Eduardo Kac
INTRODUÇÃO
"Time Capsule" é uma obra-experiência que se encontra emalgum lugar entre um evento-instalação, uma obra físicade local específico, na qual o local é ao mesmo tempo o corpodo artista e um banco de dados localizado nos Estados Unidos, e uma transmissãosimultânea na TV e na Web. O objeto que dá nome à obraé um microchip que contém capacitor e bobina integrados aochip, todos lacrados hermeticamente em vidro biocompatível. O chipcontém também um número de identificaçãopré-programado e irrepetível. A escala temporal do trabalhoestende-se entre o efêmero e o permanente, ou seja, entre os poucosminutos necessários para a conclusão do procedimento básico,a implantação do microchip, e o caráter permanentedo implante. Assim como acontece com outras cápsulas do tempo subterrâneasé sob a pele que essa cápsula do tempo digital se projetano futuro.
O PROCEDIMENTO
Ao entrar na galeria onde esta obra se realiza, o público vêum médico e um leito hospitalar cercado por um computador on-line,por equipamento adicional de transmissão e um dedo telerobótico.O médico inicia os procedimentos básicos limpando a peledo meu tornozelo com um antisséptico, insensibilizando uma pequenaárea com um analgésico. Eu concluo o procedimento usandouma agulha especial para inserir subcutaneamente o microchip passivo, queé, de fato, um transponder sem fonte de alimentaçãonem partes móveis, isto é, nada nele precisa ser trocadoou substituido. O processo de escanear o implante com um scanner portátilgera um sinal de rádio de baixa energia (125 Khz) que energiza omicrochip. Este então transmite seu inalterável e únicocódigo numérico de 16 caracteres, mostrado na tela de cristallíquido do scanner. Imediatamente após obter esta informação,registro-me via web no banco de dados. Essa é a primeira vez queum ser humano é catalogado nesse banco de dados, já que estetipo de registro foi originalmente projetado para identificaçãoe recuperação de animais perdidos. Eu me registro tanto comoanimal como como proprietário usando meu próprio nome. Apósa implantação, uma pequena camada de tecido conjuntivo forma-seem torno do microchip para evitar migração.
MEMÓRIA E INFORMAÇÃO
A documentação e identificação têmsido os impulsos mais importantes no desenvolvimento das tecnologias daimagem, desde a primeira fotografia até a ubiqüidade das câmerasde vídeo de vigilância. Ao longo dos séculos 19 e 20,a fotografia e demais instrumentos imagéticos funcionaram como umacápsula do tempo social, possibilitando a preservaçãocoletiva da memória de nossos corpos sociais. No final do século20, no entanto, testemunhamos uma inflação global da imagem,e o esvaecimento promovido pelas tecnologias digitais do poder sagradoda fotografia como verdade. Hoje não se pode mais confiar na naturezarepresentacional da imagem como agente vital da preservaçãoda memória e da identidade social ou pessoal. As atuais condiçõesnos permitem mudar a configuração de nossa pele por meiode cirurgia plástica com a mesma facilidade com que manipulamosa representação de nossa pele por meio da imagem digital,de tal forma que possamos nos transformar na imagem, de nós mesmos,que desejamos. Associada à capacidade de mudar o corpo e imagemexiste a possibilidade de obliteração de sua memória.À medida em que chamamos de "memória" as unidades de armazenamentode informação de computadores e robôs, antropomorfizamosnossas máquinas, fazendo com que elas se pareçam conosco.Ao longo deste processo, de forma sutil, nós também começamosa nos parecer com elas. A memória hoje se encontra em um chip. Ocorpo é tradicionalmente visto como o sagrado repositóriode memórias humanas, adquiridas por herança genéticaou através de experiências pessoais. Chips de memóriasão encontrados corriqueiramente dentro de computadores e robôse não dentro de seres humanos. Na obra "Time Capsule" a presençado chip ( com seus dados recuperáveis) dentro do corpo nos forçaa considerar a presença simultânea de memórias internasvividas, e memórias artificiais externas dentro de nós. Memóriasexternas convertem-se em implantes intracorporais, antecipando situaçõesfuturas nas quais eventos como este podem se tornar corriqueiros e levantandoproblemas acerca de legitimidade e das implicações éticasde procedimentos como este na cultura digital. Transmissões ao vivona televisão e através da Internet trazem estas questõespara perto de cada um, dentro de casa.
INCORPORAÇÃO A BIOTECNOLOGIA
Para considerarmos algumas dessa questões basta examinarmos melhoro presente, e não o futuro. Um exemplo é o rastreamento porradar para monitorar à distância a posição eo comportamento de animais tão pequenos quanto uma borboleta, etão grandes quanto uma baleia. O surgimento da biométrica,comsua conversão de traços pessoais irrepetíveis - comoos padrões da íris e os contornos das impressões digitais- em informação digital, é um sinal claro de que quantomais a tecnologia se aproxima do corpo, mais tende a permeá-lo.O atual uso bem sucedido de microchips em cirurgias na coluna vertebralabre uma área sem precedentes para investigação naqual funções do corpo são estimuladas e controladasexternamente por microchips. A pesquisa médica experimental paraa criação de retinas artificiais usando microchips no olhopara capacitar o cego a ver, por exemplo, nos obriga a aceitar os efeitoslibertadores dos microchips intracorporais. Ao mesmo tempo, a propriedade,a patenteação e a venda legal de mostras de DNA de culturasindígenas na Internet por empresas de biotecnologisas mostra quenem mesmo o mais pessoal de todos os traços biológicos estáimune à onipresença da tecnologia.
ÉTICA E TRAUMA
À medida em que vivenciamos, nos dias de hoje, a passagem parauma cultura digital - com interfaces padronizadas e padronizadoras queexigem que ao martelarmos um teclado estejamos sentados à uma mesacom o olhar fixo em uma tela - cria um trauma físico que amplificao choque psicológico gerado pelos cada vez mais rápidos ciclosde invenção, desenvolvimento e obsolescência tecnológica.Em sua manifestação mais óbvia esse trauma físicoassume a forma de dores nas costas e tendinite. Em sua forma menos evidente,a atual interface nos leva a uma contenção generalizada docorpo, o qual é então forçado a moldar-se àsformas cúbicas de computador (monitor e CPU). É quase comose o corpo tivesse se tornado uma extensão do computador e nãoo contrário. Talvez isso apenas reflita uma perspectiva geral datecnologia, já que a vida orgânica está realmente tornando-seuma extensão do computador à medida em que os vetores emergentesda tecnologia do microchip claramente apontam para fontes biológicascomo a única forma dar continuidade ao processo exponencial de miniaturização,para além dos limites dos materiais tradicionais. A necessidadede formas alternativas de experiências na cultura digital éevidente. Em Time Capsule o hospedeiro da memória digital éo corpo humano. Este fato talvez aponte para uma forma não menostraumática, porém, mais livre desta proposição.O corpo com vida necessita de movimentos irrestritos; apenas com a morteo corpo jaz em uma caixa. A presença intradermal de um microchiprevela o drama deste conflito à medida em que tentamos desenvolvermodelos conceituais que tornam explícitas as implicaçõesindesejadas desse impulso e que, ao mesmo tempo, nos permitam reconciliaraspectos de nossa experiência ainda considerados antagônicos,como o armazenamento e o processamento de informações e aliberdade de movimento, ambientes de network e interfaces úmidas.
Agradecimentos especiais para Dr. Paulo Flavio de Macedo Gouvea e aequipe da Casa das Rosas.
Tradução de Irene Hirsch e Solange Lisboa.
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