Jesus, Eduardo. "A experiência temporal e estética na inscrição tecnológica da obra transgênica de Eduardo Kac", in: 11o. Encontro Anual da Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Comunicação - Compós, 2002, Rio de Janeiro. Anais do 11o. Encontro Anual da Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Comunicação - Compós (CD-Rom). Rio de Janeiro: Compós; ECO-UFRJ, 2002.
Tudodepende do tempo e do acaso.
Eclesiates
Amemória é uma ilha de edição.
WallySalomão
1.O tempo e suas dimensões
Tentartrazer à luz uma compreensão do fluxo do tempo tem-se reveladouma experiência das mais complexas, desdePlatão e Aristóteles até Santo Agostinho. Tambémpara filósofos contemporâneos como BergsoneDeleuze, a experiência temporal aparece como enigmática. Todosconhecemos a perplexidade de Santo Agostinho: �O que é o tempo?Se ninguém me pergunta, eu sei; porém se quero explicá-loa quem me pergunta, então não sei.�[2] As camadas de memóriaque recobrem as experiências vividas, o futuro e suas apreensões,bem como a urgência, quase cega, do presente, impossível deser capturado, revelam facetas significativas da nossa experiênciatemporal. O presente está entre o que já foi e o queserá e nos coloca diante de um fluxo temporal incontrolávele impossível de ser explicado. Se não houvesse a mediaçãode instrumentos cognitivos e lógicos, não conseguiríamoscompreender o mundo e reorganizar nossas experiências vividas nofluxo do tempo.
Osatuais instrumentos tecnológicos, como as redes de TV que transmitem,via satélite, imagens eletrônicas para todo o mundo, e a Internet,com seus milhões de computadores conectados, tornam a experiênciatemporal contemporânea ainda mais complexa, principalmente por colocaremem jogo, no cotidiano, formas diferenciadas de experimentar as dimensõesdo tempo. Lévy [3](1993) nos mostra que cada época articulauma determinada maneira de experimentar o tempo que está ligadadiretamente aos instrumentos típicos de cada época e suasrelações sociais, econômicas, políticas e culturais.
Poranalogia com o tempo circular da oralidade primária e o tempo lineardas sociedades históricas, poderíamos falar de uma espéciede implosão cronológica, de um tempo pontual instaurado pelasredes de informática.[4]
Énesse contexto que observamos as obras de mídia arte[5]. SegundoVirilio (1993), o surgimentodas inúmeras interfaces técnicas nos fazem passar de umaexperiência calcada na tridimensionalidade do real para a bidimensionalidadeda representação (apresentação) da imagem nasinúmeras telas (cinema, TV e computador)que povoam nosso dia-a-dia, fazendo com que seja alterada sensivelmentea nossa noção de tempo e espaço:
Nãoestaríamos no direito de nos perguntar se o que insistimos em chamarde ESPAÇO não seria tão-somente a LUZ, uma luz subliminar,para-óptica, em relação à qual o brilho dosol seria apenas uma fase, um reflexo, e isto em uma duraçãocujo padrão seria menos o tempo que passa da história e dacronologia do que o tempo que se expõe instantaneamente; o tempodeste instante sem duração, um �tempo de exposição�(de superexposição ou subexposição) cuja existênciateria sido prefigurada pelas técnicas fotográficas e cinematográficas,tempo de um CONTINUUM privado de dimensões físicas, em queo QUANTUM da ação (energética) e o PUNCTUM de observação(cinemática) teriam se tornado subitamente as últimas referênciasdeuma realidade morfológica desaparecida, transferida para o eternopresente de uma relatividade cuja espessura e profundidade topológicae teleológica seriam as deste último instrumento de medida,esta velocidade da luz que possui uma direção que é,a um só tempo, sua grandeza e sua dimensão e que se propagacom a mesma velocidade em todos os azimutes.[6]
Éjustamente o tempo entrecortado da experiência mediada pelos instrumentosde comunicação e suas interfaces que povoa o cotidiano contemporâneo,revelando o �eterno presente�, que conduz, em certo sentido, ao colapsoda memória e à redução da multiplicidade dasdimensões da experiência temporal em favor de uma urgênciacolossal pelas trocas e comutações sincronizadas possibilitadaspelas conexões em rede. Falamos deste deíctico agora,ou, como escreve Virilio o eterno presente condiçãode impossibilidade de apreensão que é sempre cedo demaisou tarde demais para ser capturado na fluidez da experiênciatemporal contemporânea. Se falamos agora e esperamos um pouco,reinvindicamos um tempo atual, urgente e que está se tornando passado,ou seja, �o tempo deste instante sem duração.� Um tempo quesó se articula no presente, no agora urgente das trocas simbólicaspossibilitadas por um sem-número de instrumentos e aparelhos tecnológicos.
Asobras de mídia arteestabelecem-se nessa conexão entre o agora das trocas simbólicasmediadas pelos instrumentos de comunicação a distânciae a impossibilidade de apreensão das outras dimensões dotempo, ou seja, as obras acontecem nesse eterno presente, sem memória,favorecido pela bidimensionalidade das interfaces, nas quais estáem jogo, todo o tempo, uma experiência estética de novo tipo,não ligada ao aqui agora, e sim, como já vimos,ao láe agora. Com as alterações narelação espaço-temporal, essas obras se configuramno eterno presente da transmissão e da comutação possibilitadopelas trocas simbólicas mediadas pelas interfaces dos instrumentostecnológicos. O que ocorre é um colapso do tempo, no quala multiplicidade das suas dimensões são comprimidas no �eternopresente�. Já não há passado e nem há futuro,pois as obras são experimentadas unicamente através das interaçõese das transmissões. Enquanto o visitante interage com a obra, ossentidos vão emergindo e a experiência estética sedesenvolve. Nenhuma experiência é igual a outra e, apesardo número de alternativas ser limitado em alguns casos, as combinaçõestendem ao infinito, e isso faz com que as experiências nãose acumulem e nem se repitam. O futuro é inexistente porque nãohá idéia de qual será o fim ou o desfecho, tudo dependedas ações ligadas ao agora.
Apesarda ligação quase intrínseca com o presente e com oagora, podemos perceber que os instrumentos tecnológicos,base para a criação em mídia arte, são tambéminstrumentos de captura do tempo que passa. Ao contrário do �eternopresente� que as obras provocam, esses instrumentos servem para registraro agora e torná-lo acessível no futuro para resgataro passado. São instrumentos que servem para estender nossa memóriae torná-la, enquanto possível, uma forma de acesso ao passado,por meio de imagens, sons e textos gravados nos mais diversos suportes.
Podeparecer contraditório que esses instrumentos promovam um registroe uma acumulação do tempo, enquanto também servempara tornar eterno o presente nas obras de mídia arte. A chave dessaquestão está na transmissão. Em muitas obras, os instrumentosnão servem simplesmente para registrar ou gravar o tempo, servemmesmo para possibilitar as transmissões, tal qual as câmerasem circuito fechado (usadas por Paik e Nauman), responsáveis porgerar as imagens sem deixar registro. Os instrumentos mais típicosda mídia arte, canais desenvolvidos para servirem de ligaçãoentre as dimensões do tempo e torna-lo só presente, tambémpromovem a transmissão.
Entreas muitas obras de Eduardo Kac, uma delas estabelece uma interessante conexãoentre a memória como passado remoto, composta por um conjunto dereferências histórico-culturais, eamemória como dispositivo, que permite guardar e mostrar informaçõesnuma máquina através de um chip. Trata-se de TimeCapsule [7]; obra em que Kac injetou um microchip no seu própriocorpo.
Aidéia central de Kac é justamente confrontar os dois tiposde memória: a memória do artista, vinda de sua herançagenética e histórico-cultural (representada analogicamentepela fotografia) e a inserção de memórias numéricas�artificiais�, armazenadas em dispositivos técnicos. As fotos defamília da avó materna de Kac, dizimada na Segunda GuerraMundial, são colocadas pelo artista nas paredes da Casa das Rosas,em São Paulo, em busca de uma representação da memóriagenética e de um confronto entre a antiga mídia atravésda qual guardávamos algumas partes da nossa memória, comoé o caso da fotografia e as memórias �artificiais�,agora literalmente implantadas no corpo por meio do chip.
Atualmente,os computadores e os robôs, bem como uma série de outros instrumentos,estão povoados com chips que guardam informaçõesà maneira de memórias que, em vez de serem acumuladas emsuportes físicos, tendo como referente, por exemplo, alguma experiênciavivida, são produzidas e injetadas no corpo. Essas memóriasartificiais servem para acirrar a discussão acerca da biotecnologiae das conseqüências a serem geradas por operaçõesdessa natureza quando começarem a acontecer em escala industrial,etapa em que poderemos compor (e comprar) as memórias. Time Capsule,segundo Arlindo Machado(1997),apontapara uma multiplicidade deleituras, principalmente por se tratar de um evento artístico enão de uma manifestação política. Machado identificaduas principais direções na obra: o controle, atravésda vigilância, e o implante de memória, para complementarou substituir nossas memórias:
Estaúltima leitura é claramente autorizada pela associaçãoque faz o artista entre a implantação de uma memórianumérica em seu próprio corpo e a exposiçãopública de suas memórias familiares, suas memóriasexternas, materializadas sob a forma de velhas fotografias de seus antepassadosremotos. Essas imagens que estranhamente contextualizam o evento, remetema pessoas já mortas e que o artista nem chegou a conhecer, mas queforam responsáveis pela "implantação" em seu corpodos traços genéticos que ele carrega desde a infânciae que carregará até a morte. No futuro, ainda portaremosesses traços, ou poderemos substituí-los inteiramente poroutros artificiais ou por memórias implantadas?[8]
Kacconfronta duas formas de inscrever a memória, uma ligada ao espaço-tempoexperimentado, representado pela fotografia, e outra absolutamente artificialde base numérica, a injeção do microchip. Levando-seem conta as múltiplas leituras permitidas pela obra, podemos tambémver que, em Time Capsule, a memória de Kac e da famíliade sua avó é resgatada e conservada por um dispositivo tecnológicode base analógica a fotografia , cápsula do tempoque consegue transportar o observador para outro tempo.
Anova relação entre as memórias artificiais armazenadasnos microchips e nos instrumentos tecnológicos e as maneirasusuais de construção da memória são descritaspor Lyotard (1990). O autor diferenciatrês tipos de efeito-memória, chamados de efeito-memóriada inscrição tecnológica, ou seja, maneiras de inscrevera memória por meio dos dispositivos técnicos.
Ostrês gêneros de inscrição tecnológicaseriam: de acesso, de varredura e de passagem, a que correspondem, grossomodo, a três gêneros de síntese do tempo: o hábito,a rememoração e a anamnese. A descrição queLyotard faz desses novos gêneros de inscrição da memória,apesar de, em alguns momentos, ser excessivamente apocalíptica,mostra-nos as implicações das novas memórias que povoamos instrumentos e objetos tecnológicos.
Oacesso, ligado ao hábito, está presente numa estrutura queserve para assegurar uma circulação dos bens simbólicostípicos de cada cultura. Os hábitos das culturas, principalmenteas mais tradicionais, incluem também elementos geográficose cronológicos, formas específicas de experimentar o espaçoe o tempo: �Seria melhor falar de lugares e momentos, lugares-ditos e momentos-ditos,já que, por construção, estas culturas sãonebulosas de hábitos inseridas num espaço-tempo familiar.Familiar como a terra natal."[9]
Coma chegada das novas tecnologias, os elementos que promovem o enraizamentoda cultura são deslocalizados e destemporalizados, a começarcom as tecnologias industriais (carvão, vapor e eletricidade), quecolocaram no mundo objetos que exigiam modos (hábitos) de produção,de troca e de consumo possíveis e válidos fora do territórioe do momento da produção.
Atualmente,as tecnologias disponíveis vão ainda mais longe e passama incorporar algumas operações mentais[10], como a apreensão,o armazenamento e a regulação dos acessos à informação.Quaisquer dados podem ser úteis a partir do momento em que podemser traduzidos em informação. Assim, as informaçõestornam-se independentes em relação ao lugar e ao momentode sua recepção inicial, �realizáveis à distânciaespacial e temporal, digamos: telegrafáveis�.[11]
Asexperiências telegrafáveis inserem-se nas culturas tradicionaislibertando-as do tempo e do espaço característicos da experiênciado aqui e agora, e introduzindo uma produçãoespontânea do passado nos hábitos. Tudo passa a ser transmissível:com isso, os acessos comunitários anteriores são alteradose podem transformar-se em subculturas. Ora, oque ocorre com essa nova cultura telegráfica é o deslocamentoda memória, uma alteração dos hábitos que,tornando-se desgarrados de seus contextos espaço-temporais, geramo que Lyotard chama de telecultura hegemônica.
Asobras de mídia arte, por se servirem dessa forma �telegráfica�deinscrição, ao serem construídas na distânciadas trocas interativas, não conseguem concretizar a construçãoespontânea de passado. Não há registro tecnológicoque consiga acumular e guardar as ações e as comutaçõessincronizadas proporcionadas pelas obras. O que transita nas obras éde outra ordem, gerado quase que exclusivamente pelo seu �eterno presente�.Dessa forma, o passado nunca é acessado, porque a maioria das obrasnão acumulam as ações e com isso garantem ao visitanteuma experiência sempre única.
Algumasobras de mídia arte, entretanto, rearticulam a inscriçãotecnológica do hábito e conseguem sair do esquema imediatodas comutações possibilitadas pelos computadores e geramo passado, inclusive com possibilidade de acesso a ele. Podemos pensar,por exemplo, em Telegarden(1995), obra de Ken Goldberg, em queexiste passado e futuro, principalmente porque a obra precisa de tempopara se desenvolver, já que as plantas semeadas no jardim têmum tempo de vida, com começo, meio e fim. Cuidadas a distânciapelos usuários da Internet, as plantas semeadas no jardim garantemum tempo ligado ao hábito. O que era semente torna-se planta, eas ações dos visitantes repercutem na obra e nas construçõesfuturas. Como as plantas precisam de tempo para crescerem, ocorre aíuma construção de um passado que não foi gerado espontâneamente,que precisou da ação do visitante para se efetivar.
Amídia arte, de uma forma geral, não se articula na inscriçãodo acesso-hábito. Na maioria das vezes, não há passadona experiência. A única dimensão de passado que estáem jogo é o momento da construção da obra ou ambienteinterativo que acumula procedimentos, definidos pelo artista, que fazema obra funcionar e possibilitam o acesso do público. Na experiênciaestética gerada pelas obras, o passado não é possívelde ser acessado porque cada experiência é única e porquecada novo visitante toma a obra do ponto deixado pelo visitante anterior.
Aoutra inscrição do tempo definida por Lyotard é avarredura-rememoração, e diz respeito a uma �síntesedo passado como tal e sua reatualização enquanto passado,no presente da consciência".[12] A rememoração, segundoLyotard, está ligada, hoje em dia, à linguagem e a sua duplaarticulação, a semântica e a fonética.
Deacordo com este raciocínio, a linguagem é imediatamente apreendida,ela própria, enquanto técnica de um grau superior, metatécnico.Ao contrário dos acessos simples, a memória linguagem implicapropriedades desconhecidas pelo hábito: a denotaçãodo que é retido por ela (graças à sua transcriçãosimbólica), a recursividade (a combinação de sinaisé inumerável, a partir de regras generativas simples, dasua gramática), e a referência em si (os sinais de linguagempodem ser denotados por sinais de linguagem: a metalinguagem).[13]
SegundoLyotard, a linguagem gera o chamado tekhnologos, responsávelpelo aparecimento de novos gêneros denotativos de linguagem, bemcomo a própria ciência, como processo de conquista do desconhecido,de experimentação, para além da experiênciacultural tradicional, aquela do tekhnologos recebido do acesso,inscrito nas formas da história e da cultura. Lyotard chama de varredura,esse processo que desconhece sua finalidade, mas que é marcado pelodesenvolvimento e progresso da tecnociência. Segundo Lyotard, �noprincípio da varredura, existe esta exclusão dos fins. Elarevestiu-se de todos os disfarces: destino do homem, progresso, luzes,emancipação, felicidade. Hoje, esta exclusão aparececompletamente nua. Saber e poder mais, sim, mas por quê, não�.[14]
Podemosfazer uma associação mais direta entre a varredura e as obrasde mídia arte, principalmente aquelas que se lançam em territóriospouco explorados e ainda desconhecidos pelos artistas e públicoem geral, como é o caso da biotecnologia. Ainda estamos começandoa utilizar esse processo na vida cotidiana e as repercussões jácomeçam a preocupar a todos. Se a mídia arte assume essesmateriais, processos e suportes como a biotecnologia, certamente um dosobjetivos é alertar para a ausência de finalidade, que emalguns momentos, a pesquisa científica assume na varredura, despreocupadaem relação às repercussões sociais, políticas,culturais e, principalmente, éticas, das experiências em curso.
Entretanto,não acreditamos que a varredura seja a única síntesedo tempo típica da mídia arte. Essa rememoraçãoativa precisa de passado, precisa de solidificar-se através de umacesso contínuo e de um processo de atualização dopassado que ocorre no presente. Se as obras, como vimos anteriormente,são tipicamente do presente, não é também avarredura a síntese do tempo mais característica da mídiaarte. No entanto, as obras, para serem interativas, mesmo que minimamente,precisam de ser programadas. Ou seja, é necessário haveralgum acúmulo, algum procedimento arquivado, para ser resgatadono momento da interação. Assim, na dimensão da construçãoda obra, a varredura é a síntese do tempo típica damídia arte, pois, ao experimentar a obra, o visitante nãoconsegue repetir a experiência da mesma maneira e permanece presoao �eterno presente�.
Assumindouma posição paradoxal, a mídia arte se articula numasituação limítrofe entre a varredura e a terceirasíntese do tempo, definida por Lyotard como passagem-anamnese, umaforma de síntese do tempo ligada a uma memória que efetivamentenão teve registro.
Lyotardbusca na obra de Freud subsídios para compreender esta forma deatualização. A anamnese se coloca sem inscrição,ou seja, não há um registro que depois possa ser acessado:o que existe são pequenos vestígios, traços esmaecidosque funcionam como uma possível lembrança. A questãoé bastante complexa, pois sabemos que nos lembramos somente daquiloque foi inscrito, mas na psicanálise de Freud encontramos a anamnese,que é justamente o processo de lembrarmos do que não foiinscrito ou foi inscrito de forma muito sutil. Lyotard explica: �Ésensato tentar recordar alguma coisa (digamos: alguma coisa) que nãofoi inscrita, isto se a inscrição dessa alguma coisa tiverquebrado o suporte inscritível ou memorável".[15]
Éna transmissão a passagem de um lugar a outro, de um pontoa outro, totalmente fluido e sem gerar inscrições mais profundas que o �eterno presente� surge na inscrição do tempoda mídia arte. Na maioria das vezes, os suportes usados pelos artistassão as plataformas tecnológicas típicas da comunicaçãoa distância, que promovem um colapso na materialidade dos suportesartísticos tradicionais e uma verdadeira passagem entre diferentescontextos. A materialidade dos suportes mais tradicionais como a tela,a tinta, a pedra e o ferro, entre outros, nos mostra uma inscriçãofísica, da ordem do passado (foi feita) e, ao ser finalizada,pode ser exposta para a contemplação do público. Comos novos meios, a obra se faz na transmissão, não háinscrição que resista ao fluxo das comutaçõessincronizadas (que apelam sempre para o chamado �eterno presente�) e nãohá inscrição alguma na superfície, o que existeé só a transmissão.
Freud,nas suas anotações sobre o Bloco Mágico, revela essa�quase inscrição� que acaba por revelar, no processo da Psicanálise,a memória mais escondida de lembranças quase �imemoráveis�.Na mídia arte, percebemos algo análogo a esse processo. Otempo suspenso da transmissão, exclusivamente presente, articulamemória e tempo no momento em que rompe com o suporte, que, ao contráriode registrar, como a tela e a tinta na pintura ou mesmo a fita de vídeo,faz com que tudo passe. Os artistas usam instrumentos que, ao contráriode revelar e gravar a experiência, simplesmente abrem uma passagementre contextos espaço-temporais distintos, conectando o que estálongínquo e trazendo-o para perto. Nas obras de mídia arte,o suporte, em vez de servir para registrar e inscrever, cria passagens,e a natureza do tempo eternamente presentificado faz com que a obra sópossa existir mesmo com as interações dos visitantes. O queé paradoxal aqui é que, levada ao extremo, essa experiênciado colapso do tempo provocada pela transmissão colocará emcrise a própria garantia da não-inscrição,típica do bloco mágico, aquela que rege o inconsciente.
Paranós, grande parte dos projetos de mídia arte se articulaem torno de uma situação limítrofe entre essas duassínteses do tempo, a varredura e a crise da anamnese. Na construçãoda obra, o que existe é pura acumulação nas programações,cálculos e algoritmos que possibilitam a própria existênciada obra, em alguns casos, como um espaço interativo. Por outro lado,enquanto experiência estética, a mídia arte conseguealcançar o �eterno presente�, uma experiência únicaque não deixa inscrições mais profundas. Tudo éfluidez e transmissão sem acumulação e sem possibilidadede acessar o passado.
Podemosver que as obras de mídia arte, de maneira geral, são construídasna articulação entre a varredura e a anamnese. A diversidadede projetos também nos impede de enclausurar as obras nesta ou naquelaforma de inscrição tecnológica. Nesta diversidade,a obra de Eduardo Kac tem destaque pela ousadia dos projetos e pela incorporaçãodos mais diversos suportes e técnicas. Em sua trajetóriaartística, diversidade e crítica são palavras-chavepara entendermos seus trabalhos, principalmente pela busca constante depossibilidades tecnológicas que permitam mostrar como as técnicasvem alterando a experiência estética e a vida cotidiana daspessoas num emaranhado entre mercado, possibilidades comerciais, experiênciasartísticas e científicas.
Otrabalho de Eduardo Kac, sem dúvida, busca por experiênciasartísticas que exponham o visitante ao confronto com os instrumentos,aparelhos e técnicas típicas da vida cotidiana em articulaçõesque subvertem e reposicionam as utilizações mais ordinárias,típicas do uso comercial. Assim, surge um uso mais críticoda tecnologia, que convida o visitante a experimentar a obra e a refletir,entre outras coisas, sobre o papel da mediação tecnológicana contemporaneidade.
Aobra de Eduardo Kac é bastante extensa. Podemos dividi-la em trêsfases: a poesia marginal e a holopoesia, os projetos de telemáticae, por fim, a entrada no domínio da biologia e da biotecnologia.Apesar da riqueza dos trabalhos desenvolvidos na fase da telemáticacomo as muitas versões do Projeto Ornitorrinco, Rara Avis,Darken than night ou Teleporting to unknown state, obrasfundamentais para o desenvolvimento da arte telemática e que, semdúvida, já traziam algumas sugestivas aproximaçõesentre o universo tecnológico e o ambiente biológico, iremosfocar aqui nas últimas obras de Kac voltadas quase que exclusivamentepara o domínio da biotecnologia. Ao associar característicasdas obras telemáticas em novos projetos voltados para a biotecnologia,Kac complexificou ainda mais os projetos artísticos estabelecendonovas possibilidades de experiências temporais e estéticas
3.Novos suportes, novas possibilidades
Comotraço mais distintivo da trajetória de Kac, vimos que a biotecnologiae biologia sempre estiveram presentes e foram tornando-se mais complexas,provocando reposicionamentos e estabelecendo novos campos para a experiênciaestética contemporânea.
Fazemparte desta fase mais recente três projetos; uma obra completa, outraincompleta e um projeto que ainda não foi realizado. Bastante polêmicase ampliando a discussão acerca do debate levantado pelo recentemapeamento do código genético, estas obras mais recentesde Kac incorporam os elementos tecnológicos e biotecnológicose estabelecem formas de transmissão que transcendem os esquemasmais diretos dos instrumentos de comunicação provocando repercussõesnos meios de comunicação, na comunidade acadêmica ena sociedade em geral tomando, mais uma vez, uma postura bastante crítica.
Genesismostra o envolvimento de Kac com as questões genéticas eparece conseguir materializar as preocupações propostas nasobras e divulgadas em seu ensaio Transgenic Art, (1998). Neste texto,Kac vai colocando exemplos para mostrar como, ao longo da história,o homem, mesmo antes do mapeamento do DNA, vem alterando, atravésde métodos menos precisos, mudanças em animais e vegetais,como a Rosa-Chá, primeira espécie de rosa híbridaproduzida pela primeira vez em 1867 ou mesmo as araras. O autor fala deseres imaginários como a chimera, um animal mitológico, inúmerasvezes representado na antiguidade, como uma mistura de serpente, leãoe águia. Entre os animais domésticos, o cão, segundoo autor, é um dos animais que foram sendo construídos. Assim,Kac propõe o projeto K-9, que consiste basicamente na criaçãode um cachorro transgênico, anunciando assim uma nova forma de arte,a arte transgênica.
Oprojeto K-9 visava promover a inserção em um pequenocão de genes de uma água viva, que emite luz fluorescente.O projeto, que expõe os limites entre ciência, tecnologiae arte, não foi realizado devido a problemas no mapeamento do códigogenético do cachorro. Mas apesar de não realizado, abriuuma enorme discussão que serviu para realizar, pelo menos em parteoutro projeto de Kac, o GFP Bunny. Um projeto que vai se desdobrandoprogressivamente,começando com a injeção de DNA da água vivana coelha Alba, fazendo com que seu ao ser exposta a luz infra vermelhatorne-se verde fluorescente. A primeira fase do projeto foi realizada emabril de 2000, com o nascimento de Alba, abrindo o complexo evento (ouprojeto) GFP Bunny, que não se restringe simplesmente a criaçãodo coelho, mas diz respeito também a uma série de outrosdesdobramentos, como nos mostra Kac:
The"GFP Bunny" project is a complex social event that starts with the creationof a chimerical animal that does not exist in nature (i.e., "chimerical"in the sense of a cultural tradition of imaginary animals, not in the scientificconnotation of an organism in which there is a mixture of cells in thebody) and that also includes at its core: 1) ongoing dialogue between professionalsof several disciplines (art, science, philosophy, law, communications,literature, social sciences) and the public on cultural and ethical implicationsof genetic engineering; 2) contestation of the alleged supremacy of DNAin life creation in favor of a more complex understanding of the intertwinedrelationship between genetics, organism, and environment; 3) extensionof the concepts of biodiversity and evolution to incorporate precise workat the genomic level; 4) interspecies communication between humans anda transgenic mammal; 5) integration and presentation of "GFP Bunny" ina social and interactive context; 6) examination of the notions of normalcy,heterogeneity, purity, hybridity, and otherness; 7) consideration of anon-semiotic notion of communication as the sharing of genetic materialacross traditional species barriers; 8) public respect and appreciationfor the emotional and cognitive life of transgenic animals; 9) expansionof the present practical and conceptual boundaries of artmaking to incorporatelife invention.[16]
Certamenteeste projeto de Kac opera em níveis mais altos de complexidade emrelação aos anteriores, principalmente por abrir e incorporaro debate acerca da biotecnologia na sociedade atual. Kac assume uma posturacrítica ao usar seu projeto artístico para trazer àtona, questões importantes sobre as conseqüências domapeamento do código genético e seu uso na sociedade em projetosmeramente comerciais. Muitas vezes, o discurso científicoestá longe das pessoas comuns e deixa encoberto interesses econômicose comerciais que acabam, na maioria da vezes, confundindo as pessoas egerando idéias errôneas sobre os desdobramentos da biotecnologiae dos produtos transgênicos.
Aprimeira etapa do GFP Bunny foi realizada, mas com problemas que,de certa forma, ajudaram a tornar a discussão mais pública,um dos objetivos do projeto. No entanto, por outro lado, fizeram com queo projeto fosse, pelo menos por enquanto, interrompido.
Asegunda fase do projeto de Kac era iniciar um debate sobre as questõesbiotecnológicas, e que ocorreu com a comunicação públicado nascimento de Alba, em maio de 2000, na conferência Planet Workem San Francisco, Estados Unidos. A fase posterior ficou sacrificada. Tratava-sede levar Alba para viver na casa do artista como um animal de estimaçãocomum, mostrando como os animais transgênicos podem se relacionarnormalmente como os outros.
Nestafase o projeto foi interrompido. Apesar de previsto, o último desdobramentofoi vetado pelo centro onde Kac trabalhou. No entanto, toda a polêmicagerada pelo direito de ficar ou não com Alba fez com que a notíciase espalhasse rapidamente em quase todos os principais jornais do mundo.Os cientistas que comandam o Instituto Nacional de Pesquisa Agronômica(INRA), da França não permitiram a saída de Alba doLaboratório.
�Nãoquero mais ouvir falar nessa história de coelho verde�, indigna-seLouis-Marie Houdebine, diretor de pesquisas do Inra, responsávelpelo grupo de diferenciação celular no centro de Jouy-en-Josas,um dos criadores de Alba. "Esse animal não é uma fantasiade um pesquisador louco. É descendente de animais transgênicosprimários. Temos atualmente em nosso poder sete ou oito desse tipo,destinados a pesquisas sobre desenvolvimento embrionário".[17]
Kacavisou, também em entrevistas pelos principais jornais do mundo,que não iria entrar na justiça pelo direito de ficar comAlba, mas que continuaria respondendo e esclarecendo os pontos mais polêmicosapontados, pelos jornais e pelos cientistas, o que, de certa forma, fazcom que o projeto se desenvolva.
Osdois projetos, GFP Bunny e K 9, serviram de base para Kacdesenvolver Genesis, seu trabalho mais recente e que faz a conexãoentre a interatividade, as transmissões, o ambiente das telecomunicaçõese o da biotecnologia.
Pararealizar a obra, Kac traduziu o texto bíblico, primeiramente paracódigo morse e depois, com o apoio de cientistas, traduziu-o parauma sequência de DNA (ácido desoxirribonucléico) quefoi, em seguida, transformado em plasmídeo e injetado em bactériasE-coli. A tradução do código morse foi feitada seguinte maneira: os traços representam a Timina, os pontos aCitosina, o espaço entre as palavras a Adenina e o espaçoentre as letras a Guanina, os quatro elementos fundamentais do DNA que,combinados formam o código genético. Pela internet e tambémno espaço da instalação, os visitantes, atravésdo simples gesto de tocar em um botão, podiam provocar mudançasnaquela forma de vida desenvolvida ali.
Asbactérias que contém o gene Genesis, ao serem submetidasa luz ultravioleta emitem uma fluorescência ciano (azul esverdeado)e as bactérias que não contém o gene, ao serem submetidasà mesma radiação, emitem uma fluorescência amarela.Conforme as bactérias vão entrando em contato umas com asoutras, ocorre um processo de transferência, que pode produzir trêsvariações cromáticas: se as bactérias cianodoarem seus plasmídeos, ou vice versa, teremos bactériasverdes; se nenhuma doação ocorrer a cor das bactériascontinua a mesma; e se elas perderem seus plasmídeos, tornam-seocres. A mutação pode ocorrer a partir de três fatores:o processo de multiplicação natural das bactérias,a interação dialógica das bactérias e a emissãode luz ultravioleta que ainda serve para acelerar o processo de troca ealteração cromática.
Genesis,antes de ser apresentada no Instituto Cultural Itaú, em SãoPaulo, foi mostrada na Ars Eletronica, em Linz na Aústria,também em 1999. Em Linz, Kac fez o caminho de volta da experiência:após as mutações da bactérias, refez o códigogenético, o que gerou um outro texto, com pequenas alterações,como nos mostra Arlindo Machado:
Oresultado é um texto corrompido, ligeiramente desarticulado, maspleno de possibilidades interpretativas, podendo ser entendido como umaespécie de resposta rebelde da natureza à prevençãodivina de designar o homem como senhor de todas as formas vivas do universo.[18]
Oencontro com as estruturas tipicamente científicas no espaçoda galeria e a grande projeção mostram que trata-se de umaforma híbrida de produzir arte, de apropriar-se de estruturas distantesdo universo artístico e fora dos materiais mais comuns usados naconstrução das obras de arte. Especificamente no caso dasobras de Kac as apropriações do ambiente científico,mais especificamente do domínio da biotecnologia, vem refletindopreocupações que aparecem desde Time Capsule. No entanto,ocorre que se anteriormente, seus trabalhos eram mais dialógicose viabilizavam isso de forma mais visível ao visitante, com muitaspossibilidades de interação e construção conjuntada obra, agora a interatividade toma outro sentido.
Nestaúltima obra de Kac parece que, se por um lado há um avançoem relação aos esquemas, conceitos e materiais utilizadosna construção da obra, por outro parece que há umretorno. A experiência dialógica provocada pela interaçãoretorna a esquemas de interação mais contemplativos e menosinterativos, no sentido de construção da obra. Nãoque haja uma classificação das obras ou mesmo uma escalade valor, mas percebemos neste projeto de Kac um abandono das estruturasde comunicação como ponto de partida para a criação.Como nos fala Arlindo Machado, comentando a obra de Kac:
Nosúltimos anos, o trabalho de Kac radicalizou na direçãodos aspectos mais propriamente biológicos de sua indagaçãoe assumiu de modo mais categórico a tarefa de "criar obras vivas",no sentido que Villem Flusser falava.[19]
Estesentido que Flusser fala é justamente o de abrir espaço parao ambiente artístico se apropriar dos avanços da biotecnologia,dividindo a tarefa com os técnicos e cientistas. Isto pode ser vistonitidamente no projeto GFP Bunny, no qual Kac enfatiza o caráterpolítico da arte transgênica ao proporcionar, para um númeromaior de pessoas, mais informação sobre os desenvolvimentosda genética, levando este conhecimento para suas implicaçõessociais, políticas e étnicas.
Thisis where art can also be of great social value. Since the domain of artis symbolic even when interveninig directly in a given context, art cancontribute to reveal the cultural implications of the revolution underwayand offer different ways of thinking about and with biotechnology. Transgenicart is a mode of genetic inscription that is at once inside and outsideof the operacional realm of molecular biology, negotiating the terrainbetween science and culture.[20]
ComGenesis se inicia um novo tempo. A interação atravésdos instrumentos de comunicação,como ponto de partida, dá lugar a questões mais ligadas aoefeito da biotecnologia na sociedade atual e com isso se apropria de esquemasmais científicos para criar a obra. Não podemos deixar dever, que por outro lado, as interações em Genesisaparecem em esquemas mais sofisticados e mais híbridos entre ciênciae arte, e a interação torna-se mais simples, nos esquemasformais. Afinal, ao visitante só é permitido apertar um botão,fazendo somente uma escolha que apesar de simples, está simbolicamentecarregada de significados, já que com este toque de botãoaltera-se um organismo vivo, como fala Arlindo Machado:
Omais importante, porém, é observar como essa instalaçãosingela transforma o ato mais banal do mundo tecnológico -- apertarum botão, seja ele o botão do mouse ou de qualquer outrodispositivo -- num gesto carregado de sentido, pois não se tratamais de fazer aparecer ou desaparecer imagens, textos ou sons, mas de interferirsobre o próprio processo da vida. Em Genesis, Kac nos coloca numasituação de responsabilidade, convidando-nos a refletir sobreas implicações de cada um de nossos gestos.[21]
Passamosde uma interação na qual os instrumentos de comunicaçãoà distância ampliam a percepção humana parauma interação em que estão em jogo formas de vidae desdobramentos biológicos. Sem dúvida, nesta trajetóriadas obras mais recentes de Kac a preocupação com as repercussõesda biotecnologia combinada com os avanços da informáticageraram esquemas mais complexos e subjetivos, que apontam para uma visãoainda mais crítica e que tenta provocar uma reflexão no visitante.
4.Experiência temporal e estética no domínio da biotecnologia
Depoisde apresentarmos o percurso de Kac no ambiente biotecnológico, podemosindicar algumas implicações que suas obras trazem para ocampo da experiência estética.
Nestaatual fase biotecnológica, a obra de Kac reinvidicaainda mais as implicações estéticas e éticasdeuma inscrição num �eterno presente�. Se nas obras mais voltadaspara o domínio da telemática o suporte intensificava a transmissão(como no Projeto Ornitorrinco), enfatizandoo colapso do tempo, por meio da biotecnologiaKacestabelece uma obra que vai se construindo através dos organismosvivos.Existem algumas previsõessobre o desfecho da obra, mas a construção mais uma vez éda ordem do presente, do �eterno presente�, que vai se desdobrando atravésdas interações entre as bactérias, que podem ser provocadosou não pela interação dos usuários.
Passamosa ter uma criação que, mesmo sem a ação diretados participantes distantes, continua (eternamente) a ser construída(ou, pelo menos, até a experiência ser paralizada). Passamosda utilização de plataformas interativas para o uso da própriavida como material e suporte para a produção artística.A inscrição que existe ocorre internamente nos genes produzidosartificialmente, o que nos conduz, mais uma vez, à questãodas memórias artificiais. Obras como Genesis chegam mesmoa assustar o público que conhece outros trabalhos de Kac, pela quaseausência de características interativas. No entanto, por outroponto de vista, a obra está em constante interaçãoe não pára nem mesmo quando o museu está fechado (ouquando falta energia), já que as bactérias ficam continuamenteprocessando trocas.
Háaqui uma mudança de foco na trajetória de Kac, que, se poruma lado parece frustaros mais entusiastas da interatividade, por outro lado enfatiza a característicamais central da sua obra e também da mídia arte o tempopresentificado. Agora, ao contrário de termos esta presentificaçãoatravés das comutações e transmissões sincronizadas,passamos a encontrá-la situada internamente no �material� da obra(as interações entre as bactérias).
Otexto do livro bíblico Gênesis, escrito por inspiraçãodivina e que faz parte da própria constituição docódigo genético das bactérias, está entregueao acaso das comutações que elas irão operar, comou sem a participação da homem. O texto bíblico, queafirma que o homem tem o poder sobre todas as coisas da terra, do céue dos mares, ironicamente, está entregue a uma colônia debactérias sem que o homem possa interferir.
Podemosaté mesmo falar de um eterno presente internalizado em cada umadas bactérias. No entanto, pela primeira vez, Kac realiza uma obracom uma articulação com o tempo futuro, já que depoisdas bactérias terem sido alteradas através da luz infra vermelhae das trocas com outras bactérias, o artista retoma a obra e verificao resultado do texto bíblico. O colapso do tempo parece mesmo teralcançado o ponto máximo.
Seantes da incorporação da biotecnologia alcançávamoso colapso do tempo gerado pelo �eterno presente� da transmissão,agora temos um tempo presente que mostra a �construção� daobra imediatamente. Não é mais a transmissão que provocao eterno presente, mas a própria obra é vista, em plena construção.Observar a obra é ver o presente passar e o tempo quase reconstituir-se.
Agoranão há mais os esquemas diretos de interaçãoentre máquina e visitante, que permitiam a construçãoe a experiência da obra. No caso de Genesis, o raio de luzque atinge as bactérias pode ou não acelerar as mutações,tudo depende mesmo do material, ou seja, das próprias alteraçõesincontroláveis que as bactérias fazem por si mesmas.
Aforma de inscrição tecnológica que surge aqui é,mais uma vez, aquela que põe em crise a própria possibilidadede constituição da anamnese. As ações interativasdos visitantes não se inscrevemdeforma definitiva no curso de construção da obra, sãoapenas pequenos vestígios que podem ou não alterar a vidadas bactérias e o destino da obra. Em obras como o Projeto Ornitorrincoinscreve-se o eterno presente na impossibilidade de acumulaçãode passado, ao passo que aqui o que emerge é o eterno presente daobra que nunca para de ser construída, principalmente por ser construídacom matéria viva.
Asituação limítrofe entre a varredura e a anamnesepermanece nesta obra. A matéria viva acumula as açõesincontroláveis de suas comutações, deixando de forao homem. O eterno presente da contemplação da obra viva,que põe em crise a anamnese, articula-se agora com a varredura atravésdos procedimentos prévios que ao artista propôs, na criaçãodos genes e na construção da obra em si. O tempo eternamentepresentificado, produzido pela transmissão, em projetos como o Ornitorrinco,passa agora a residir na obra devido à natureza incontroláveldo suporte: a vida.
SILVA,Franklin Leopoldo. Tempo Realidade e símbolo. In: RevistaSexta Feira, nº 05. São Paulo: Editora Hedra, 2000.
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MACHADO,Arlindo. Um microchip no corpo. Disponível em <http://www.ekac.org>
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LYOTARD,Jean-François. Oinumano, considerações sobre o tempo.Lisboa: Editorial Estampa, 1990.
EDUARDO,Kac. Trangenic Art. Disponívelem <http://www.ekac.org>
[1]Professor Assistente III de Novas Tecnologias no Deptº de Com. Socialda PUC-Minas. Mestre em Comunicação pela UFMG
[7]Aobra foi realizada em São Paulo, na Casa das Rosas em 1997 dentrodo evento Arte Suporte Computador.
[8] MACHADO,Arlindo. Um microchip no corpo. Disponível em <http://www.ekac.org.>.Acessado em: 13 maio 2001.
[11] LYOTARD,Jean-François. Oinumano, p.57.
[12] LYOTARD,Jean-François. Oinumano, p.59.
[17]MACHADO, Arlindo. Por uma arte transgênica. Disponível em:<http://www.ekac.org. > Acesso em: 27maio 2001