Net, eles podem accionar o seu aparelho vocal e dizer o que lhes apetecer. Será ouvido localmente. É uma gaiola de contrastes.
A arara é uma ave grande, colorida, bonita. Os pássaros são muitos, pequenos, cinzentos. Todos estão presos, não vão a lugar nenhum. A diferença, tomada assim, cria um mecanismo de isolamento.
EXP. - O mundo virtual aproxima as pessoas ou fomenta a distância?
E.K. - As duas coisas. É justamente o que quero dizer. É óptimo ter telefone e Internet. Mas não substitui a nossa conversa pessoal, aqui à beira do Tejo, com este ar maravilhoso num dia de sol. A questão é que queremos entrar na cultura digital e continuar a aproveitar o sol. O que gera um conflito entre os que abraçam cegamente a técnica e os que a rejeitam.
Penso que não devemos abrir mão do sol, mas devemos participar e influenciar esta passagem para a cultura digital.
EXP. - De que modo?
E.K. - É importante criar alternativas aos caminhos definidos pelas grandes corporações, em que as pessoas deixem de ser só consumidoras de informação. Pode começar pela arte. A difusão de uma obra parte do princípio que ela está acabada. Na Rara Avis não é assim. As pessoas são parte da obra, influenciam-na e transformam-na. Há uma mistura de espaço físico e virtual, tal como vai ser o futuro. Mas não gosto da ideia de haver meia dúzia de pessoas a ditar o que se deve fazer, com o lucro por único objectivo e as preocupações sociais de fora. Enquanto alguns querem ver a Internet funcionar como indústria de transmissão, penso que é o seu estatuto de abertura e desregulação que a torna fascinante.
EXP. - Mas a Internet não é igual para todos...
E.K. - Justamente. Os olhos da arara são duas câmaras. Ambas transmitem a mesma imagem, uma digitalizada a preto e branco e outra a cores. A imagem a preto e branco está acessível na Web, o espaço popular da rede. A imagem a cores é reenviada pelo MBone (rede multidistributiva e retransmissora que existe na Internet desde 1992, actualmente acessível a poucos indivíduos e a preços elevados). É a mesma imagem, mas nem todos a vêem da mesma maneira. Na ciberesfera, a diversidade de olhares depende do tipo de acesso, e este muda drasticamente com a densidade de rede, a largura de banda, o modem utilizado, a velocidade de processamento do PC, o tráfego na rede, etc. É, de novo, a noção do diferente, da distância - o visitante, ao colocar os óculos virtuais acciona a rede no mundo inteiro - e da alternativa.
EXP. - Um brasileiro nos Estados Unidos sente-se exótico?
E.K. - Os Estados Unidos têm falta de consciência dos valores das outras culturas. A sua cultura é dominante em qualquer lugar, mas o inverso não é verdadeiro. Há, apenas, influências localizadas, como a portuguesa, em Boston, ou a polaca, em Chicago. Para uma pessoa de família europeia, nascida no Brasil e vivendo nos Estados Unidos, a noção de diferença está muito presente. Por isso, reflecte-se no meu trabalho.
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