Tradução de Irene Machado. Originalmente publicado em Dobrila, Peter T. and Kostic, Aleksandra (eds.), Eduardo Kac: Telepresence, Biotelematics, and Transgenic Art (Maribor, Slovenia: Kibla, 2000), pp. 101-131. Esta tradução foi publicada em: Galáxia: Revista Transdisciplinar de Comunicação, Semiótica, Cultura, N. 3, Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica-PUC-SP, 2002, pp. 35-58.


GFP Bunny: a coelhinha transgênica (1)

EDUARDO KAC


Resumo
GFP Bunny é um trabalho de arte transgênica que compreende a criação de um coelho verde fluorescente por meio da proteína que lhe confere essa cor, o diálogo público gerado pelo projeto e a integração social da coelha. GFP Bunny foi realizado em 2000 e apresentado publicamente pela primeira vez em Avignon, França. Esse trabalho foi proposto como uma nova forma de arte decorrente do uso de engenharia genética na transferência de genes naturais ou sintéticos para um organismo com o objetivo de criar seres vivos únicos. Um trabalho que requer o máximo de cuidado, de consciência do grau de complexidade das questões que ele provoca e, acima de tudo, de compromisso para respeitar, cuidar e amar a vida criada.
Palavras chave arte, arte transgênica, engenharia genética, biotecnologia, transgenia, evolução, coelho, etologia.

Abstract
GPF Bunny is a trasgenic artwork comprises the creation of a green fluorescent rabbit, its social integration, and the ensuing public debate. GFP Bunny was realized in 2000 and first presented publicity in Avignon, France. This work was proposed as a new art form based on the use of genetic engineering to transfer natural or synthetic genes to an organism, to create unique living beings. This must be done with great care, with acknowledgment of the complex issues thus raised and, above all, with a commitment to respect, nurture, and love the life thus created.
Key words art, transgenic art, genetic engineering, biotechnology, rabbit, transgenics, evolution, ethology.


GFP Bunny é um trabalho de arte transgênica que compreende a criação de um coelho verde fluorescente por meio da proteína que lhe confere essa cor, o diálogo público gerado pelo projeto e a integração social da coelha. GFP Bunny foi realizado em 2000 e apresentado publicamente pela primeira vez em Avignon, França. Trata-se de um trabalho de arte transgênica, que eu propus em outros estudos (Kac 1998; Stocker & Schopf 1999: 289-296), como uma nova forma de arte decorrente do uso de engenharia genética na transferência de genes naturais ou sintéticos para um organismo com o objetivo de criar seres vivos únicos. Um trabalho que requer o máximo de cuidado, de consciência do grau de complexidade das questões que ele provoca e, acima de tudo, de compromisso para respeitar, cuidar e amar a vida criada.

SEJA BEM-VINDA, ALBA!

Nunca esquecerei o momento quando, em 29 de abril de 2000, em Jouy-en-Josas, a segurei em meus braços pela primeira vez. Minha apreensão e expectativa foram substituídas por alegria e entusiasmo. Alba – o nome dado a ela por minha mulher Ruth, minha filha Miriam e por mim – era adorável, afetuosa, e era delicioso brincar com ela. Na hora em que a ninava, alegremente ela aninhava sua cabeça entre meu peito e meu braço esquerdo, em busca de uma posição confortável para descansar e desfrutar de minhas carícias. Imediatamente ela despertou em mim um forte e iminente senso de responsabilidade pelo seu bem estar.

Alba é, sem dúvida alguma, um animal muito especial, mas eu quero ser claro que sua singularidade formal e genética não é senão um dos componentes do trabalho GFP Bunny, um projeto que envolve um complexo social que inicia com a criação de um animal quimérico que não existe na natureza (isto é, quimérico no sentido da tradição cultural dos animais imaginários, e não na conotação científica que designa um organismo no qual existe uma mistura de células no corpo). As principais preocupações da obra são:

1. estabelecimento de um diálogo continuado entre profissionais de diferentes campos (arte, ciência, filosofia, direito, comunicação, literatura, ciências sociais) e o grande público sobre as implicações culturais e éticas da engenharia genética;

2. contestação da suposta supremacia do DNA na criação da vida em prol de um entendimento mais complexo do relacionamento existente entre genética, organismo e meio ambiente;

3. extensão dos conceitos de biodiversidade e evolução, de modo que neles seja incorporado o trabalho meticuloso que se desenvolve no nível genômico;

4. comunicação interespécies entre humanos e mamíferos transgênicos;

5. integração e apresentação do GFP Bunny em contexto social, interativo, e dialógico;

6. exame das noções de normalidade, heterogeneidade, pureza, hibridismo e alteridade;

7. consideração de uma noção não-semiótica de comunicação como o compartilhamento de material genético através das barreiras tradicionais das espécies;

8. reconhecimento e respeito público para com a vida emocional e cognitiva de animais transgênicos;

9. expansão de práticas atuais e limites conceituais da arte para incorporar a invenção da vida.

BRILHO NA FAMÍLIA

Alba, a coelhinha verde fluorescente, é uma coelha albina. Quer dizer, uma vez que sua pele é desprovida de pigmentação, presente em lugares de condições ambientais ordinárias, ela parece completamente branca e com olhos cor-de-rosa. Alba não é verde o tempo todo. Ela somente reluz quando é iluminada por uma luz específica. Quando (e somente quando) iluminada com luz azul (máximo de excitação em 488 nm), ela reluz com uma luz verde brilhante (emissão máxima de 509 nm). Ela foi criada com EGFP, uma versão aprimorada (isto é, uma mutação sintética) do gene verde fluorescente do tipo selvagem original encontrado na água-viva Aequorea Victoria. O EGFP propicia aproximadamente duas ordens de magnitude com maior grau de fluorescência em células de mamíferos (incluindo células humanas) do que o gene original da água-viva (2).
A primeira fase do projeto GFP Bunny foi encerrada em fevereiro de 2000 com o nascimento de Alba em Jouy-en-Josas, na França. Ele foi realizado graças ao inestimável apoio do zoosistemista Louis Bec (3) e dos cientistas Louis-Marie Houdebine e Patrick Prunet (4). A segunda fase compreende o debate em andamento que começou com o primeiro anúncio público do nascimento de Alba no contexto da conferência Planet Work, em São Francisco, em 14 de maio de 2000. A terceira fase irá acontecer quando a coelhinha voltar para casa, em Chicago, e tornar-se parte de minha família e viver conosco daí para frente.

DA DOMESTICAÇÃO À PROCRIAÇÃO SELETIVA

A vinculação homem-coelho remonta da era bíblica, como pode ser exemplificada pelas passagens nos livros de Leviticus (Lev. 11:5) e Deuterônomio (De. 14:7), que fazem referência a saphan, o correspondente em hebraico à palavra “coelho”. Marinheiros fenícios descobriram coelhos na Península Ibérica por volta de 1100 a.C. e, pensando que eram um pequeno mamífero chamado hyrax, chamaram a terra "i-shepan-im" (terra dos Hyraxes). Uma vez que a Península Ibérica situa-se ao norte da África, essa posição geográfica sugere que outra derivação púnica provém de sphan, “norte”. Como os romanos adaptaram "i-shepan-im" ao latim, criou-se a palavra Hispania – uma das origens etimológicas de Espanha. Em seu livro III, o geógrafo romano Strabão (aproximadamente 64 a.C.- d.C. 21) chamou a Espanha de “terra dos coelhos”. Mais tarde, o imperador romano Servius Sulpicius Galba (5 a.C. – d.C.69), cujo reinado teve vida curta (68-69 d.C.), emitiu uma moeda em que Espanha era representada com um coelho a seus pés. Apesar de a domesticação ter sido introduzida no período romano, nessa fase inicial coelhos eram mantidos num largo cercado e era permitida a procriação livre.
Os homens passaram a ter um papel direto na evolução de coelhos do século VI ao século X d.C., quando monges no sul da França domesticaram e procriaram coelhos em condições mais restritas (5). Originariamente da região compreendida entre o sul da Europa e o norte da África, o coelho europeu (Oryctolagus cuniculus) é o ancestral de todas as raças domésticas. Desde o século VI, devido à sua natureza sociável, o coelho cada vez mais está integrado às famílias humanas como companhia doméstica. Tal procriação seletiva por indução humana criou a diversidade morfológica encontrada em coelhos hoje. Os primeiros registros descrevendo uma variedade de cores de peles e tamanhos distintos da raça selvagem datam do século XVI. Até o século XVIII, a procriação seletiva resultou na coelha Angora, que tem uma pelugem de lã de rara espessura e beleza. O processo de domesticação levado adiante desde o século VI, vinculado com a crescente migração e comércio mundial, resultou em muitas novas raças e na introdução dos coelhos em novos ambientes diferentes de seu habitat de origem. Enquanto existem aproximadamente 100 raças de coelhos conhecidas no mundo, raças com pedigree “reconhecido” variam de um país para outro. Por exemplo, a American Rabbit Breeders Association (ARBA) "reconhece” 45 raças nos E.U.A, com mais em desenvolvimento. Além da reprodução seletiva, a ocorrência natural de variação genética também contribui para a diversidade morfológica. A coelha albina, por exemplo, é uma mutação natural (recessiva) cujas possibilidades de sobrevivência em ambiente selvagem são mínimas (devido à falta de pigmentação própria para camuflar e de visão aguçada para notar predadores). Contudo, como tem sido procriado por humanos, ele pode ser encontrado amplamente hoje em populações saudáveis. A preservação humana do animal albino está também associada a tradições culturais remotas: quase toda tribo nativa norte-americana acreditava que animais albinos tinham significado espiritual particular; por isso criavam regras estritas para protegê-los (6).

DA PROCRIAÇÃO À ARTE TRANSGÊNICA

GFP Bunny é uma obra de arte transgênica e não um projeto de procriação. As diferenças entre as duas práticas envolvem os princípios que orientam o trabalho, os procedimentos empregados bem como seus principais objetivos. Tradicionalmente, a procriação animal tem sido um processo de seleção multigerativo que foi desenvolvido para criar raças puras, com forma e estrutura padrão, geralmente para desempenhar uma função específica. Como se desenvolve dos meios rurais para ambientes urbanos, a procriação não enfatiza tanto a seleção relacionada a atributos de comportamento ligados a trabalho. Em países como Estados Unidos a criação de coelhos continue sendo guiada por uma noção de estética ancorada em traços visuais e em princípios morfológicos. Já em países como França e Brasil, a principal ênfase da criação de coelhos é a indústria alimentar (embora em maior proporção na França que no Brasil). A arte transgênica, seguindo caminho contrário, oferece um conceito de estética que enfatiza aspectos sociais e comunicacionais em detrimento dos aspectos formais da vida e da biodiversidade, que desafia noções de pureza genética, que incorpora um trabalho de precisão no nível genômico e que revela a maleabilidade do conceito de espécie em um contexto transgênico social sempre crescente.
Como um artista transgênico, eu não estou interessado na criação de objetos genéticos, mas na invenção de sujeitos transgênicos sociais. Em outras palavras, o que importa é o processo completamente integrado de criação da coelhinha, inserindo-a na sociedade e provendo-lhe um ambiente de amor e cuidados no qual ela possa crescer segura e saudável. Esse processo integrado é importante porque ele coloca a engenharia genética num contexto social no qual o relacionamento entre as esferas públicas e a privada é negociado. Quer dizer, biotecnologia, o terreno privado da vida familiar e o domínio social da opinião pública são considerados em relação um ao outro. A arte transgênica não visa a elaboração artesanal de objetos genéticos, inertes ou imbuídos com vitalidade. Tal abordagem poderia sugerir uma perigosa integração da esfera operacional das ciências da vida com a estética tradicional que privilegia aspectos formais, estabilidade material e isolamento hermenêutico. Integrando as lições da filosofia dialógica (7) e da etologia cognitiva (8), a arte transgênica deve promover a consciência e o respeito pela vida espiritual (mental) do animal transgênico. A palavra “estética”, no contexto da arte transgênica, mostra que criação, socialização e integração doméstica fazem parte de um mesmo processo. A questão não é fazer com que a coelhinha satisfaça necessidades e desejos específicos, mas desfrutar de sua companhia em sua individualidade (todos os coelhinhos são diferentes), aprecia-la pelas virtudes que lhe são inerentes numa interação dialógica.
Um aspecto muito importante do GFP Bunny é que Alba, como qualquer outra coelha, é sociável e precisa interagir através de sinais comunicativos, voz e contato físico. Não há razão nenhuma para acreditar que a arte interativa do futuro será semelhante ao modo como a entendemos no século XX. GFP Bunny mostra um caminho alternativo e deixa claro que um conceito profundo de interação está ancorado na noção de responsabilidade pessoal (tanto como afeto e cuidados quanto como possibilidade de resposta). GFP Bunny dá continuidade ao meu enfoque na criação, na arte, daquilo que Martin Buber (Buber 1987: 124) (9) chamou de relacionamento dialógico, que Mikhail Bakhtin chamou esfera dialógica da existência (Bakhtin 1984: 270) (10), o que Emile Benveniste chamou intersubjetividade (11) e que Humberto Maturana chamou domínio consensual (12): esferas compartilhadas de percepção, cognição e agenciamento nas quais dois ou mais seres com capacidade para sentir (humanos ou não) podem negociar suas experiências dialogicamente. GFP Bunny também está amparado na filosofia da alteridade de Emmanuel Levinas (13), que estabeleceu que nossa proximidade com outros demanda respostas e que o contato interpessoal com outros é a única relação de responsabilidade ética. Eu crio meus trabalhos com a premissa de aceitar e incorporar as reações e decisões feitas por participantes, sejam eles eucariotes ou procariotes (14). Isto é o que eu chamo interface homem-vegetal-ave-mamífero-robô-inseto-bactéria.
Com o objetivo de ser prática, esta plataforma estética – que reconcilia formas de intervenção social com abertura semântica e complexidade sistêmica – deve reconhecer que toda situação, na arte como na vida, possui seus parâmetros e limitações próprias. Então, a questão não é como eliminar completamente circunscrições (uma impossibilidade), mas como mantê-las suficientemente indeterminadas, de modo que o que os participantes humanos e não-humanos pensam, percebem e fazem quando experimentam a obra, a afeta de maneira significativa. Minha resposta é fazer um esforço coordenado para permanecer verdadeiramente aberto às escolhas e comportamentos dos participantes, desistir do controle substancial sobre a experiência do trabalho, aceitar a experiência-como-ela-acontece como um campo transformador de possibilidades, aprender com ela, crescer com ela, ser transformado ao longo do caminho. Alba é uma participante na obra de arte transgênica GFP Bunny; da mesma forma o é alguém que veio ao encontro dela e alguém que se engaja com as implicações da obra através de reflexão, debate, diálogo. Está em jogo um complexo conjunto de relacionamentos entre a vida familiar, diferenças sociais, procedimentos científicos, comunicação entre espécies, discussão pública, ética, interpretação pela mídia e o contexto da arte.
Ao longo do século vinte, a arte progressivamente questionou a representação pictórica, o objeto artesanal e a contemplação visual. Artistas que procuraram novas coordenadas que pudessem mais diretamente responder às transformações sociais deram ênfase a processos, conceitos, ações, interações, novas mídias, ambientes e discurso crítico. A arte transgênica reconhece essas mudanças e, ao mesmo tempo, oferece um ponto de partida radical, colocando a questão da criação real biológica da vida no centro do debate. Sem dúvida, a arte transgênica também se desenvolve num amplo contexto de profundas alterações em outros campos. Ao longo do século vinte, os físicos reconheceram a incerteza e a relatividade; a antropologia destruiu o etnocentrismo; a filosofia denunciou a verdade; a crítica literária rompeu com a hermenêutica; a astronomia descobriu novos planetas; a biologia encontrou micróbios extremófilos vivendo em condições supostamente tidas como não capazes de sustentar a vida; a biologia molecular fez da clonagem uma realidade.
A arte transgênica reconhece o papel humano na evolução de coelhos como elemento natural, um capítulo na história natural de ambos, humanos e coelhos, já que a domesticação é uma experiência bidirecional. Do mesmo modo como humanos domesticam coelhos, coelhos domesticam seus humanos. Se teleonomia é o aparente propósito na organização de sistemas vivos (15), então a arte transgênica sugere uma abordagem não utilitária e mais sutil ao debate. Movendo-se para além da metáfora da obra de arte como um organismo vivo, para uma complexa incorporação do tropo, a arte transgênica abre um caminho não teleonômico para se pensar as ciências da vida. Em outras palavras, no contexto da arte transgênica, os humanos exercem influência na organização dos sistemas vivos, mas essa influência não tem um propósito pragmático. A arte transgênica não tenta moderar, solapar ou arbitrar a discussão pública. Ela procura oferecer uma nova perspectiva que introduz ambigüidade e sutileza onde usualmente somente encontramos polaridade afirmativa (“a favor”) e negativa (“contra”). GFP Bunny sublinha o fato que animais transgênicos são criaturas regulares, que são parte da vida social, como qualquer forma de vida, e assim são dignas do mesmo amor e carinho como qualquer outro animal (16).
Ao desenvolver o projeto GFP Bunny eu prestei muita atenção e tomei todo o cuidado para não acontecer nenhum dano. Eu decidi levar adiante o projeto porque ficou claro que ele era seguro (17). Não houve surpresas durante o processo: a seqüência genética responsável pela produção da proteína fluorescente verde se integrou ao genoma pela microinjeção no zigoto (18). A gravidez transcorreu com sucesso. GFP Bunny não propõe nenhuma forma de experimentação genética, o que é o mesmo que dizer: as tecnologias da microinjeção e da proteína fluorescente verde são ferramentas estabelecidas e conhecidas no campo da biologia molecular. A proteína fluorescente verde já foi expressa com sucesso em muitos organismos, incluindo mamíferos. Não há efeitos mutagênicos resultantes da integração transgênica em muitos genomas. Em outras palavras: a proteína fluorescente verde é inofensiva à coelha. É também importante chamar a atenção para o fato de que o projeto GFP Bunny não rompe nenhuma regra social: seres humanos têm determinado a evolução de coelhos nos últimos 1400 anos.

ALTERNATIVAS PARA A ALTERIDADE

Ao negociarmos nosso relacionamento com nosso companheiro lagomorfo (19), é necessário pensar a atividade da coelha sem antropomorfizá-la. Relacionamentos não são tangíveis, mas eles formam um fértil campo de investigação na arte, levando a interatividade para o domínio literal da intersubjetividade. Tudo existe em relação a tudo o mais. Nada existe isoladamente. Ao focalizar meu trabalho na interconexão entre entidades biológicas, tecnológicas e híbridos eu chamo a atenção para esse fato simples mas fundamental. Falar de interconexão e intersubjetividade é reconhecer a dimensão social da consciência. Por conseguinte, no conceito de intersubjetividade deve ser levado em conta a complexidade da mente animal. Nesse contexto, particularmente em relação ao GFP Bunny, devemos estar abertos ao entendimento da mente da coelha e, mais especificamente, ao espírito único de Alba como um indivíduo. Considerar a coelha menos inteligente que, por exemplo, o cachorro só porque, entre outras peculiaridades, parece difícil para uma coelhinha achar a comida que se encontra bem diante de seus olhos, é uma concepção equivocada. A causa desse fenômeno ordinário se torna clara quando consideramos que o sistema visual da coelha tem olhos situados acima e nas laterais do crânio permitindo-lhe ter uma visão de aproximadamente 360 graus. Conseqüentemente, a coelha tem um ponto cego de quase 10 graus diretamente em frente de seu nariz e abaixo de seu queixo (Krempels 1996. Para uma compreensão da visão em coelho, ver Smythe 1975). Este exemplo ilustra bem o fato de que aquilo que se poderia considerar como uma deficiência (i.e., não ver a comida), de um ponto de vista antropocêntrico, nada mais é que a peculiaridade sensorial de um outro organismo. Embora coelhos não vejam imagens tão nitidamente como nós, eles são capazes de reconhecer indivíduos humanos pela combinação de voz, movimento do corpo e cheiro, contanto que humanos interajam com eles regularmente e não mudem sua aparência de modo dramático (como usar roupas que alteram o perfil humano ou usar perfumes fortes). Entender como a coelha vê o mundo é certamente insuficiente para compreender sua consciência, mas permite-nos entrar em contato com aspectos de seu comportamento que nos levam a nos adaptar tornando a vida mais confortável para todos.

Alba é um mamífero saudável e doméstico. Contrariamente à noção popular de suposta monstruosidade do organismo geneticamente modificado, o contorno de seu corpo e sua coloração são exatamente da mesma espécie daquilo que encontramos comumente em coelhos albinos. Por acaso, Alba é uma coelhinha fluorescente; é impossível para alguém perceber qualquer coisa estranha nela. Por isso Alba resiste a noções tradicionais de alteridade. É precisamente essa ambigüidade produtiva que a distingue: ser ao mesmo tempo diferente e a mesma que outros albinos. Como acontece em muitas culturas, nosso relacionamento com animais é profundamente revelador de nós mesmos. Nossa coexistência diária e interação com membros de outras espécies, faz lembrar nossa singularidade humana. Ao mesmo tempo, permite-nos adentrar dimensões do espírito humano que são suprimidos freqüentemente da vida cotidiana – como comunicação sem linguagem –, que revela o quanto estamos próximos dos não-humanos. Quanto mais animais fizerem parte de nossa vida doméstica, mais afastaremos a domesticação da funcionalidade do trabalho animal. Nosso relacionamento com outros animais muda à medida que as condições históricas são transformadas por pressões políticas, descobertas científicas, desenvolvimento tecnológico, oportunidades econômicas, invenções artísticas e revelações filosóficas. No começo do século vinte e um, do mesmo modo que transformamos nosso entendimento dos limites físicos do ser humano -- introduzindo novos genes no organismo humano já desenvolvido (terapia genética) ou dando à luz crianças com material genético de três pessoas (os pais e uma doadora de ooplasma através da terapia reprodutiva chamada "transferência ooplásmica") -- nossa comunhão com animais em nosso ambiente também muda. A biologia molecular demonstrou que o genoma humano não é particularmente importante, especial ou diferente. O genoma humano é feito dos mesmos elementos básicos que outras formas de vida e pode ser visto como parte de um amplo espectro genômico rico em variedade e diversidade.

Filósofos ocidentais, de Aristóteles (20) a Descartes (21), de Locke (22) a Leibniz (23), de Kant (24) a Nietzsche (25) e Buber (26), aproximaram-se do enigma da animalidade em múltiplos modos, desenvolvendo no tempo e esclarecendo ao longo do caminho, sua visão de humanidade. Enquanto Descartes e Kant possuíam uma visão mais condescendente da vida espiritual dos animais (e esse também é o caso de Aristóteles), Locke, Leibniz, Nietzstche e Buber são – em diferentes graus – mais tolerantes com relação ao outro animal (27). Hoje, nossa habilidade em gerar vida por meio do método direto da engenharia genética instiga uma reavaliação da objetificação cultural e subjetificação pessoal dos animais e, ao fazê-lo, nos leva a renovar nossa investigação dos limites e potencialidades do que nós chamamos humanidade. Eu não acredito que a engenharia genética elimine o mistério do que seja a vida; pelo contrário, ela reaviva em nós um sentido de surpresa em relação à vida. Nós só pensaremos que a biotecnologia elimina o mistério da vida se nós a privilegiarmos em detrimento de outras visões da vida (o contrário de ver a biotecnologia como uma dentre outras contribuições para ampliar o debate) e se nós aceitarmos a visão reducionista (não compartilhada por muitos biólogos) que a vida é pura e simplesmente um problema genético. A arte transgênica é uma rejeição radical a essa visão reducionista e lembra que comunicação e interação entre agentes sensíveis e não-sensíveis situa-se no cerne do que nós chamamos vida. Em vez de aceitar a transferência da complexidade do processo da vida para a genética, a arte transgênica enfatiza a existência social de organismos e assim sublinha a continuidade evolucionária das características fisiológicas e comportamentais entre as espécies. O mistério e a beleza da vida são tão grandes quanto a consciência de nossa proximidade a outras espécies e quanto nossa compreensão que, de um limitado conjunto de bases genéticas, a vida desenvolveu-se na Terra com organismos tão diversificados como bactérias, vegetais, insetos, peixes, répteis, anfíbios, pássaros e mamíferos.

TRANSGÊNESIS, ARTE E SOCIEDADE

O sucesso preliminar da terapia genética humana evidencia os benefícios de alteração do genoma humano para curar ou melhorar as condições de vida de seres humanos (28). Nesse sentido, a introdução de material genético externo no genoma humano pode ser vista como bem-vinda e até mesmo como desejável. Desenvolvimentos da biologia molecular, como o exemplo anterior, são usados ocasionalmente para trazer à tona a questão da eugenia e da guerra bacteriológica e, com eles, o medo da banalização e do abuso da engenharia genética. Este medo é legítimo, historicamente fundamentado, e deve ser considerado seriamente. Contribuindo para o problema, empresas geralmente empregam estratégias retóricas vazias para persuadir o público, desse modo, deixando de se engajar num debate sério que reconheça de igual modo os problemas e benefícios da tecnologia (29) . Existem, de fato, perigos tais como a possível perda de privacidade da nossa própria informação genética e práticas inaceitáveis e já em curso como a biopirataria (a apropriação e patenteamento do material genético dos portadores sem permissão explícita). (30)
Ao considerarmos esses problemas, não podemos ignorar o fato de que uma completa interdição de todas as formas de pesquisas genéticas poderia impedir o desenvolvimento de muitas curas necessárias para muitas doenças fatais que agora assolam humanos e não-humanos. O problema é ainda mais complexo. Caso tais terapias sejam desenvolvidas com sucesso, que setores da sociedade teriam acesso a elas? Evidentemente a questão genética não é pura e simplesmente um problema científico, mas algo que está diretamente associado a tendências políticas e econômicas. Não seria exagero dizer que, hoje, Wall Street é uma força evolucionária. Por isso mesmo, o medo instaurado pelo abuso tanto real quanto potencial dessa tecnologia deve ser canalizado produtivamente pela sociedade. Em vez de adotar uma rejeição cega da tecnologia, que é, sem dúvida alguma, parte da nova biopolítica (31), cidadãos de sociedades abertas devem fazer um esforço para estudar as múltiplas visões do assunto, aprender sobre experiências históricas na área, entender o vocabulário e os principais esforços de pesquisas em andamento, rejeitar esquemas fatalistas e reducionistas, desenvolver visões alternativas baseadas em suas próprias idéias, participar de debates sobre o tema e chegar a suas próprias conclusões no sentido de gerar entendimento mútuo. Em que pese se tratar de uma tarefa difícil, conseqüências drásticas podem resultar do hype (exagero jornalístico), oposição ou indiferença.
Nesse aspecto, a arte pode também ser de um grande valor social. Uma vez que o domínio da arte é o simbólico, mesmo quando intervém diretamente num dado contexto (32), a arte pode contribuir para revelar as implicações culturais da revolução em curso e oferecer diferentes modos de pensar sobre e com a biotecnologia. A arte transgênica é um modo de inscrição genética que está dentro e fora do domínio operacional da biologia molecular, negociando o terreno entre ciência e cultura. A arte transgênica pode ajudar a ciência a reconhecer o papel de dados relacionais e comunicacionais no desenvolvimento de organismos. Pode ajudar a cultura, desmascarando a crença popular que DNA é a “molécula mestre” por meio da ênfase no organismo como um todo e no ambiente (o contexto). Finalmente, a arte transgênica pode contribuir para o campo da estética, inaugurando novas dimensões simbólicas e pragmáticas da arte como a criação literal da vida e de responsabilidade por ela.



NOTAS

(1) GFP Bunny foi publicado pela primeira vez em Dobrila, Peter T. and Kostic, Aleksandra (eds.), Eduardo Kac: Telepresence, Biotelematics, and Transgenic Art (Maribor, Slovenia: Kibla, 2000: 101-131).

(2) Depois da proteína fluorescente verde (GFP - Green Fluorescent Protein) ser isolada pela primeira vez da Aequorea Victoria e usada como um novo sistema de visualização (ver Chalfie, Euskirchen, Ward & Prasher 1994) ela foi modificada em laboratório no sentido de aumentar a fluorescência (ver Heim, Cubit, Tsien 1995; Heim & Tsien 1996). Trabalhos posteriores alteraram o gene da proteína fluorescente verde para que essa se ajustasse aos códons das proteínas humanas e então permitiram maior expressão em células de mamíferos (ver Haas, Park & Seed 1996). Recentemente novas mutações com alto grau de fluorescência foram desenvolvidos (ver Yang e outros 1998). Para uma compreensão do panorama da proteína verde fluorescente como marcador genético ver Chalfie & Kain 1998. Desde sua primeira introdução na biologia molecular, GFP tem sido expresso em muitos organismos incluindo bactéria, lêvedo, ameba, muitas plantas, mosca, peixe-zebra, muitas células de mamíferos e vírus. O GFP também já foi expresso em muitas organelas incluindo núcleo, mitocôndria, membrana do plasma e citoesqueleto.

(3) Artista, curador e promotor cultural, Louis Bec cunhou o termo "zoosistemista" (zoosystémicien) para definir sua prática artística e sua esfera de interesse, isto é, a modelização digital de sistemas vivos. Já tendo ocupado o cargo de coordenador de arte e tecnologia para o Ministério Francês de Cultura, Louis Bec foi o diretor do festival de Avignon Numerique (Avignon Digital), celebrado em Avignon, França, de abril de 1999 a novembro de 2000, por ocasião da eleição de Avignon para ser uma das capitais culturais européias do ano 2000.

(4) Louis-Marie Houdebine e Patrick Prunet são cientistas que trabalham no Instituto Nacional de Pesquisa Agronômica-INRA na França. Louis-Marie Houdebine é o diretor de pesquisa da Unidade de Biologia do Desenvolvimento e Biotecnologia, INRA, Jouy-en-Josas, França. Entre seus livros em francês encontram-se Le génie génétique, de l'animal à l'homme: un exposé pour comprendre, un essai pour réfléchir (1996); Les biotechnologies animales: une nécessité ou une révolution inutile (1998); Les animaux transgéniques (1998). Em inglês: Transgenic Animals - Generation and Use (1997). Patrick Prunet é pesquisador no Grupo de Fisiologia do Stress e da Adaptação, INRA, Campus de Beaulieu, Rennes, França.

(5) Zeuner, Frederick Everard. A History of Domesticated Animals (New York : Harper & Row, 1963); Clutton-Brock, Juliet. Domesticated Animals from Early Times (London: British Museum, 1981); Caras, Roger A. A Perfect Harmony: The Intertwining Lives of Animals and Humans Throughout History (New York: Simon and Schuster, 1996); Gautier, Achilles. La domestication. Et l'homme créa ses animaux.(Paris: Editions Errance, 1990); Helmer, Daniel. La domestication des animaux par les hommes préhistoriques (Paris: Masson, 1992).; and Sawer, Carl O. Agricultural Origins and Dispersals: The Domestication of Animals and Foodstuffs (Cambridge, MA: MIT Press, 1970). For specific references on the domestication of rabbits see: Biadi, F. and Le Gall, A., Le lapin de garenne (Paris: Hatier, 1993); Bianciotto, G., Bestiaires du Moyen Âge (Paris: Stock, 1980); Brochier, J. J., Anthologie du lapin (Paris: Hatier, 1987); Le lapin, aspects historiques, culturels et sociaux. Ethnozootechnie, n° 27, 1980.


(6) Informações mais detalhadas sobre os valores espirituais das tribos individuais podem ser encontradas em Gill (1994); Hirschfelder (2000); Erdoes & Ortiz (1985). Um caso recente, que ilustra muito bem as qualidades sagradas de animais albinos para as tribos nativas norte-americanas, foi o nascimento de Miracle, o bezerro de búfalo branco. Miracle nasceu na fazenda Heider, em Janesville, Wisconsin, em 20 de agosto de 1994. O anúncio do nascimento de Miracle levou a American Bison Association a dizer que o último búfalo
branco documentado morrera em 1959. Miracle é considerado sagrado pelos caçadores de búfalo, incluindo as tribos Lakota, Oneida, Cherokee e Cheyenne. Logo após seu nascimento, Joseph Chasing Horse, líder tradicional da nação Lakota, visitou o lugar do nascimento de Miracle e realizou ali uma cerimônia do cachimbo, enquanto contava a história da Bezerra de Búfalo Branca, uma figura legendária que trouxe o primeiro cachimbo para o povo de Lakota. Em seguida, mais de vinte mil pessoas vieram para conhecer Miracle e, o portão do pasto Heider bem como as árvores próximas, logo se tornaram cobertos de oferendas: penas, colares e retalhos de tecidos coloridos. As notícias sobre o bezerro logo se espalharam dentre as comunidades nativas porque seu nascimento cumpria uma velha profecia indígena de dois mil anos. Joseph Chasing Horse explicou em uma entrevista que há dois mil anos atrás uma jovem mulher, que apareceu pela primeira vez em forma de um búfalo branco, deu aos ancestrais de Lakota um cachimbo sagrado e cerimônias sagradas de modo a torná-los guardiãos de Black Hills. Antes de partir, ela profetizou que um dia ela poderia retornar para purificar o mundo, trazendo de volta equilíbrio espiritual e harmonia. O nascimento do bezerro de búfalo branco poderia ser um sinal de que seu retorno estaria próximo. Owen Mike, líder do clã Ho-Chunk (Winnebago) disse no mesmo artigo que seu povo tinha uma interpretação ligeiramente diferente a respeito do significado do bezerro branco. Ele acrescentou, contudo, que a versão de Ho-Chunk também enfatiza o retorno da harmonia, tanto na natureza quanto entre todas as pessoas. “É mais do que uma bênção do Grande Espírito”, explicou Mike. “Isso é um sinal. Esse búfalo branco está mostrando para nós que tudo vai dar certo” (Laskin 1994: Nov. 25-Dec 1).

(7) No século XX, a filosofia dialógica encontrou ímpetos de renovação com Martin Buber que publicou em 1923 o livro Eu-Tu (I-Thou), onde ele afirma que a espécie humana é capaz de dois tipos de relacionamento: Eu-Tu (I-Thou: reciprocidade) e Eu-Ele, (I-It: objetificação). Em relações Eu e Tu, nos envolvemos completamente no encontro com o outro e iniciamos um diálogo real. Em relações Eu-Ele, “Ele” torna-se objeto de controle. O “Eu”, em ambos os casos não é o mesmo. No primeiro, existe um encontro não-hierárquico, enquanto que no segundo existe um desprendimento (Buber 1987). A filosofia dialógica da relação formulada por Martin Buber, que está muito próxima da fenomenologia e do existencialismo, também influenciou a filosofia da linguagem de Mikhail Bakhtin que, em inúmeros escritos, afirmou que instâncias ordinárias da experiência monológica – na cultura, na política e na sociedade – reprimem a realidade dialógica da existência.

(8) Etologia cognitiva pode ser definida como “o estudo evolucionário e comparativo de processos de pensamento, consciência, crença e racionalidade de animais não-humanos. Trata-se de uma área na qual a pesquisa é alimentada por diferentes tipos de investigação e explicação” (Bekoff 1995; Meyer & Roitblat 1995). Um pioneiro da etologia, o zoólogo estoniano Jakob von Uexküll (1864-1944), dedicou-se ao estudo de como seres vivos percebem subjetivamente seu ambiente e como essa percepção determina seu comportamento. Em 1909, ele escreveu "Umwelt und Innenwelt der Tiere", introduzindo o termo alemão “Umwelt” (traduzido aproximadamente por “ambiente”) para se referir ao mundo subjetivo de um organismo. O livro foi parcialmente reproduzido na Foundations of Comparative Ethology (Burghardt 1985). Desde que Uexküll destacou o fato de que signos e significados são da maior importância em todos os aspectos dos processos biológicos (no nível da célula ou do organismo), ele antecipou igualmente as preocupações da etologia cognitiva e biossemiótica (o estudo dos signos, da comunicação e da informação em organismos vivos) (Uexkull 1984). Posteriormente, Donald Griffin (1986, primeira edição é de 1958) presta sua contribuição ao estudo do mundo subjetivo de outros animais demonstrando, pela primeira vez, que morcegos sobrevoam o mundo usando biosonar, um processo que ele denominou “ecolocalização”. Desde então Griffin tem apresentado muitas contribuições para a etologia cognitiva (ver Griffin 1976; 1984; 1992). Outro estudioso pioneiro da área é T. Nagel, cujo trabalho de 1974 apresenta uma crítica de explicações fisicalistas da mente ressaltando que elas não consideram a consciência, isto é, o que é a experiência da vida real de um organismo. Nesse estudo, um clássico tanto da etologia cognitiva quanto dos estudos sobre consciência, Nagel lembra-nos que aquilo que a ciência professa como casos objetivos inevitavelmente omite pontos de vista. Em reconhecimento aos trabalhos pioneiros de Griffin, que apresentaram problemas do pensamento behaviorista e cognitivista que deixaram de reconhecer a consciência em mamíferos e pensamento em pequenos animais, muitos pesquisadores prosseguem na investigação de temas que estão na ordem do dia da etologia cognitiva (ver Ristau 1991). Uma discussão abrangente das múltiplas visões que informam o debate sobre etologia cognitiva, incluindo crítica daqueles que se opõem aos princípios fundadores dessa ciência, pode ser encontrada em Bekoff & Allen 1993. Em seu livro Kinds of Minds, Daniel Clement Dennett tenta explicar consciência independente da espécie. Toma a "postura intencional", isto é, a estratégia de interpretação do comportamento de algo (o vivo e o não-vivo) como se fosse um agente racional cujas ações são determinadas por suas crenças e desejos. Examina a “intencionalidade” de uma molécula que se replica, de um cachorro que demarca seu território e do humano que deseja fazer algo em particular. No final, para Dennett é nossa habilidade de usar linguagem que forma a mente particular dos humanos. Dennett acredita que a linguagem é um modo de simplificar e esclarecer as representações em nossa mente e extrair delas unidades. Sem linguagem, um animal pode ter exatamente a mesma representação mas não tem acesso a nenhuma unidade dela (Dennett 1996). Para um exame da relação entre teorias filosóficas da mente e estudos empíricos da cognição animal, ver Allen & Bekoff (1997). Estudos direcionados para a inteligência de espécies não-primatas também têm contribuído para demonstrar habilidades mentais únicas de criaturas como mamíferos marinhos, pássaros e formigas (Schusterman; Thomas & Wood 1986; Skutch 1996; Pepperberg 2000). Para os problemas de comunicação nas formigas, ver a afirmação de Debora Gordon (1992), segundo a qual “o modo como os cientistas vêem o comportamento animal se desenvolve ... [em] um sistema impregnado das práticas sociais de um certo tempo e lugar”. O campo de estudos de Gordon sobre a interação entre colônias vizinhas tem mostrado que formigas aprendem a reconhecer não apenas seus próprios ninhos de acasalamento como formigas da vizinhança, de colônias desconhecidas. Seu campo de estudos tem conduzido para pesquisas posteriores relativas a redes de comunicação dentro de colônias de formigas. (Para um exame mais detalhado do problema, ver Gordon 1999). A principal contribuição do livro de Gordon é sua crítica à percepção popular de que as colônias de formigas se movimentam de acordo com regras rígidas. Ela mostra (com base na sua pesquisa de campo com formigas no Arizona) que uma sociedade de formigas pode ser sofisticada e mudar seu comportamento coletivo de acordo com as circunstâncias. Orientados pelo livro de Charles Darwin (1872), Jeffrey M. Masson e Susan McCarthy produzem um argumento convincente em defesa do conceito de emoção animal (ver Masson & McCarthy 1995). Sobre mente de primatas não-humanos, ver Cheney & Seyfarth 1990; Montgomery 1991; Savage-Rumbaugh & Lewin 1994; Kanzi 1996; Waal 1997.

(9) De acordo com Michael Theunissen, “Buber procura delinear uma ‘ontologia do entre’ no qual a consciência individual só pode ser entendida dentro do contexto de nossos relacionamentos com outros, não independentemente deles (Theunissen 1984: 271-272).

(10) Para Bakhtin, relacionamentos dialógicos “são um fenômeno universal, permeiam todos os discursos humanos e todas as manifestações da vida humana – em geral, tudo que tem sentido e significação (Bakhtin 1984: 40).

(11) Sobre a formação do “ego” ou subjetividade através da linguagem e a noção de que somente por meio da linguagem é que somos conscientes (i.e. somos “sujeitos” plenos), ver: Emile Benveniste (1966) 1971: 223-230. Repetindo Buber, a postura de Benveniste é que quando uma pessoa diz “Eu” (isto é, quando um indivíduo ocupa uma posição subjetiva no discurso), ela ocupa o lugar como membro de uma comunidade subjetiva de pessoas. Assim, sendo uma pessoa/sujeito, ela não é um simples objeto/coisa. Benveniste não foi certamente o único a considerar a natureza intersubjetiva da experiência humana. Wlad Godzich escreveu: “Para Kant, o fato de o indivíduo não poder experimentar o objeto como ele é em si requer a postulação de uma outra dimensão entre indivíduos: a intersubjetividade” (Arac & Godzich 1983: 46). Ao realizar um retrospecto de suas aulas de 1910/11, Edmund Husserl escreveu: “Minhas aulas em Göttingen em 1910-11 já apresentavam um primeiro esboço de minha teoria transcendental da empatia, i.e., a redução da existência humana como estar-com-um-outro mundano na intersubjetividade transcendental” (Husserl 1989: 417). Para Maurice Merleau-Ponty, nossa não-coincidência com o outro não é um defeito, mas a própria condição da comunicação: “o corpo do outro – como portador de comportamentos simbólicos e do comportamento da realidade verdadeira – arranca a si próprio de ser um de meus fenômenos, oferece-me a tarefa de uma comunicação e confere a meus objetivos nova dimensão do ser intersubjetivo”. Para Merleau-Ponty é na ambigüidade da intersubjetividade, que nossa percepção “acorda” (Merleau-Ponty 1964: 17-18). Para uma análise do posicionamento crítico de Merleau-Ponty sobre intersubjetividade ver Friedman 1975. Jurgen Habermas também reservou um lugar de destaque em sua obra para o conceito de intersubjetividade. Dando continuidade aos projetos da Escola de Frankfurt (a crítica da noção de que a validade do conhecimento humano é restrita às proposições testadas empiricamente, provenientes de investigação sistemática professada como objetiva e voltada para interesses específicos), Habermas encontrou na intersubjetividade um meio de opor teorias que situam a verdade e o sentido na consciência individual. Para ele, intersubjetividade é uma situação comunicativa na qual “falante e ouvinte, através de atos ilocucionários, provocam relacionamentos interpessoais que permitem atingir entendimento mútuo” (Habermas 1976: 157). Posteriormente Habermas explica sua visão de comunicação intersubjetiva: “quando um ouvinte aceita um ato de fala, um acordo se estabelece entre dois sujeitos falantes. Contudo, isso não está fundado apenas no reconhecimento intersubjetivo de uma única, tematicamente acentuada, demanda de validade. Um acordo dessa natureza é ativado em três níveis... Pertence à intenção comunicativa do falante, (a) aquele que realiza um ato de fala que é correto em relação a um dado contexto normativo para que entre ele e o ouvinte aconteça uma relação intersubjetiva que é reconhecida como legítima; (b) aquele que faz uma afirmação verdadeira (ou pressuposições existenciais corretas) de modo que o ouvinte possa aceitar e compartilhar o conhecimento do falante; e (c) aquele que expressa verdadeiramente suas crenças, intenções, sentimentos, desejos e o gosto de modo que o ouvinte acredita naquilo que lhe é dito”. Ver Habermas 1984: 307-8.

(12) Do ponto de vista de seu ramo singular e sistemático da biologia teórica, Maturana explica a noção de domínio consensual: “Quando dois ou mais organismos interagem recursivamente como sistemas estruturalmente plásticos, cada um torna-se um meio para a realização da autopoiesis do outro. O resultado é uma associação ontogênica estrutural. Do ponto de vista do observador, é visível que a efetivação operacional que os vários modos de conduta de organismos acoplados estruturalmente tenham para realização de sua autopoiesis sob suas interações recíprocas é estabelecida durante a história de suas interações e por meio delas. Além disso, para um observador, o domínio de interações especificadas por meio de tais associações estruturais ontogênicas aparece como uma rede de seqüências de condutores interrelacionados mutuamente desencadeados, que é indistinguível do que ele ou ela chamaria um domínio consensual. Na verdade, os vários condutores ou comportamentos envolvidos são arbitrários e contextuais. Os comportamentos são arbitrários porque eles podem ter qualquer forma enquanto eles operam como perturbações provocadoras nas interações; eles são contextuais porque sua participação nas interações encadeadas do domínio é definida somente com respeito às interações que fazem parte do domínio. Por conseguinte, eu deveria chamar de domínio consesual esse domínio de condutores encadeados que resultam da associação estrutural ontogênica recíproca entre organismos plásticos”. Ver Maturana 1978: 47. Para uma discussão posterior de “domínio consensual”, ver Maturana 1975: 313-32. Ainda em “Biologia da linguagem: a epistemologia da realidade”, Maturana explica o termo autopoiesis: “Existe uma classe de sistemas dinâmicos que são realizados, como unidades, como redes de produção (e desintegração) de componentes que: (a) participam recursivamente por meio de interações na realização da rede de produções (e desintegrações) de componentes que os produz; e (b) por obra de suas fronteiras, constituem essa rede de produções (e desintegrações) de componentes como uma unidade no espaço especificado e no qual eles existem. Francisco Varela e eu chamamos tais sistemas de autopoiéticos bem como suas organizações são chamadas de organizações autopoiéticas. Um sistema autopoiético que existe no espaço físico é um sistema vivo (ou, mais corretamente, o espaço físico é o espaço em que os componentes dos sistemas vivos se distinguem e no qual eles existem)” (Maturana 1975: 36). Ver também Maturana & Varela (1980).

(13) Emmanuel Levinas escreveu: “Proximidade, diferença que é não-indiferença, é responsabilidade”. Ver Levinas 1981: 139. Parcialmente influenciado pela filosofia dialógica de Martin Buber, Levinas procurou ir além da tradição eticamente neutra da ontologia por meio da análise da relação face a face com o Outro. Para Levinas, o Outro pode não ser conhecido enquanto tal. Pelo contrário, o Outro emerge na relação com outros, num relacionamento de responsabilidade ética que deve ser tomada como prioridade pela ontologia. Para seus comentários sobre Buber, ver Levinas 1967: 133-150.

(14) Existem três tipos de células: procariotes, eucariotes e archae. Procariotes são organismos unicelulares (por exemplo, bactéria) sem membrana nuclear e organela. Eucariotes são organismos unicelulares (como o lêvedo) ou multicelulares (como os humanos) que possuem membrana nuclear em torno do material genético e numerosas organelas numa estrutura celular complexa. Todas as células num organismo multicelular são eucarióticas. Eucariotes incluem a maioria dos organismos (algas, fungos, protozoários, plantas, animais) excetuando-se os vírus, bactérias e algas esverdeadas. Outro grande domínio da vida é chamado Archaea, microorganismos com traços genéticos distintos dos procaria e eukaria. O DNA da Archae não é provido de núcleo. Muitas Archae vivem em ambientes severos como as fontes de água quente do Oceano. Grande parte das chamadas bactérias que produzem metano são Archae.

(15) Teleonomia significa princípio regulador (nomic) orientado por objetivo ou intenção (teleo), sem implicar qualquer conotação vitalística. Para o conceito de teleonomia ver Ayala 1970 (37): 1-15; Lorenz 1981: 23-35; Lorenz 1977: 21-5; Maturana & Varela defendem a “eliminação da teleonomia como uma característica definidora dos sistemas vivos”, pois eles acreditam que esse conceito não realiza muito mais que revelar “a consistência de sistemas vivos no domínio da observação”. Ver Maturana & Varela 1980: 85-87.

(16) Sobre a questão do bem-estar dos animais transgênicos, ver Zutphen & Meer (eds.) 1997.

(17) Isto quer dizer que o processo foi pensado para ser (e de fato é) tão comum quanto qualquer gravidez e nascimento de coelho. Isso devido ao fato de que a tecnologia transgênica tem sido empregada regularmente com sucesso na criação de ratos desde 1980 e em coelhos desde 1985. Ver Gordon, Scargos, Plotkin, Barbosa e Ruddle 1980 (77): 7380-7384; Gordon & Ruddle 1981 (214):1244-1246; Hammer e outros 1985 (315): 680-683. O termo "transgênico" foi usado pela primeira vez por J.W. Gordon e F.H. Ruddle em seus estudos de 1981. Informações adicionais sobre a manifestação de GFP em coelhos, ver Kang e outros 2000 (53) 222.

(18) Zigoto é a célula formada pela união de dois gametas. Um gameta é uma célula reprodutiva, especialmente um esperma maduro ou ovo capaz de fundir-se com um gameta do sexo oposto para produzir o ovo fertilizado. Microinjeção direta de DNA no pronúcleo masculino de um zigoto de coelho tem sido o método mais usado na produção de coelhos transgênicos. Como o DNA externo se integra ao DNA do cromossoma do coelho antes da fusão das duas células, o animal transgênico tem um novo DNA em cada célula. Para uma discussão mais detalhada dos métodos e aplicações da tecnologia de microinjeção, ver Lacal e outros 1999. A primeira criação de ratos transgênicos bem sucedida é de 1980. Foi realizada com o uso de microinjeção pronuclear (Gordon e outros 1980 (77): 7380-7384). O novo gene comprovou-se ter sido integrado no genoma do rato, mas não se manifestou. A primeira mudança de fenotipo visível em ratos transgênicos foi descrita em 1982, em animais com seqüência de hormonios de ratos (Palmiter e outros 1982 (300): 611-615 ). Seguindo a criação de ratos transgênicos, coelhos, ovelhas e porcos também foram criados (ver nota 16). Atualmente centenas de artigos sobre a expressão transgênica são publicados a cada ano.

(19) Ordem de mamíferos que se caracteriza por terem os indivíduos crescimento contínuo dos dentes incisivos. Lagomorfos são os coelhos, lebres e tapitis.

(20) Na parte I do livro IX de sua “A história dos animais”, escrito aproximadamente em 350 d.C., Aristóteles (Aristotle 1991) reconheceu a complexidade dos estados emocionais dos animais. “Os traços ou disposições dos animais que são comparativamente obscuros e com vida curta não são tão óbvios de serem reconhecidos quanto os mesmos aspectos em animais de vida longa. Esses últimos parecem ter uma capacidade natural relacionada a cada paixão: para esperteza ou simplicidade; coragem ou timidez, para o bom ou mau humor e para outras disposições da mente”. Embora no primeiro capítulo da Metafísica Aristóteles atribua formas de razão e inteligência aos animais, em outro livro (Política) ele declara que os humanos são o único animal capaz de logos (livro VII, parte XIII): “animais se orientam pela natureza na maior parte da vida, mas, em menor grau, alguns são influenciados de igual modo pelo hábito. O homem tem um princípio racional, acrescente-se, e apenas o homem”. Também na Política, ele compara animais a escravos (livro I, parte V): “o uso feito dos escravos e dos animais domésticos não é muito diferente; para ambos seus corpos servem para as necessidades da vida” (Aristotle 1966).

(21) Em seu Discurso sobre o Método (1637), Descartes insiste na separação absoluta entre o homem e o animal. Para ele, consciência e linguagem criam os limites do ser entre humanidade e animais. Descartes afirma que “bestas têm menos razão que os homens” e, de fato, “eles não têm qualquer razão” (Descartes 1988: 45). Para Descartes, desde que animais não têm uma linguagem reconhecível, eles carecem de razão e conseqüentemente vivem como autômatos, capazes de imitar a fala mas não verdadeiramente capazes de desenvolver um discurso que suporte consciência. O subproduto dessa visão é a condenação da animalidade ao domínio do inconsciente. Tal manobra não escapou da atenção do semioticista Charles Sanders Peirce, que criticou Descartes: “Descartes sustentava a opinião de que animais são autômatos inconscientes. Ele deve também ter pensado que todos os homens com exceção dele próprio, eram inconscientes ” (Peirce 1991: 234).

(22) No Ensaio Sobre o Entendimento Humano (livro II, capítulo XI), John Locke escreveu: “Se se pode duvidar que os animais constituem e ampliam suas idéias num certo grau; creio que se pode afirmar que o poder de abstração não está totalmente neles; e que o possuir de idéias gerais é o que põe uma distinção perfeita entre homens e animais e é uma excelência a qual as faculdades dos animais não possuem. Por isso é evidente não observarmos nenhum estágio relacionado ao uso de sinais gerais para idéias universais; o que não nos permite afirmar que eles não têm a faculdade de abstração ou de formular idéias gerais, uma vez que eles não usam palavras ou qualquer outro signos gerais”. Ainda que Locke negue aos animais a faculdade de abstração, ele ainda não concorda com Descartes ao considerar animais como autômatos. Ainda no mesmo capítulo, Locke escreveu: “se eles [animais] têm algumas idéias e não são máquinas, (como alguns argumentariam) nós não podemos negar a eles a posse de alguma razão” (Locke 1959: 208). Em sua recusa parcial da teoria cartesiana do conhecimento John Locke propôs duas fontes de idéias: sensação e reflexão. Por meio da diferença entre idéias de sensação e idéias de reflexão, Locke distingue homem de animais: animais são dotados de algumas idéias sensoriais e um grau de razão, mas não idéias gerais (isto é habilidade de abstração) e, como resultado, nenhuma linguagem para suas manifestações. Para Locke, abstração está além da capacidade dos animais, e é precisamente o pensamento abstrato que desempenha um papel fundamental na formação de idéias mistas das quais depende a moralidade.

(23) Para Gottfried Leibniz, os animais não têm consciência própria e a capacidade de reconhecer verdades eternas, que são características das almas humanas. Ele escreveu: “Eu sou inclinado a acreditar que há alma nos animais inferiores porque ela pertence à perfeição das coisas e, quando todas aquelas coisas adaptadas à alma estão presentes, as almas também podem ser entendidas como presentes” [...] Mas ninguém deve pensar que com igual justiça possa ser inferido que deva existir mentes em animais inferiores; pois se sabe que a ordem das coisas não permitirá a todas as almas ser livres das vicissitudes da matéria, nem a justiça permitirá a algumas mentes ser abandonadas à agitação. Então foi suficiente que almas possam ser dadas a animais inferiores, já que seus corpos não são feitos de razão mas destinados a várias funções – o bicho-de-seda para tecer, a abelha para fazer mel e outros para outras funções pelas quais o universo é distinguido’’ (Leibniz 1984: 84).

(24) Na Metafísica da Moral (Princípios metafísicos da doutrina da virtude), Kant estabeleceu que seres humanos são distinguidos de outros animais pela nossa capacidade de estabelecer objetivos para nós mesmos, o que só é possível para um ser racional (Kant 1991: 381; 384-5; 392). Para Kant, a faculdade moral dos humanos estava diretamente conectada às propriedades fundamentais da razão. Ele não encontrou na natureza a origem da moralidade e assim negou aos animais cidadania no reino (moral) dos fins. Para Kant, o senso de obrigação moral é inerente aos humanos (mas não aos animais): “animais não são conscientes e existem somente como meio para fins. O fim é o homem”. Ele continuou: “nossas obrigações para com os animais são meramente obrigações indiretas em direção à humanidade”. Em outras palavras, Kant acreditava que não devemos prejudicar os animais porque ao fazê-lo indiretamente destruiremos a humanidade (podemos ver um outro ser humano como menos humano e nos tornar inclinados a outros tipos de crueldade) (Kant 1976: 122).

(25) Em seu ensaio seminal Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-moral (1873), Friedrich Nietzsche (que uma vez impediu um homem de açoitar seu cavalo) escreveu: “Como um ser ‘racional’ [uma pessoa] situa seu comportamento sob o controle de abstrações. Ele não tolerará mais ser levado por impressões súbitas, por intuições. Primeiro ele universaliza todas essas impressões em conceitos mais frios de modo que ele possa confiar a eles a orientação de sua vida e assim a conduzir. Tudo que distingue o homem do animal depende dessa habilidade de volatilizar metáforas perceptuais num esquema e assim dissolver uma imagem em um conceito” (Nietzsche 1999:84). Em seu ensaio, Nietzsche estabelece que aquilo que chamamos “verdade” é somente “uma massa móvel de metáforas, metonímias e antropomorfismos”. Para ele a arbitrariedade prevalece dentro da experiência humana: o que ordinariamente chamamos de “verdade” não é nada mais que a invenção de convenções fixas para propósitos práticos, particularmente aqueles de segurança e consistência.

(26) Buber afirmou sobre a relação Eu-Tu entre seres humanos e animais não-humanos: “O homem outrora ‘domesticou’ animais e é ainda capaz dessa façanha singular. Ele atraiu animais para sua atmosfera e os levou a aceitarem-no, o estranho, de modo natural e a interagir com ele. Ele ganhou deles uma surpreendente resposta ativa à sua aproximação, à sua interlocução e, além disso, uma resposta que, em geral, é tão forte e direta quanto sua atitude é genuína manifestação da relação Eu-Tu. Animais, como crianças, são não raramente capazes de perceber falsa ternura. Mas, mesmo fora da esfera da domesticação, um contato similar entre homens e animais algumas vezes acontece – com homens que têm no âmago de seu ser uma parceria com animais, não predominantemente pessoas da natureza ‘animal’, mas antes aqueles cuja natureza é espiritual”. Ver: Buber 1987: 125.

(27) Para um exame compreensivo da abordagem da animalidade dentro da tradição ocidental e para uma contribuição filosófica rumo a um entendimento mais respeitoso dos animais não-humanos, ver Fontenay 1998.

(28) Pela primeira vez, a terapia genética foi sem dúvida alguma bem-sucedida na França. Médicos franceses usaram o tratamento que envolve acréscimo de genes operativos em células para salvar vidas de crianças que, de outro modo, morreriam de distúrbios imunológicos fatais. Ver : Marina Cavazzana-Calvo, Salima Hacein-Bey, Geneviève de Saint Basile, Fabian Gross, Eric Yvon, Patrick Nusbaum, Françoise Selz, Christophe Hue, Stéphanie Certain, Jean-Laurent Casanova, Philippe Bousso, Françoise Le Deist, and Alain Fischer 2000 (288): 669-672. Para uma abordagem popular, ver Petitnicolas 2000 (28): 16 .

(29) Um caso exemplar, nesse sentido, é o exemplo da reivindicação de Monsanto, que procura "alimentar o mundo" e a refutação de 24 delegados africanos para as negociações da FAO (Food and Agriculture Organization), no International Undertaking for Plant Genetic Resources, em junho de 1998. Ver Bruno 1998 (28): 291.

(30) No Brasil, pelo menos oito princípios ativos de recursos naturais das florestas nacionais já foram patenteados no exterior, sem que o país ou as comunidades indígenas que detêm os conhecimentos tradicionais das plantas se beneficiassem da privatização desses recursos. É possível comprar nos Estados Unidos informações sobre o sequenciamento genético dos índios de Roraima, que são utilizados para pesquisas. Talvez o caso mais dramático seja o da ayahuasca, planta medicinal que é o símbolo maior da seita religiosa Santo Daime e é usada na produção de líquido de valor espiritual para a seita. A ayahuasca já foi patenteada por um laboratório multinacional, o que seria equivalente a se obter a patente da hóstia. Ver: Darlene Menconi e Sônia Filgueiras. "Caldeirão da pajelança", Isto É, Nº 1668, 19 Setembro 2001 e Cláudia Dianni. "Pajés fazem sugestões para combate a biopirataria", Folha de São Paulo, 5 Dezembro 2001.

(31) Ver: Michel Foucault (1997), 73-79.

(32) Aqui, eu emprego a palavra “simbólico” no sentido que a obra de arte não é apenas uma entidade para ser compreendida de acordo com suas propriedades intrínsecas ou como um todo pragmático de realizar um objetivo, mas também (e sempre) como meio de produzir um mundo de compreensão (ainda que não verbal). Meu uso da palavra é parcialmente motivado pela aplicação que Erwin Panofsky faz da Filosofia das formas simbólicas, de Cassirrer (1923-9). Ver Panofsky 1991. Nas páginas 40-41, Panofsky diz que a perspectiva é “uma das ‘formas simbólicas’ na qual ‘o sentido espiritual’ está vinculado a um signo concreto e material e intrinsecamente dado a esse signo”.

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Tradução autorizada de Irene Machado


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