2007 Congress of the Latin American Studies Association, Montréal, Canada September 5-8, 2007
Kant after Kac
Virginia de Araujo Figueiredo
Resumo: De acordo com o diagnóstico de Thierry de Duve, entre outros teóricos da arte,
o problema da arte contemporânea há muito tempo deixou de ser uma questão sobre a
beleza e transformou-se numa questão sobre a arte. Segundo aquele autor, que marcou
data para essa mudança histórica, foi no período entre os salões de 1851 e 1863 (Salon
des Refusés) que ocorreu essa importante mudança do problema estético. Portanto, há
muito tempo, está em curso o processo de equivalência ou achatamento das antigas
diferenças entre o artista e o público, entre o fazer e o julgar, e o artista contemporâneo,
concordando ou não, habita de modo irremediável esse ambiente: como se a arte, em
reação à especialização crescente (e excludente) do discurso científico, tivesse tomado o
caminho da dissolução de toda e qualquer fronteira. Não há limites previamente
impostos nem quanto à forma nem quanto à matéria, suporte do objeto, assim como em
qualquer tempo e espaço pode ocorrer a fabricação e a fruição das obras de arte. Isso
sem falar nas alardeadas conseqüências da reprodutibilidade técnica, dentre as quais,
destaca-se a ampliação definitiva a todos os níveis da escala social do acesso à arte. Em
resumo, a produção da arte contemporânea se dá entre dois limites: um, objetivo: tudo
pode ser arte; e outro, subjetivo: qualquer um é artista. Foram essas, certamente, as
condições históricas de possibilidade da arte transgênica do artista plástico brasileiro
Eduardo Kac. Dentre todas as suas obras (transgênicas) recentes, elegi aquela intitulada
“GFP Bunny”, que consistiu na criação de um coelho verde fluorescente por meio de
uma proteína que lhe conferiu essa cor. Nas próprias palavras de Kac, trata-se de “uma
nova forma de arte decorrente do uso de engenharia genética na transferência de genes
naturais ou sintéticos para um organismo com o objetivo de criar seres vivos únicos”...
Ou: “um animal quimérico que não existe na natureza (isto é, quimérico no sentido da
tradição cultural dos animais imaginários)”. Através da análise dessa obra de Kac,
tomada como exemplo de produção contemporânea, meu trabalho pretenderá verificar a
atualidade de alguns conceitos provenientes das Estéticas Esclarecidas, principalmente
as de Kant e Schiller, sobretudo aquelas noções que iluminam as antiqüíssimas relações
que a arte tem com a natureza e com a ética.
- - -
«O contemporâneo é [...] um período de impecável liberdade estética.
Hoje não há mais qualquer limite histórico. Tudo é permitido. »
Arthur DANTO2
Este trabalho compõe-se de três partes: na primeira, tentarei caracterizar brevemente as
condições de possibilidade da produção contemporânea da arte, a partir da constatação
de que hoje se encontram abolidos todos os limites: do lado objetivo: tudo pode ser arte;
e do subjetivo, como o artista alemão Joseph Beuys já previra: todo mundo é artista. Na
segunda parte, não menos brevemente, tentarei examinar a possibilidade de identificar o
juízo interrogativo (“Isto é arte?”), o qual caracterizaria, segundo Thierry de Duve, a
essência da experiência da arte contemporânea, com o juízo reflexionante estético. Na
esperança de que o “kantismo” de de Duve nos forneça elementos para “atualizar” a
Estética de Kant. Finalmente, na terceira parte, analisarei a obra de arte do artista
brasileiro contemporâneo, Eduardo Kac, chamada GFP Bunny, “Green Fluorescent
Protein Bunny”.
I. Contexto da arte contemporânea.
Para caracterizar as condições de possibilidade da arte contemporânea, poderia
apelar para muitos diagnósticos de variada origem, pois acredito que nenhum deles
discordaria da epígrafe deste trabalho, enunciada pelo filósofo norte-americano, Arthur
Danto, assumidamente hegeliano, para quem a nossa época, pelo menos, em termos de
arte (sem querer estender ao ético, ao científico, e muito menos ao político), poderá ser
facilmente identificada como a mais livre de todos os tempos e na qual “Tudo é
permitido!” Tentemos então examinar essas condições a partir de um desses
diagnósticos. Elejo o de Thierry de Duve, filósofo da arte belga, herdeiro de Clement
Greenberg e, portanto, de Kant.
Thierry de Duve indicou o período entre os salões de 1851 e 1863 (Salon des
Refusés) como o momento histórico de uma importante mudança do problema estético.
Segundo ele, a partir daquele momento, a questão tinha deixado de ser sobre a beleza e
se transformado em questão sobre a arte. Se o primeiro elo dessa espécie de arco ou
corrente, segundo de Duve, tinha sido o Salon des Refusés (1863), ao qual o povo tinha
sido convidado a participar como espectador, o último elo teria ocorrido com Duchamp,
quando acontece o último deslocamento possível da produção ou criação propriamente
dita da obra de arte. Segundo o diagnóstico do filósofo da arte belga, teríamos chegado
ao ápice daquele processo, inaugurado com os Salons do século XIX, quando, desde
Duchamp, além do julgamento, concedeu-se ao público leigo também o direito da
produção. Com a “arte” (“intervenção”? “Gesto”? – é difícil designá-la justamente
“produção”) de Duchamp, desapareceu toda e qualquer oposição ou distância entre o
artista e o espectador, entre arte e estética, entre o gosto e o gênio. Como afirmou
Joseph Beuys, artista plástico alemão: “todo mundo é artista”.3
De acordo ou não com esse processo de equivalência ou achatamento das antigas
diferenças entre o artista e o público, entre o fazer e o julgar, é esse irremediavelmente o
ambiente característico da arte contemporânea. Também aí não é mais possível
estabelecer previamente qualquer limite quanto à forma ou à matéria4, suporte do
objeto, assim como ao lugar de fabricação que, há muito tempo, deixou de ser o “ateliê
do artista”5. Isso sem falar nas alardeadas conseqüências da reprodutibilidade técnica,
condições essas hoje ainda aumentadas exponencialmente com a Internet6, dentre as
quais se destaca a possibilidade de ampliação democrática do público da arte que ainda
está, hoje, infelizmente, longe de efetivada. Utilizando o antigo jargão marxista,
poderíamos dizer que as condições técnicas dessa ampliação do público da arte já
estariam até dadas, faltando apenas uma apropriação política das mesmas.
Mesmo com o prejuízo de deixar um pouco embaçada a distinção cronológica
tão importante para a história das artes visuais, entre o moderno e o contemporâneo,
como vimos, o grande “corte” ou “ruptura”, para Thierry de Duve, ocorre na obra de
Duchamp, em 1917, que vem, na verdade, cristalizar a grande mudança ocorrida ainda
em meados do século XIX e que consistiu na transformação do juízo “Isto é belo” na
pergunta: “Isto é arte?” O fato de de Duve caracterizar a experiência contemporânea da
arte como sendo essencialmente judicativa já demonstra, de antemão, sua profunda
afinidade com a Estética kantiana. Gostaria de poder examinar aqui a possibilidade de
identificar o juízo interrogativo (“Isto é arte?”), o qual caracterizaria, segundo o autor
belga, a essência da experiência da arte contemporânea, com o juízo reflexionante
estético. Será que o juízo “Isto é arte?” poderia ser classificado como um juízo de
reflexão? Ou ainda, o que significaria, qual seria o interesse de qualificar o juízo
“deduviano” como um juízo de reflexão? Quero dizer, no sentido em que era precioso e
importante para Kant, isto é, distinguindo-o de um juízo meramente objetivo,
conceitual, numa palavra, intelectual? Em que medida a experiência estética
contemporânea não se transformou numa experiência exclusivamente conceitual e
intelectual? Não seria, hoje, legítimo dizer que experimentar uma obra de arte significa
apenas encontrar uma definição conceitual do que seja arte? Os artistas conceituais não
promulgaram que a obra e arte era “uma proposição analítica, uma tautologia, análoga a
‘Um triângulo tem três lados’”7?
O que pretendo defender aqui será uma opinião contrária a esse reducionismo
exacerbado que marcou, por exemplo, os artistas conceituais, que tentaram reduzir a
obra de arte a uma proposição analítica, e, por conseguinte, a experiência estética, a algo
de estritamente conceitual. Que a característica específica e marcante (da obra de arte
moderna/ contemporânea) consista em incluir como, sua parte essencial, a questão
filosófica “O que é arte?”, disso ninguém discorda: Thierry de Duve, ao privilegiar a
Fountain de Marcel Duchamp, Arthur Danto, ao exaltar a obra de Andy Warhol8, e
muito antes dos dois, faça-se justiça, Adorno, logo nas primeiras páginas da sua Theoria
Aesthetica9. Mas, concordar com essa afirmação não implica necessariamente concluir
junto com o grupo de artistas ingleses que se reuniram em torno da Revista Art-
Langage, cujas atividades iniciaram-se em meados da década de 70, identificados mais
tarde como a vanguarda desse movimento chamado de “Arte Conceitual”10. Quero
dizer, se se constata na contemporaneidade um aumento da afinidade entre arte e
filosofia, isso não significa reduzir a obra de arte a um mero conceito.
A partir dessa resistência à redução intelectual da experiência estética é que se
renovou meu interesse pela Estética de Kant e pela possibilidade de “atualizá-la”, na
medida em que uma de suas noções mais importantes, a de reflexão, nos permite
qualificar o prazer estético como distinto, não somente da mera sensação empírica,
como também, distinto da operação exclusivamente intelectual. Para levar à frente a
tarefa da atualização, propus-me a seguir de perto, com alguma esperança, o “kantismo”
de de Duve, começando pela sua sugestão de estabelecer uma analogia entre os juízos
contemporâneos sobre a arte e o juízo reflexionante estético, aquele mesmo, analisado
na “Analítica do Belo” da Crítica da Faculdade do Juízo.
II. Será o juízo “Isto é arte” um juízo estético reflexionante? Ou: da atualidade da
Estética de Kant
Diante dessas, afinal, difíceis, dificílimas condições de possibilidade,
caracterizadas acima como suspensão de todo e qualquer limite: do lado objetivo: tudo
pode ser arte; e do subjetivo: todo mundo é artista, alguém poderia se perguntar, com
todo direito, se ainda seria possível julgar, criticar? E, pior do que isso, julgar e criticar a
partir de uma Estética, como a de Kant, dependente de noções como as de beleza (que
significa, ao contrário do “tudo pode ser arte”, “quase nada pode ser arte” ou ainda, o
objeto belo é um objeto especial, que “melhora, aperfeiçoa”11 a realidade) de gênio
(“quase ninguém é artista”). Hoje, ao invés de pretender atualizar proposições
inegavelmente tributárias de uma Estética chamada com acerto de “Clássica”12, como as
que acabam de ser mencionadas, a saber: “a arte é um objeto especial (i.é., um objeto
belo ou sublime)” ou “o artista é um sujeito excepcional (i.é., um gênio)”, o que, de
fato, já tentei em outros lugares13, vou me restringir a duas noções: a reflexão e a
universalidade sem conceitos, cuja vigência ousaria dizer que se manteve praticamente
inalterada apesar da imensa distância que nos afasta daquela Estética.
Essas duas contribuições insuperáveis e definitivas da Estética de Kant, a meu
ver, a experiência da arte contemporânea não só não as tornou obsoletas como, ao
contrário, ainda estendeu, ampliou e até intensificou a sua vigência. Pois, o que seria do
prazer do espectador se não fosse o seu vínculo estreito com um sentimento mediato
que Kant chamou de “reflexão”? Qualquer um que se ponha diante da Fountain de
Duchamp, da Brillo Box de Warhol ou da cabra de Rauschenberg (indiferentemente, isto
é, diante de (quase) qualquer obra de arte contemporânea) há de concordar que
dificilmente, elas promovam alguma sensação imediata de prazer... Por outro lado,
como a experiência da reflexão é feita por cada sujeito a cada vez que algo se põe diante
dele reivindicando ser uma obra de arte, não hesito em chamar a essa “experiência” de
“crítica”. E concluir que, devido à extrema liberdade estética que a nossa época vive,
nunca foi tão necessário, e até imperativo o exercício dela, isto é, da crítica.
Considero a “reflexão” uma noção estratégica para a Estética de Kant e talvez a
isso se deva sua permanência até os nossos dias. Foi a reflexão que permitiu Kant
sustentar o universalismo (sem abrir mão da singularidade da experiência de cada um)
do juízo estético, de modo contrário ao das Estéticas Empiristas que, indiferentes à
universalização, ligavam o prazer estético aos sentidos imediatos. Assim, Kant “deveu”
à reflexão, a possibilidade de classificar o prazer estético como nem imediato nem
sensível, sem ter, contudo, de negociar seu aspecto subjetivo. A meu ver, o caráter
reflexionante do juízo estético kantiano constitui, sobre os demais, uma vantagem
inigualável na avaliação e crítica da arte contemporânea.
Por outro lado, resistindo àquela redução intelectual da experiência do
espectador contemporâneo, caricaturizada pelos artistas conceituais, voltemo-nos sobre
a fórmula paradoxal do segundo momento da “Analítica do Belo”, principalmente sobre
a sua metade final: “universalidade sem conceito”, a qual não deixa de estar relacionada
(e de maneira intrínseca) à reflexão. Pois o interesse na delimitação kantiana da
Estética, enquanto âmbito do juízo reflexionante, é que, se ela, de um lado, não coincide
com a sensibilidade material, empírica e imediata; por outro, ela também não se reduz
ao exclusivamente intelectual, isto é, ao conceitual. Esse território crítico aberto pela
reflexão aparece fornecendo uma alternativa a Kant contra o ceticismo e o dogmatismo
estéticos. Nem somente sensível, nem apenas cognitivo, o estético exige uma jurisdição
específica e irredutível, que diz respeito a todas as faculdades, sem privilégio ou
predomínio de nenhuma delas sobre outra. Esse ambiente lúdico da reflexão que é
estimulante tanto para o entendimento quanto para a imaginação foi o que Schiller
denominou de “liberdade”.
A atualidade da Estética kantiana residiria, portanto, na sua livre indeterminação
conceitual? A sua impossibilidade de nos fornecer um conceito de belo seria transferida
para a indeterminação (contemporânea) do conceito de arte? Mas alguém poderia
objetar que Kant não deixa de nos fornecer uma precisa definição de belo como a
consciência do livre jogo (ou harmonia) entre as faculdades do espírito. Diante disso,
não se pode duvidar, pois, de fato, o belo é um sentimento do acordo entre as
faculdades. No entanto, essa definição está restrita ao domínio subjetivo e, portanto,
incapaz de determinar qualquer critério objetivo. E isso mesmo que poderia parecer uma
carência, um fracasso, na verdade, constitui sua potência, sua ilimitada generosidade,
capacitando o juízo sobre a arte a acolher na sua jurisdição, sempre em progresso, o
mais novo, inesperado e surpreendente objeto.
Comparemos: a Estética de Hegel, preocupada em refutar o “subjetivismo”
(designado por ela mesma) da Estética de Kant, obcecada, portanto, em fornecer um
critério objetivo que permitisse identificar a beleza no mundo humano e espiritual
(opondo-se também aqui ao “belo natural” kantiano), não hesitou em indicar um
conceito objetivo de belo, identificando-o com a perfeita adequação (ocorrida, inclusive,
historicamente, entre os Gregos) ou harmonia entre forma e conteúdo. Sem dúvida que,
diante de um conceito como esse, será impossível permanecerem arte, mais uma vez, a
Fountain de Duchamp, as latas de sopa Campbell de Warhol. Imaginem a cabra ou a
cama lambuzada de tinta de Rauschenberg, os parangolés de Oiticica, o rodo inútil de
Waltércio Caldas, as tranças de Tunga e tantos e tantos outros (Todos!) exemplos de
obras de arte que habitam hoje os museus e galerias nacionais e internacionais! Aqui,
teríamos de concordar com Hegel e anunciar que a Arte (cujo exemplo paradigmático
foi a bela arte escultórica dos Gregos, na qual o Ideal da perfeita adequação entre forma
e conteúdo foi realizado) chegou ao fim. Aliás, é possível que ela venha chegando ao
fim desde aquele apogeu grego, pois alguém poderia afirmar, com alguma razão, que o
belo foi mais exceção do que regra na História da Arte.
Desviando um pouco da questão principal, alguém poderia alegar não em favor
de Hegel, mas ainda contra Kant, que qualquer “Estética do Sublime”, daquelas que
tanto proliferaram durante o século XVIII, como por exemplo, as Observações
Filosóficas sobre a origem das nossas idéias de belo e de sublime de Edmund Burke,
estaria apta a lidar com o desprazer sensível que parece caracterizar imediatamente a
arte contemporânea. De fato, esse inegável traço de “sublimidade” parece nos ligar a
uma questão bastante freqüente no Século Estético, a saber, do prazer que afinal
sentimos com a dor e o desprazer, que o disforme e o grandioso nos causam. Foi
tentando dar uma solução a esse problema que Edmund Burke, por volta de 1750,
propôs a noção de “delight”, que consistia numa espécie de prazer negativo ou de
interrupção (alívio) da dor. Sem dúvida, as Estéticas preocupadas com a experiência do
sublime estão mais próximas da contemporaneidade do que, a meu ver, a hegeliana, a
qual carece precisamente de uma noção mais estética e menos histórica do sublime.
Pode estar parecendo que me interessa defender a noção de sublime kantiano14,
mas não se trata “apenas” disso. Embora, junto com outras, desenvolvidas no século
XVIII, como indiquei acima, considere-a mais afinada com a nossa época de quase
nenhuma beleza artística, o que estou tentando defender e que talvez seja um pouco
mais difícil, é que qualquer critério objetivo ou conceito prévio seja ele de belo, de feio,
ou de sublime estaria fadado ao fracasso na sua tentativa de apreensão filosófica da
produção recente da arte. Num ambiente em que “tudo pode ser arte”, a necessidade de
uma reflexão singular, caso a caso, só fez agravar-se. Mesmo sem qualquer critério ou
conceito estabelecido previamente (vem daí uma das grandes dificuldades das condições
contemporâneas da experiência estética), o espectador não pode permanecer passivo,
acatando tudo o que lhe colocam diante dos olhos, como se fosse arte. Mais do que
nunca, o espectador está “obrigado” ao exercício da crítica, mais do que nunca, ele tem
de se perguntar, como de Duve nos indicou: “isto é arte?”
Que o juízo reflexionante estético de Kant estava longe de uma determinação
conceitual objetiva é indubitável. Mas é preciso repetir que, muito embora sem fornecer
um conceito objetivo do belo, Kant jamais abdicou do princípio da crítica, desse mesmo
princípio geral que, ao que parece, foi inaugurado por sua filosofia e continuou em
voga, e talvez tenha até se acirrado na contemporaneidade. O problema é a
“qualificação”, o modo de fazer operar esse princípio. Kant sempre fez questão de
distinguir os juízos reflexionantes estéticos dos juízos determinantes de conhecimento
os quais, dispondo de um conceito a priori do entendimento, eram capazes de, ligando-
se aos dados fornecidos pela sensibilidade, justamente, determinar ou conhecer o
objeto. Fica faltando ainda provar se o exercício da crítica contemporânea da arte
drasticamente sintetizada por de Duve, no juízo interrogativo “Isto é arte”, suscitado no
espectador (e, portanto, incluído necessariamente na obra de arte hoje) poderá
compartilhar das características do modelo de juízo que Kant elaborou para refletir
sobre o belo na natureza e na arte, ou seja, poderá ser também qualificado como um
juízo reflexionante. Pois, pode ter ocorrido que a experiência estética contemporânea
tenha se afastado a tal ponto do sensível, que se tenha transformado, de maneira
definitiva e irrevogável, numa experiência exclusivamente intelectual, conceitual...
Como se vê, é urgente enfrentar a tarefa de descrever a atividade reflexionante,
tentando demonstrar, primeiramente, qual a sua diferença com relação à experiência
cognitiva. Talvez, duas operações caracterizem a experiência reflexionante: 1. a
analítica: da separação e da distinção; 2. a sintética: da união promovida pela
comparação. Comecemos pela definição de reflexão transcendental que nos é dada por
Kant no capítulo sobre a “Anfibologia dos Conceitos da Reflexão”15da Crítica da
Razão Pura:
“Nem todos os juízos necessitam uma investigação, isto é, uma atenção sobre os
fundamentos da verdade [...] Entretanto, todos os juízos, antes, todas as comparações
necessitam uma reflexão, isto é, uma distinção da capacidade de conhecimento à qual
pertençam os conceitos dados. O ato pelo qual aproximo a comparação das representações
em geral com a capacidade de conhecimento, em que aquele é instituído e pelo qual
distingo se tais representações são comparadas entre si como pertencentes ao
entendimento puro ou à intuição sensível, denomino-o reflexão transcendental." (grifo
meu)16
Não resta dúvida de que essa operação que chamei de “analítica” e que consiste
na capacidade de discriminar e separar as representações, classificando-as como
provenientes do entendimento ou da sensibilidade, tem alguma afinidade com a função
crítica. Além disso, essa prerrogativa ou espécie de “direito de ir e vir” e percorrer sem
qualquer restrição o território das faculdades tão distintas e heterogêneas, parece ter
garantido à crítica um atributo muito importante, o qual não passou desapercebido, mais
uma vez, a Schiller, que é o da liberdade. Assim, acredito que tenha sido a importância
dessa operação da reflexão, o que tenha levado Jean-François Lyotard, em seu livro
Leçons sur l’Analytique du Sublime, a chamá-la de “faculdade crítica por excelência”.
Mas, ocorrendo quase simultaneamente, Kant indica uma outra operação,
também típica da reflexão, a que chamei de “sintética” e que consiste na comparação.
Será necessário então, primeiramente, tentar demonstrar o papel que a comparação vai
desempenhar na ordenação (isto é: a função de totalização e unificação) do sistema de
uma experiência possível, mantendo-a sempre distinta da experiência cognitiva; em
seguida, terei de provar se, ao enunciar um juízo estético contemporâneo, ainda se trata
daquela mesma experiência da reflexão, descrita por Kant. Portanto, antes de nos
perguntarmos se a comparação, característica da reflexão, pode ser “aplicada” aos
juízos contemporâneos sobre a arte, temos de tentar elucidar o traço que distingue a
experiência, digamos, reflexionante da cognitiva, determinante.
Segundo Baudelaire e, depois dele, Walter Benjamin, a experiência moderna e
urbana seria caracterizada pela monotonia, o tédio e o spleen. A meu ver, essas são
características ainda vigentes no nosso modo contemporâneo de experimentar o mundo.
Pergunto se elas não decorreriam de uma “experiência existencial do conceito”17. Com
outras palavras, não seria o tédio o correspondente “sentimental” da experiência
cognitiva, conceitual que se tornou absolutamente predominante na nossa época de
saturação científica? Qual poderia ser o efeito existencial principal do conceito senão
precisamente nos assegurar de que habitamos um mundo (sem surpresas) feito à nossa
medida? Explicando melhor, quando dizemos, definindo: “Isto é um cachimbo!”, não
encerramos ali a conversa e liberamo-nos para seguir adiante, sem nos preocuparmos
mais com o tal cachimbo? Definir a coisa pelo conceito não significa, num certo
sentido, dominá-la, sossegá-la, cristalizá-la em sua essência? Isto é: a coisa mesma
deixa de atormentar-nos, assediar-nos! O conceito parece uma moeda que nos
tranqüiliza: uma vez “cachimbo”, sempre cachimbo!
Em oposição a essa experiência existencial do conceito, se ergueria a
experiência estética da reflexão, a qual requer toda nossa atenção justamente porque o
seu “objeto” (natural ou artístico) é excessivo relativamente ao conceito. Sem contar
com um conceito, sem tê-lo à mão, nossa atenção aumenta. Assim também nossa
inquietude. Estamos diante de algo que resiste à nossa dominação pelo conceito. Somos
capazes de representá-la (a coisa), mas não de inseri-la no nosso sistema de
representações. Sentimos a urgência de organizar essas mesmas representações inéditas
e novas. Queremos atribuir-lhes um sentido, narrá-las, incluí-las numa história, num
sistema. Nesse momento, mesmo sem saber o que propriamente juízos estéticos
comparam18, nós comparamos. Assumimos a atitude atenta da reflexão, que foi definida
por Kant como essencialmente comparativa.
É preciso comparar mesmo se constatamos, ao retomar a citação da Crítica da
Razão Pura, que é estranho comparar uma “representação com o conhecimento em
geral”. Não são termos heterogêneos: representações e conhecimentos? Assim como no
caso do belo natural, perguntaríamos: o que nos permite comparar flores com rios,
alvoradas com montanhas? E Kant responderia: “Nada, a não ser a consciência de que,
diante deles, as minhas faculdades internas são estimuladas a entrar em jogo e dessa
harmonia provém um inegável sentimento de prazer.” Assim, nada há de comum
(objetivamente falando) entre flores e montanhas, a não ser a intensidade que o sujeito
experimenta diante do objeto designado “belo”, a qual, justamente, nos tira daquela
monotonia ou tédio que caracteriza a nossa rotina (afinal, distraída) do mundo
conceitual. A coisa bela costuma exigir a nossa atenção precisamente por ser excessiva
com relação ao conceito. Não é possível “sossegá-la” como o cachimbo do parágrafo
anterior, porque é impossível cristalizá-la; com outras palavras, subsumi-la sob um
conceito: o belo é isso.
Talvez se encontre no famoso ensaio de Heidegger sobre “A origem da obra de
arte”, uma bela descrição do que chamei aqui de “experiência existencial do conceito”.
Talvez (malgrado Heidegger) a “experiência existencial do conceito” nada mais queira
dizer do que experiência da razão instrumental, tal como a conceberam os filósofos da
Escola de Frankfurt. Com efeito, falando do par de sapatos da camponesa, Heidegger
não descreveu nada além da experiência utilitária, instrumental, por oposição ao
acontecimento da verdade que ocorre na obra de arte (no caso, os sapatos pintados por
Van Gogh). A camponesa no campo:
“usa seus sapatos na terra lavrada, pois é aí que os sapatos são o que realmente são. Quanto
menos atenção a camponesa dedica a eles em seu trabalho, mais eles se prestam ao serviço
de alguma coisa, mais correspondem a seu ser.”19
Como a utilitária, a experiência do conceito é desatenta. Como a camponesa que
veste seus sapatos, sequer olhamos os objetos que nos cercam cotidianamente, neles
menos ainda pensamos. No dia-a-dia, de manhã, a camponesa encontra seus sapatos no
mesmo lugar em que ela deixou na noite anterior. A vida no conceito é segura, sem
interrupção; ela é diametralmente oposta ao Unheimliche, que interrompe, quebra,
suspende o fio da certeza. Enquanto o sentimento estético em Kant desencadeia uma
suspensão, livra-nos do fio contínuo da nossa cotidianidade, intensificando nosso
sentimento vital20. Talvez se possa identificar a reflexão com a atitude do « livre favor »
(freie Gunst21) em relação ao objeto belo. A essa atitude reflexionante, Kant dará outros
nomes: contemplação, Verweilung, “demora” 22, como traduziram Valério Rohden e
Antonio Marques para o português. Da minha parte, gostaria de ainda acrescentar a
expressão: “experiência estética”.
Se me concedem já ter, senão demonstrado, pelo menos, indicado o papel da
comparação, enquanto atividade típica da reflexão, na diferenciação entre a experiência
estética e a cognitiva, ficaria faltando ainda provar se, ao enunciar hoje “Isto é arte!”, se
trataria da mesma reflexão, realizada, segundo Kant, pelo juízo “Isto é belo”. Se o
resultado dessa última etapa for negativo, isto é, se ficar provado, ao contrário do que
aqui se deseja, que o juízo interrogativo “Isto é arte?” cobra apenas uma resposta
conceitual, e que, por conseguinte, se tenha de concluir que a experiência estética
contemporânea tornou-se definitivamente intelectual, então, será inevitável decretar,
junto com Arthur Danto, a falência ou a obsolescência da Estética kantiana23. Pois,
vimos que um dos esforços de Kant para defender a autonomia do Estético, consistia em
mostrar a sua especificidade e irredutibilidade ao conhecimento e à cognição. Mas, se
ao invés disso, se prova que o juízo “Isto é arte?”, também sem conseguir determinar
afinal um conceito, suscita uma experiência de atenção contemplativa a partir do objeto
que reivindica o estatuto de “arte”, que estimula e intensifica o jogo das faculdades,
ampliando assim nosso sentimento de mundo, então será possível concluir que o juízo
crítico “Isto é arte?” é apenas uma forma atualizada do juízo reflexionante estético
kantiano.
Poderemos afirmar que a experiência estética contemporânea se caracteriza por
uma indeterminação conceitual? Se provarmos que o conceito de arte de nossos dias é
indeterminado (o que ele parece bem ser), então, será muito fácil demonstrar a sua
afinidade com o belo, segundo a Estética de Kant. A que conceito, a que aspectos
homogêneos subsumiríamos as obras de arte contemporâneas? Creio que seja fácil
estabelecer um acordo unânime acerca da impossibilidade de atribuir um mesmo
conteúdo objetivo a experiências tão diversas como uma cabra lambuzada de tinta (de
Rauschenberg), os parangolés (de Oiticica), um rodo inútil (de Waltércio Caldas), umas
tranças (de Tunga), mas também a Madona Sixtina de Rafael e os quadros de Pollock?
O que dizer, então, dos elefantes? Serão também arte?24 E as baratas?25 Então,
quando você aponta, indicando “Isto é arte”, você sabe que não está conferindo nenhum
sentido preciso à palavra “arte”. Não está subsumindo a coisa (“Isto”) sob qualquer
conceito.26 Será então que podemos, finalmente, concluir que a operação do espectador
contemporâneo coincide com o procedimento a que Kant chamou de “reflexão”? Essa
operação simples que consistia também numa comparação entre termos totalmente
heterogêneos? Monalisa de bigodes, cabras lambuzadas de tinta, elefantes ao vivo,
camas dependuradas, baratas torturadas, chapas flexíveis de policarbonato transparente,
coelhinhos verdes transgênicos? Mas também, as pinturas (representativas, “imitativas”
– de que mesmo?) quatrocentistas italianas, os impressionistas franceses e assim por
diante. Ao que parece, esse pequeno termo “arte” deve abranger um universo tão grande
quanto o infinito!
Aliás, Thierry de Duve nos sugere que a arte seja definida como um nome
próprio, como Maria, Joana e Gabriel. De fato, sob o nome próprio de Maria, estão
contidas muitas mulheres, cujas características estão longe de ser comuns. Elas podem
ser magérrimas, gordas, louras, morenas, feias, lindas, atléticas, intelectuais que gostam
de ler Schiller, outras, que odeiam estudar, umas que adoram a cor verde, outras que só
usam a cor preta e por aí adiante, infinitamente, como fechar um conjunto que a cada
dia se acrescenta um novo elemento? Conclui de Duve que, quando dizemos que “Isto é
arte”, nós referimos a coisa a todas as outras que julgamos através do mesmo
procedimento, em outras épocas (tempos) e em outros lugares (espaços). Com outras
palavras, continua de Duve, muito embora eu não possa, a cada “hic et nunc da
experiência”, ter acesso à totalidade do que chamo de arte, ou pelo menos, à consciência
dessa totalidade, posso manter que “juízos estéticos comparam coisas comparáveis
quando ele confronta um sentimento presente à reatualização de sentimentos
passados”27
A livre indeterminação constitui essencial e progressivamente a possibilidade
(ou condição) da arte, na medida em que sua meta não é, de forma alguma, a
verificação, procedimento científico comum, por exemplo, o de verificar a consistência
de uma hipótese, ou a verdade de um conceito na realidade. Na estética, trata-se,
diferente e estranhamente, de uma ampliação da realidade e da experiência possível.
Vem daí a idéia de que a arte é um fenômeno saturado, que tem mais realidade do que a
razão é capaz de conhecer ou o entendimento reconhecer. Vem daí também o elo,
consolidado pela Estética kantiana, que a arte sempre tem com a originalidade e com a
liberdade. Lembremos da epígrafe que está no início deste trabalho, a frase de Danto,
especificando a condição da arte contemporânea como sendo a de uma inédita
liberdade. Liberdade que, do ponto de vista da história, segundo o mesmo autor, seria
ilimitada, pois, como ele afirmou, “o contemporâneo é [...] um período de impecável
liberdade estética. Hoje não há mais qualquer limite histórico. Tudo é permitido.”28
Originalidade e liberdade são, certamente, elementos importantes para desencadear
nosso prazer diante de uma obra de arte. Esse prazer não advém do conhecimento mas
de uma experiência de ampliação das fronteiras do mundo. Nosso tempo e espaço de
(experiência de) mundo são ampliados pela recepção da obra de arte livre. No mundo
(estético) onde “tudo passou a ser permitido” e onde todos se tornaram artistas, o
princípio da crítica, que é um princípio subjetivo-objetivo, torna-se urgente e
imperativo.
III. GFP Bunny, “Green Fluorescent Protein Bunny (ou traduzindo para o português: o
Coelhinho da Proteína Verde Fosforescente)”
Introduzo esta terceira e última etapa do meu trabalho, na qual irei apresentar a
obra de arte, GFP Bunny do artista brasileiro contemporâneo, Eduardo Kac, com uma
citação do Livro J, das Passagens de Walter Benjamin. Como acontece frequentemente
nessa obra de Benjamin, trata-se de uma citação. A obra contém uma pletora delas. No
nosso caso, do poeta Charles Baudelaire. Mas o jogo das remissões não acaba no poeta
francês, uma vez que ele vai nos contar não uma história que se passou com ele, mas
com Balzac, para ilustrar um possível princípio ou lei da crítica de arte. Vocês vão
constatar que esse princípio ou lei não poderia ilustrar o juízo de gosto no sentido
estritamente kantiano, isto é, puro, mas bem que poderia ser classificado como um
“juízo de gosto aplicado”29. Vamos à citação:
“Conta-se que Balzac... encontrando-se um dia diante de um... quadro de inverno bastante
melancólico e carregado de bruma, semeado de cabanas e de camponeses miseráveis –
depois de haver contemplado uma casinha de onde subia uma pequena fumaça, exclamou:
‘Como é belo! Mas o que fazem eles nesta cabana? Em que pensam, quais são suas
aflições? As colheitas foram boas? Eles têm certamente dívidas a pagar?’ Ria quem quiser
do Sr. Balzac. Desconheço o pintor que teve a honra de fazer vibrar, conjeturar e inquietar a
alma do grande romancista, mas penso que ele nos deu assim .... uma excelente lição de
crítica. Vocês me verão muitas vezes apreciar um quadro unicamente pela soma de idéias
ou de devaneios que ele oferece ao meu espírito.”30
Talvez a minha análise da obra de Kac nada mais seja do que a tentativa de
aplicação desse sugestivo princípio crítico, enunciado por Benjamin que parece estar
aderindo, como Baudelaire, à atitude de Balzac. E aqui, mais uma vez, gostaria de
deixar claras as relações que pressinto existirem entre aquela atitude crítica de Balzac
diante do quadro e o juízo reflexionante estético kantiano, pois, ainda que impuramente,
como já afirmei acima, o que seria essa “lição de crítica” à qual Benjamin se refere
senão uma indicação de que a experiência crítica consistiria numa liberação da
imaginação para associar sem a exigência de determinar um objeto? Ou seja, a
necessidade de distingui-la da experiência estritamente cognitiva? Mas é hora de partir
afinal para a análise desta anunciada e polêmica obra, não sem antes dar uma breve
notícia biográfica sobre o artista31.
Eduardo Kac nasceu no Rio de Janeiro em 1962. No começo dos anos 80 ele
criou uma série de performances de conteúdo político e de humor em espaços públicos
como a Cinelândia e a praia de Ipanema, no Rio de Janeiro, e as escadarias da
Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Em 1983 ele inventou a holopoesia, uma
nova linguagem verbal/visual que explora as flutuações formais, semânticas e
perceptuais da palavra/imagem no espaço-tempo holográfico. Em 1989 mudou-se para
os Estados Unidos, e atualmente é professor titular do Departamento de Arte e
Tecnologia no Art Institute of Chicago.
A partir de 1986, Kac propôs e desenvolveu a “arte da telepresença” baseada no
deslocamento dos processos cognitivos e sensoriais do participante para o corpo de um
telerrobô, que se encontra num outro espaço geograficamente remoto. A partir de 1999,
Kac inaugura o que ele próprio chamou de “arte transgênica". Nesse mesmo ano, ele
apresentou em Linz na Áustria, a obra “Gênesis”. Tratava-se de um "gene de artista",
sintético, inventado por ele mesmo e, portanto, inexistente na natureza. O gene foi
criado através da tradução de um trecho em inglês do Velho Testamento para código
Morse e depois do código Morse para DNA, de acordo com um código desenvolvido
por Kac especialmente para esta obra (os traços do código Morse representavam a
timina, os pontos, a citosina, o espaço entre as palavras, a adenina e o espaço entre as
letras, a guanina; assim, eram obtidos os quatro constituintes fundamentais do ácido
desoxirribonuclêico ou DNA cujas combinações formam o "alfabeto" ou código
genético). A sentença bíblica diz: "Deixe que o homem domine sobre os peixes do mar,
sobre as aves do céu e sobre todos os seres vivos que se movem na terra" (Gênese 1,
28). O gene foi introduzido em bactérias, que foram postas em placas de Petri. Na
galeria, as placas foram postas sobre uma caixa de luz ultravioleta, controlada por
participantes remotos na Web. Ao acionar a luz UV, participantes na Web causavam
mutação do código genético e assim mudavam o texto contido no corpo das bactérias.
Após a exposição, o gene foi lido de volta para o inglês, e o texto mutante publicado
online na seção em inglês do site de Kac.
É no contexto da “arte transgênica”, onde se encontra a obra que pretendo
discutir: o GFP Bunny, cuja sigla significa “Green Fluorescent Protein Bunny”, que foi
a segunda obra de arte transgênica [de Kac], criada em fevereiro de 2000. Segundo
Simone Osthoff 32, Kac encarava a sua obra GFP Bunny como um projeto de três fases:
a primeira, consistia na criação de um novo ser vivo; a segunda fase do projeto seria a
sua exposição numa galeria; a terceira consistiria na sua integração na família do artista
que vive em Chicago. “No entanto, depois que o laboratório francês se recusou a liberar
o coelhinho, como tinha sido previamente combinado, criou-se uma controvérsia na
Internet (worldwide media), e Kac utilizou o frenesi dos media como material de uma
nova fase do GFP Bunny, como exemplificado nas fotografias, desenhos e outros
trabalhos na sua exposição “Rabbit Remix” (setembro de 2004, na galeria de arte Laura
Marsiaj no Rio de Janeiro).33
Então, em fevereiro de 2000, foi criado, num laboratório em Jouy-en-Josas,
França, através de uma alteração genética, com o DNA de águas-vivas um coelho albino
híbrido, chamado “Alba”. Normalmente ele é branco, mas, iluminado por certa luz azul,
ele brilha com tom verde fosforescente. “Alba” foi criada através do uso de engenharia
genética. E apresentado ao público, pela primeira vez, em Avignon, na França. Que
fique claro, o novo ser é em tudo igual ao coelho “natural”, capaz de pular, comer
cenouras como qualquer um da sua espécie, com a única estranheza que brilha no
escuro “como uma lanterna”. 34
Como qualquer obra de arte contemporânea, como já foi descrito acima, o
Coelhinho da Proteína Fosforescente Verde de Eduardo Kac também inclui uma
pergunta filosófica sobre sua “natureza” ou essência, quero dizer, também ele nos
coloca diante da pergunta “se é (ou não) arte?”35, numa espécie de tribunal estético,
aguardando precisamente “um julgamento, um juízo”36. Não sei se o melhor resultado
de um trabalho crítico consistirá em alcançar uma decisão final e definitiva “a favor” ou
“contra” a “candidatura” da obra ao status de arte. Talvez, nada mais importe aqui senão
o debate. Talvez, importe menos a decisão do que justamente a possibilidade repetida e
retomada da discussão, a cada vez, que nos dispomos a experimentar alguma obra de
arte. Se, para alguns autores, como para Kant de maneira exemplar, a experiência
estética é judicativa, isto é, discursiva, falante, tagarela, então, talvez se possa concluir
que a experiência estética nada mais seja senão experiência crítica.
É óbvio que nem todos precisam concordar com essa essência discursiva da
experiência estética. Por exemplo, Paul Valéry afirmou que o belo promovia nele uma
espécie de mudez estupefata; também um certo Walter Benjamin, do ensaio sobre a
novela “Afinidades Eletivas” de Goethe, tratou de definir a beleza, cujo paradigma é
encarnado pela personagem Otília, como sendo “vegetal”38. Mas eu suspeitaria de
qualquer artista ou teórico da arte que, conscientemente, abrisse mão do princípio da
crítica. Mesmo tendo falado em silêncio e mudez vegetal, nem Valéry nem Benjamin
recusariam um princípio tão essencial à arte quanto pode ser: a crítica. Gostaria de
afirmar que a crítica constitui possivelmente o principal legado da filosofia moderna,
sobretudo a de Kant, para a nossa contemporaneidade, inclusive a da arte. Mesmo
lembrando que, “para Kant, a verdadeira coragem de saber, invocada pela Aufklãrung
[...] consistia em reconhecer os limites do conhecimento”39, e que, portanto, a tarefa
primordial da crítica, “como prolegômeno a toda Aufkärung presente e futura, [era] a de
conhecer o conhecimento”40, ou seja, que o alvo principal da crítica kantiana era a
ciência, não há dúvida de que é na filosofia transcendental de Kant, onde vamos
encontrar a definição clássica de crítica na história da filosofia moderna.
Permitam-me um breve (e último) excurso sobre a relação entre crítica e
modernidade (e seu inevitável tributo a Kant), da qual foi testemunha um dos principais
críticos de arte norte-americano do século XX, Clement Greenberg, especificamente, no
seu importante ensaio sobre “A pintura modernista”41. Aí, ele fez uma rara referência
explícita a Kant. Logo no começo, Greenberg aponta para a generalização do
modernismo que, na nossa época, como ele percebeu muito bem, não está restrito à arte
e à literatura, mas se ampliou a tal ponto que passou a abranger tudo que é “vivo na
nossa cultura”. E ele constata: “A civilização ocidental não é a primeira a voltar-se para
o exame de seus próprios fundamentos, mas a que levou mais longe esse processo.
Identifico o modernismo com a intensificação, a quase exacerbação dessa tendência
autocrítica que teve início com o filósofo Kant. Por ter sido o primeiro a criticar os
próprios meios da crítica, considero Kant o primeiro verdadeiro modernista.”42 Apesar
de estabelecer essa relação intrínseca entre a autocrítica modernista e a Aufklärung,
Greenberg faz questão de diferenciá-las: “enquanto o Iluminismo criticou do exterior
[...] o modernismo critica do interior, mediante os próprios procedimentos do que está
sendo criticado.”43
Não é o caso aqui de me estender sobre os possíveis descaminhos a que foi
conduzido o acirramento da tarefa da autocrítica, a qual não deixou de produzir seus
efeitos negativos, entre outros, a confusão da autonomia com a “pureza”. “Pura” se
tornaria a arte que conseguisse eliminar “todo e qualquer efeito que se pudesse imaginar
ter sido tomado dos meios de qualquer outra arte ou obtido através deles”.44 A arte
modernista tornou-se uma manifestação ou exposição dos seus meios, uma vontade
exacerbada de verdade. Ousaria dizer que ela tentou se tornar “científica”, considerando
talvez que a adoção daquela atitude “científica” ajudaria na sua nova exigência de auto-
justificação45. Essa depuração ou exagero crítico acabou, a meu ver, por despolitizar a
crítica. Cristalizada, enrijecida, a crítica se transforma em seu oposto, isto é, em
dogmática, perdendo assim seu intenso potencial político, tão fundamental a ela, como
Foucault viu com tanta lucidez.46 O artista purista tão “absorto nos problemas de seu
meio”47, tão preocupado com o destino da arte e com a identidade dela, que pode ter se
tornado indiferente ao mundo. Como disse antes não caber aqui me estender mais,
encerro esse excurso sobre o “kantismo” bastante equivocado, diga-se de passagem, de
Greenberg. De qualquer modo, compartilho de sua fidelidade à crítica como uma
espécie de princípio absoluto, incondicional.
Portanto, para aquela tradição que pensa no juízo estético como sendo
reflexionante, subjetivo, a decisão se é (ou não) arte o coelhinho verde de Kac não
depende nem das intenções (subjetivas) do artista, nem tampouco das formas (objetivas)
da obra. E, se não se trata de interrogar o artista, isso não se deve àquele velho
preconceito de que o autor não entende nada do que faz, como afirmou revoltada e
ironicamente Sol LeWitt48, ou mesmo como disse Kant, muito antes de Sol LeWitt, a
respeito do gênio. Não é porque o artista não tenha nada a dizer sobre sua obra (no caso
de Eduardo Kac, então, dá-se exatamente, o oposto disso), mas simplesmente pelo fato
de que a tarefa essencial da Estética kantiana, que é a de julgar, foi concedida ao
espectador, ao público. É o público que enuncia o juízo de gosto (e espero já ter
demonstrado que ele foi legitimamente “atualizado” pelo juízo de duviano “isto é
arte?”) que, nesse sentido, não só goza de certa autoridade como até mesmo de certa
prerrogativa com relação ao artista. Para sermos rigorosamente kantianos, temos de
levar às últimas conseqüências o fato de ser o espectador, o sentimento do espectador, o
alvo da análise estética. Aqui há realmente uma espécie de “império da crítica”.
O “tribunal estético” kantiano ocorre, portanto, no interior da subjetividade
receptora da obra. Essa subjetividade, sendo transcendental, aponta para um âmbito
diferente do privado e psicológico. É nela que ocorrem as mudanças, as intensificações
e expansões da experiência, a possibilidade de experimentar o mundo através dos
outros, do olhar do outro, do ponto de vista do outro. Numa palavra: exercícios ou
experimentos da liberdade. Talvez, diante do coelhinho verde, como diante de qualquer
obra de arte, caiba a pergunta: “sentimo-nos livres” diante dele/dela? Talvez até a
resposta, no caso do coelhinho, seja tristemente negativa: Não, não nos sentimos livres
diante do poder da ciência e da tecnologia (a engenharia genética) que estão em seu
fundamento, que foram necessárias para sua criação. Não! O que, talvez, exprima o
coelhinho, sem precisar falar, é que, muito pelo contrário, a ciência não nos libertou,
mas, escravizou-nos, encarcerou-nos. Sua cor verde, frankensteiniana, exibe sua
essência artificial e anti-natural, e pode ser encarada como uma violência. O coelhinho
verde expressa a dominação científica da natureza. Realização de um antigo sonho. Mal
começamos a discussão e já nos vemos cumprindo a proposta de Eduardo Kac, de que
sua obra fosse “um diálogo continuado” sobre problemas de diferentes campos. Por
isso, durante uma “Intervenção em Paris”49, o artista afixou posters em várias ruas de
vários bairros (Le Marais, Quartier Latin, Saint Germain, Champs de Mars, Bastille,
Montparnasse e Montmartre) entre 3 e 13 de dezembro de 2000. Esses posters
consistiam na imagem do artista, Eduardo Kac, abraçado a Alba, cujas legendas
referiam os diversos aspectos envolvidos na sua obra "GFP Bunny": Ética, Arte,
Família, Media, Ciência e Religião.
Um dos modos possíveis de levar adiante o “julgamento” do coelhinho verde
seria seguir essas legendas propostas por Kac... Desde que não seja exigida “pureza” do
juízo de gosto, isto é, desde que se possa prosseguir apelando para um tipo de juízo
“aplicado” de gosto, pois, de fato, o juízo interrogativo de duviano “Isto é arte?” há
muito tempo deixou de ser “puro”. Mas, a meu ver, essa impureza do juízo não
compromete o seu caráter reflexionante e não conceitual. Como nos sugere Silke Kapp,
dizer que o juízo de gosto não necessita (nem depende) de um conceito sob o qual o
objeto representado seria subsumido, “não é o mesmo que dizer que o gosto não pode
associar-se a considerações lógicas.”50 Aliás, é o próprio Kant que, descrevendo a
operação de um ajuizamento “impuro”, isto é, aquele que compara a representação,
através da qual um objeto nos é dado, com o conceito que nos indica o que o objeto
deveria ser, afirma que “não se pode evitar de ao mesmo tempo compará-la (a
representação do objeto) com a sensação no sujeito, assim, quando ambos estados do
ânimo concordam entre si, lucra a inteira faculdade de representação.”51
Começando pela relação arte e ciência, que nos parece a mais óbvia e estridente
(propriamente “fosforescente”). É claro que Eduardo Kac ao “produzir” seu polêmico
coelhinho estava mostrando sua total disposição a discutir os problemas relacionados às
atividades de intervenção (quase sempre violentas) da ciência na natureza. Como
Osthoff nos mostrou, a partir do fato de o laboratório francês ter se recusado a liberar o
coelhinho, gerou-se uma controvérsia frenética na Internet que foi utilizada por Kac
como material para uma nova (e inesperada) fase do GFP Bunny. É parte essencial da
obra, um “sítio” ou uma “página”, que está em permanente construção, “recebendo”
qualquer internauta que queira participar discutindo, criticando, elogiando, etc. E uma
das discussões mais freqüentes, como era de se esperar, diz respeito precisamente às
relações entre ciência e ética. Aqui se revela um duplo aspecto implícito na obra de Kac:
primeiramente, um questionamento das vias institucionais (lugares de culto) tradicionais
através das quais obras de arte sempre foram expostas, como museus, igrejas, galerias
de arte etc, em segundo lugar e em decorrência do primeiro, há uma ampliação
espetacular do público. O público de sua obra é virtual, ou seja, extensíssimo, e mais,
em progresso, constituído por esse novo tipo de “viajante” ou “navegador”, chamado de
“internauta”. Eles escrevem cartas, discutem, polemizam, manifestam-se sem parar,
constituindo mais um aspecto, precisamente o político, na medida em que se possa
definir o político enquanto a dimensão pública por excelência, oposta, portanto, à
privada. Essa espécie de “democratização” ou popularização da arte possibilitada pelos
novos meios de comunicação poderia também ser discutida.
III. a - Arte e Ciência
A primeira associação ou comparação na qual pensei foi entre a arte e a magia,
essa forma antiga ou primitiva da ciência; essa espécie de pré- ou proto-ciência.
Supondo que Kac viesse nos dar uma explicação de como “fabricou” seu coelhinho
verde, se a descrição em muito não se assemelharia a esta que achei num livro chamado
L´Idée de nature en France dans la première moitié du XVIII siècle de Jean Ehrard, no
seu primeiro capítulo dedicado ao tema “Natureza e Prodígio”. Analisem vocês mesmos
as afinidades entre a “nossa” ciência e a magia. Ou por outra, se a arte ainda manteria
com a magia os vínculos que a ciência teve de abandonar. Cito o relato do seguinte
experimento de magia natural: “É preciso ter um grande ovo preto de galinha, perfurá-
lo, deixar sair um pouquinho da clara, quer dizer, mais ou menos a quantidade de um
favo, e tendo preenchido com a semente humana, deve-se fechar o furinho muito
sutilmente, colando sobre ele um pequeno pedaço de pergaminho umedecido, depois
devolvemo-lo à chocadeira na primeira noite de lua de Março da feliz constelação entre
Mercúrio e Júpiter, e ao final de um período conveniente, acontecendo de o ovo se
partir, dele sairá um pequeno monstro como vocês vêem.”52
Será que deveríamos condenar o coelhinho verde como o fez o século XVII com
o monstrinho (metade humano, metade ave) saído do ovo preto da galinha? O que
ocorreu com a ciência, de lá (1722) para cá, foi um progresso tão imenso a ponto de
permitir experiências como as de Eduardo Kac (ou mesmo a experiência científica dos
porquinhos verdes – há toda uma fauna esverdeando-se nos laboratórios de biologia)
saíssem do campo obscuro e suspeito da magia, da superstição e da feitiçaria para
ingressarem nos assépticos locais da experimentação científica, isto é, nos laboratórios,
ainda que fossem para produzir algo tão polêmico quanto os pequenos monstrinhos? É
claro que o tema da relação entre arte e ciência seria infinito e teríamos matéria aqui
para toda a semana ou mais. Mas gostaria de chamar atenção para, pelo menos, um fato
evidenciado na obra de Kac: ao deslocar o coelhinho do seu “ambiente de produção
científica”, Kac não estaria, por um lado, repetindo o gesto “artístico” já consolidado na
nossa contemporaneidade (Duchamp e o urinol; Warhol e a Brillo Box – seriam
variações de um tema só), e por outro, expondo (“publicando”, trazendo à luz, “pondo a
nu”) os métodos da ciência, trazendo-os à discussão? Propiciando assim um debate que,
a meu ver, só pode mesmo se dar externamente aos processos científicos, uma vez que,
na perspectiva interna ou imanente, é quase impossível criticar (julgar) a ciência, na
medida em que ela, “imitando” a natureza, o “impulso criador da natureza”, acaba por
compartilhar daquela mesma ingenuidade que levou o Padre Yves de Paris dizer, com
razão que “Não há qualquer mal em toda a extensão da natureza”53. Que mal pode haver
em coelhinhos, porquinhos esverdeados? O progresso da ciência dependeu, como todo
mundo sabe, de sua autonomização (com relação às outras esferas, principalmente a
moral e teológica).
Talvez esse progresso nada mais signifique a não ser a legitimação (que no caso
é o mesmo que “liberação”) dos métodos da ciência. Mas também todo mundo sabe,
que há algum tempo, desde quando a natureza passou a ser tratada (voltando à metáfora
jurídica) como uma litigante digna de respeito (e não mais um objeto assujeitado e
escravizado pelo homem), que voltamos a colocar sob suspeita aqueles métodos que
gozaram durante tanto tempo da prerrogativa do esclarecimento. Sendo hoje a arte mais
comprometida com a reflexão do que com a sensibilidade (para o bem e para o mal);
tendo ela assumido de modo irrestrito, mais do que qualquer outra instância, talvez por
seu estreito vínculo com a liberdade, a tarefa ao mesmo tempo infinita e urgente da
crítica; talvez, por tudo isso, uma obra de arte como o coelhinho verde de Kac ocupe um
lugar privilegiado (será o de um advogado de defesa da natureza, por exemplo, quando
Eduardo Kac propõe tornar Alba – o coelhinho verde, um animal de estimação, parte de
sua família? Ou, ao contrário, um promotor a serviço da técnica de expropriação e
dominação da natureza?): local da proximidade e da distância que propicia a própria
reflexão (ou o da instalação do tribunal) que a ciência/técnica de um lado e a natureza
de outro seriam incapazes de instituir.
III.b - Arte e Natureza
Como todo mundo aqui sabe, a relação entre arte e natureza é provavelmente a
mais antiga de todas, uma vez que um conceito como o de mimese, tão velhinho quanto
a própria reflexão filosófica sobre a arte, surge, entre outras motivações, para dar conta
precisamente daquela relação entre arte e natureza54. Mesmo que Platão já tivesse
elaborado esse conceito, vou preferir a concepção aristotélica da mimesis, contida não
na Poética, mas sim numa pequena frase do Livro B da Física (194a), onde talvez se
inaugure o programa mais promissor de uma compreensão da arte “mais originária” do
que a (ou simplesmente “liberada” da) determinação platônica a partir do eidos-idéia.
Foi dessa passagem do Livro B da Física, que Philippe Lacoue-Labarthe extraiu de
maneira inédita uma nova teoria da mimese aristotélica, diferentemente da tradição, que
sempre apelou, exclusivamente, para o capítulo IV da Poética.
Citemos a passagem: “Por um lado a tékhne realiza o que a phy´sis é incapaz de
efetuar, por outro lado ela a imita”. No primeiro sentido, a phy´sis não tendo nada que
lhe seja exterior – a tékhne se diferenciando dela mas sendo ainda ela (Em “diaphéron
heautó”, diz Heráclito, “o um diferenciando-se em si mesmo”) – deve desdobrar-se para
aparecer e sair de sua cripta. No segundo sentido corrente da tradução latina de mimese
por imitação, a tékhne é segunda, exterior à phy´sis, que, completa em si mesma, deve
ser duplicada ou reproduzida pela tékhne, exterior e subordinada ao seu modelo.”55
A partir dessa concepção, é evidente que o coelhinho pode ser compreendido
como um exemplo do primeiro sentido da mimesis, isto é, como realizando o que a
phy´sis é incapaz de efetuar. Um sentido mais positivo e criativo indubitavelmente. Ele,
de modo algum, imita a natureza. Ele usufrui de uma relação de complementaridade ou
mesmo de continuidade (e não ruptura) com a própria natureza, sem rivalizar com ela.
Num certo sentido, como se desse “a chance” à natureza de acrescentar novas e inéditas
formas, tal como indicou Schiller, outro filósofo que refletiu intensamente sobre a
relação entre arte e natureza. Na 26a Carta para Educação Estética do Homem, após
afirmar que “toda existência real deriva da natureza”, assim como toda “aparência
deriva originalmente do homem, enquanto ser dotado de representação”, ele nos propõe
a seguinte fórmula para encarar aquela relação entre homem e natureza: “o que a
natureza separou, ele [o homem] pode unificar com liberdade ilimitada, tão logo lhe seja
concebível essa união, e pode separar o que a natureza havia unificado, tão logo consiga
realizar a separação em seu entendimento.”56
Mas, não ignoremos o fato de Schiller estar afirmando a “liberdade ilimitada do
homem” apenas no âmbito da “aparência” e da “representação”. No âmbito da realidade
ou da existência real, para ele e todo o seu século estético, atuava a força exclusiva a
natureza. Todo mundo sabe que a ousadia e a novidade do GPBunny, impensáveis no
século XVIII (senão mesmo até o ano 2000, data do nascimento de Alba), consistem no
fato de o coelhinho verde não ser uma representação, mas uma realidade, uma
existência no mundo dos seres vivos. Se ele é ainda uma obra de arte, ele será a mais
digna delas, exatamente porque é um ser vivo.
Para finalizar, cito uma carta que o poeta alemão, amigo de Hegel e Schelling,
Friedrich Hölderlin escreveu a seu irmão em 4 de junho de 1799, pois julgo ser a melhor
definição do caráter paradoxal daquela relação mimética entre arte e natureza. Eis a
passagem da carta do poeta: "Vê bem, meu caro, que acabo de formular um paradoxo: a
necessidade de formação e da arte (...) é um verdadeiro serviço que os homens prestam
à natureza"57. Nessa passagem, Hölderlin parece estar sintetizando a noção de mimesis
aristotélica, aquela mesma que Lacoue-Labarthe, orientado por Jean Beaufret, foi buscar
na Física B. Uma relação entre arte e natureza, não como uma mera imitação, mas sim,
como uma estrutura de complementaridade absolutamente necessária para uma e outra,
como nos mostram estas frases, todas recolhidas do ensaio “A verdade sublime”58:
"apenas a arte (tékhne) é capaz de nos revelar a natureza (phy´sis)", "a tékhne realiza a
phy´sis", ou ainda: "sem a tékhne, a phy´sis se furta, pois em sua essência, a phy´sis
kryptesthai philei, a natureza ama dissimular-se.". A estrutura do espelhamento, da
duplicidade não é linear e superficialmente imitativa, mas, estranha e inquietantemente
diferente. Por isso, o coelhinho verde é inquietante, nos promove esse estranhamento a
que reagimos com força a ponto de perguntar: Isto é um coelho?
NOTAS
1
Este texto vem a ser um dos resultados da minha pesquisa que contou e conta com o apoio de uma bolsa
de produtividade em pesquisa do CNPq. Trata-se da reformulação de um trabalho apresentado no XII
Encontro Nacional de Filosofia da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF),
realizado em Salvador, BA, em outubro de 2006.
2
DANTO, Arthur, Após o fim da Arte, Trad. De Saulo Krieger, São Paulo: Odysseus Editora, 2006, p. 15.
3
Citado em DANTO, op.cit., p. 139.
4
KAPROW, Allan, “O legado de Jackson Pollock” in Escritos de Artistas, orgs.: Glória FERREIRA e
Cecília COTRIM, Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2006. Após descrever maravilhosamente o movimento
(evolução) da pintura como o de uma crescente projeção de dentro para fora do quadro (“No caso atual, a
‘pintura’ se moveu tanto para o lado de fora que a tela não é mais um ponto de referência”, p. 43),
Kaprow conclui: “O que temos, então, é uma arte que tende a se perder fora de seus limites, tende a
preencher consigo mesma o nosso mundo (grifo meu); arte que, em significado, olhares, impulso, parece
romper categoricamente com a tradição de pintores que retrocede até pelo menos os gregos [...] Pollock,
segundo o vejo, deixa-nos no momento em que temos de passar a nos preocupar com o espaço e os
objetos da nossa vida cotidiana, e até mesmo a ficar fascinados por eles, sejam nossos corpos, roupas e
quartos, ou, se necessário, a vastidão da Rua 42 [...] Objetos de todos os tipos são materiais para a nova
arte: tinta, cadeiras, comida, luzes elétricas e néon, fumaça, água, meias velhas, um cachorro, filmes, mil
outras coisas que serão descobertas pela geração atual de artistas. Esses corajosos criadores não só vão
nos mostrar, como que pela primeira vez, o mundo que sempre tivemos em torno de nós mas ignoramos,
como também vão descortinar acontecimentos e eventos inauditos, encontrados em latas de lixo, arquivos
policiais e saguões de hotel; vistos em vitrines de lojas ou nas ruas; e percebidos em sonhos e acidentes
horríveis. Um odor de morangos amassados, uma carta de um amigo ou um cartaz anunciando a venda de
Drano; três batidas na porta da frente, um arranhão, um suspiro, ou uma voz lendo infinitamente, um flash
ofuscante em staccato, um chapéu de jogador de boliche – tudo vai se tornar material para essa nova arte
concreta. [...] Jovens artistas de hoje não precisam mais dizer ‘Eu sou um pintor’ ou ‘um poeta’ ou ‘um
dançarino’. Eles são simplesmente ‘artistas’. Tudo na vida estará aberto para eles. Descobrirão, a partir
das coisas ordinárias, o sentido de ser ordinário. Não tentarão torná-las extraordinárias, mas vão somente
exprimir o seu significado real. No entanto, a partir do nada, vão inventar o extraordinário e então talvez
também inventem o nada. As pessoas ficarão deliciadas ou horrorizadas, os críticos ficarão confusos ou
entretidos, mas esses serão, tenho certeza, os alquimistas dos anos 60.”
5
Em 2005, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) no Rio de Janeiro, e, mais recentemente, em
2007, na Documenta 12 de Kassel, a artista plástica brasileira, Iole de Freitas exibiu suas imensas obras
formadas por chapas flexíveis de policarbonato transparente produzidas no galpão de uma indústria naval
no Rio de Janeiro. Outro exemplo a ser lembrado é a obra do artista Eduardo Kac, que comentarei mais
adiante, e que vem sendo “produzida” em laboratórios (científicos) de biologia e engenharia genética.
6
Longe de esgotada, talvez mesmo ainda por ser feita, está a avaliação filosófica dos efeitos da
disponibilidade de uma rede de comunicação/informação virtual como é a Internet não só sobre a
produção da arte como sobre a constituição de um novo público. Talvez uma nova mutação da obra de
arte, mas também do seu público esteja por acontecer. Ou pelo menos isso é o que julgo estar
“pressentido”, senão de algum modo “anunciado”, na obra do brasileiro Eduardo Kac.
7
WOOD, Paul, Arte Conceitual, São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 43. A obra que, segundo P.Wood,
“representou um ponto chave na evolução da arte conceitual: o nec plus ultra do reducionismo modernista
e, simultaneamente, uma indagação, enquanto arte, com respeito ao que era arte.” (p.43) foi a de Joseph
Kosuth (artista conceitual norte-americano), para quem “a ‘mais pura’ definição de arte conceitual seria a
de que ela é uma indagação dos fundamentos do conceito (grifo meu) ‘arte’.” (idem,ibid.)
8
DANTO, idem, p. 146: ”Em minha concepção, a pop não era só um movimento que vinha após um
movimento e era substituído por outro. Era um momento cataclísmico (grifo meu) que assinalava
profundas mudanças sociais e políticas e que produzia profundas transformações filosóficas no conceito
de arte. Foi o que realmente proclamou o século XX (sic!), que durante muito tempo – 64 anos – havia
enlanguescido no rastro do século XIX.”
9
ADORNO, Th.W., Aesthetic Theory, trad. Robert Hullot-Kentor, Minneapolis: University of Minnesota
Press, 1996.
10
Cf. WOOD, Paul, Arte Conceitual, São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p.7. Embora segundo Wood,
sejam bastante controversas e reais as questões sobre: “o que foi? Quando ocorreu? (Estará ainda sendo
criada, hoje em dia, ou já será coisa do “passado”) Onde ocorreu? Quem a produziu? E, enfim, a pergunta
central: por quê? Por que produzir uma forma de arte visual baseada na destruição das duas principais
características da arte tal como ela chegou até nós na cultura ocidental, ou seja, a produção de objetos que
pudessem ser vistos e o olhar contemplativo, propriamente dito?” (p. 6).
11
Faço questão de lembrar aqui a noção de mimesis da Poética de Aristóteles, a de que ela representa ou
imita os homens melhores do que eles são. É provável que a apropriação (moderna) do texto aristotélico
tenha alterado o registro essencialmente ético da Poética num registro estético. E assim, por muito tempo,
passou a vigorar a idéia de que a beleza era uma realidade melhorada, retocada, aperfeiçoada.
12
Cf. DELEUZE, G., “L´idée de genèse dans l´estética de Kant » in Revue d´Estética, 1963, p. 113 :
« Les difficultés de l´estética kantienne, dans la première partie de la Critique du Jugement, sont liées à
une diversité de points de vue. Tantôt Kant nous propose une estética du spectateur, comme dans la
théorie du jugement du goût ; tantôt une estética, ou plutôt une méta-estética du créateur, comme dans la
théorie du génie. Tantôt une estética du beau dans la nature, tantôt une estética du beau dans l´art. Tantôt
une estética de la forme, d´inspiration ‘classique’, tantôt une méta-estética de la matière et de l´Idée,
proche du Romantisme. »
13
Dou-me o direito de indicar um artigo que publiquei na revista Impulso (Revista de Ciências Sociais e
Humanas, vol 15, set-dez 2004) sobre o gênio, exatamente nesse sentido, ou seja: levada às últimas
conseqüências, toda subjetividade transcendental seria “genial”.
14
A “Analítica do Sublime” constitui apenas uma das partes da “Crítica da Faculdade de Juízo Estética”,
a outra “Analítica”, muito mais importante, como é comum dizer, é a do Belo. No entanto, Kant
classificou ambos os juízos, do belo e do sublime, como “reflexionantes estéticos”. E o que gostaria de
provar é que o juízo sobre a arte contemporânea é, em primeiro lugar e fundamentalmente, um juízo
reflexionante estético. A classificação (belo e sublime) seria apenas secundária ou contingente.
15
É interessante notar que, embora a Crítica da Faculdade do Juízo seja o âmbito da reflexão, do juízo
reflexionante, não conheço ali qualquer definição explícita da noção de “reflexão” propriamente dita. Há
algumas ocorrências do termo, principalmente na Lógica de Jäsche, mas a passagem da Crítica da Razão
Pura, a meu ver, é a que melhor sintetiza os aspectos mais importantes dessa noção.
16
Kant, Crítica da razão pura (A 261, B 317), trad. Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger, Coleção
Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1980, p.163.
17
Tive oportunidade de desenvolver um pouco mais esse problema no artigo “Os três espectros de Kant”,
publicado na revista O que nos faz pensar?, do Departamento de Filosofia da PUC-RJ, setembro de 2004.
18
De DUVE, T., op.cit. p. 59 : « Aesthetic judgments are always comparative, even though it would be
useless to try to say precisely what they compare ».
19
HEIDEGGER, M. «A origem da obra de arte », trad. Maria José Campos Rago, Revista Kriterion,
Revista do Departamento de Filosofia da UFMG, n° 76, janeiro-junho 1986, p. 205.
20
Cf. KANT, I., Crítica da Faculdade do Juízo, trad. Valério Rohden e Antonio Marques, Rio de Janeiro:
Ed. Forense Universitária, 1993, p. 48.
21
Cf. KANT, idem, p. 55
22
Cf. KANT, I., idem. pp. 68-69 : “Demoramo-nos na contemplação do belo, porque esta contemplação
fortalece e reproduz a si própria: este caso é análogo (mas de modo algum idêntico) àquela demora na
qual um atrativo na representação do objeto desperta continuamente a atenção enquanto o ânimo [fica/vf]
passivo.”
23
Embora a objeção mais aguda e negativa de Arthur Danto à Estética de Clement Greenberg (tomada
como paradigma da herança kantiana) não esteja fundada no argumento da intelectualização extrema da
arte contemporânea, mas sim no argumento da “indiscernibilidade entre objetos de arte ou da realidade”.
A polêmica exasperada que dividiu os dois filósofos norte-americanos da arte, Arthur Danto e Clement
Greenberg, teve como pivô a profunda discordância entre ambos a respeito da produção emblemática dos
artistas norte-americanos nos anos 60, a chamada Pop-Art, da qual Danto, aliás, tornou-se um apologista.
Segundo ele, a Estética de Greenberg, em virtude de seu fundamento kantiano, só poderia ter se mantido
impermeável e indiferente à Pop-art. Com outras palavras, a narrativa de Greenberg só poderia ter
concluído que a Brillo Box de Warhol era uma espécie de não-arte, uma vez que estando Greenberg
atrelado a uma “história representativa da pintura”, sua conclusão inevitável só podia ser a de que o
Expressionismo Abstrato constituíra o clímax daquela história. Apogeu que seria seguido por uma
inelutável decadência. O que o Expressionismo Abstrato ainda “representava”? Danto pergunta e
responde: “as condições mesmas da representação”. E isso era o máximo a que a representação poderia
atingir.
Segundo Danto, a inevitável obsolescência da Estética kantiana resultaria da adoção de um critério
qualitativo como fio condutor do seu ajuizamento. Considero, antes de tudo, que há um grave eqüívoco
em interpretar o critério essencial da Estética de Kant como sendo o “qualitativo”, ou pelo menos, no
sentido através do qual Danto o compreendeu, isto é, associando a “qualidade” na Estética de Kant, ao
atributo sensível imediato das obras de arte! Talvez, não apenas um como dois eqüívocos: o primeiro, na
leitura que Greenberg faz de Kant; em segundo lugar, na leitura que Danto faz de Kant através de
Greenberg. Ora, a Estética Filosófica nos ensina que aquele atributo imediato era antes uma característica
das Estéticas Empiristas, que exaltam a sensibilidade como sendo o critério mais importante, senão
mesmo o único da experiência estética. Contra elas, Kant sempre fez questão de distinguir o agradável
(prazer sensível, “empírico”), do belo (prazer da reflexão) e do bom (espécie de prazer moral ou
conceitual). O principal argumento para contestar aquela equivocada, para não dizer mal intencionada
compreensão de Danto, é constituído pela essência reflexionante do prazer estético kantiano que
justamente não o liga somente aos sentidos. Assim, longe de ser a avaliação de uma qualidade imediata,
sensível e objetiva, a experiência estética, segundo Kant, é antes de tudo uma experiência judicativa e
subjetiva e se há alguma discussão sobre a “qualidade” na “Analítica do Belo”, ela está relacionada ao
juízo, no máximo, à consciência da harmonia no jogo entre as faculdades, mas, de modo algum, referida
ao objeto.
24
Em 2003, na importante galeria vanguardista em Nova York – a Gagosian – “expuseram” um imenso
(não era um filhote) elefante de verdade, vivo no centro da galeria... Eu pensei: “Ah! Eles estão querendo
apenas realizar (verwirklichen), tornar efetivo na realidade aquele famoso oxímoro que denuncia,
precisamente, a falta de sensibilidade e de decoro (les bienséances regra essencial para a arte e para o
público do século XVII): do “elefante numa loja de cristais”... Não se pode excluir, é claro, o ingrediente
irônico que também, parece-me, marca de um modo bastante essencial a arte contemporânea.
25
Esses horripilantes insetos também foram “expostos” naquela mesma galeria (e não zoológico) de
Nova Iorque, se não me engano, também no ano de 2003 (de fato, um “zooano” para as artes plásticas
novaiorquinas). Bem, as baratas, felizmente, não estavam vivas como o elefante, mas, mortas e
torturadas! Pude verificar na internet que ambas exposições (a do elefante também) geraram vários
protestos, inclusive da Sociedade de Proteção aos Animais!
26
Cf. De DUVE, T. op.cit p. 59.: “In calling this thing art, you are not giving out its meaning [...] You
don´t subsume it under a concept; you don´t justifiy it by means of a definition; you refer it to all the other
things you have judged through a like procedure, in other times and other places.”
27
Idem, p. 60: “Nothing is more deformed, betrayed, at times embellished, at times darkened by time,
than the memory of a feeling. But it remains that aesthetic judgment compares comparable things when it
confronts a present feeling to the reactualization of past sentiments. For the remembrance of a feeling is
always a feeling, while the memory of a piece of knowledge is not necessarily a piece of knowledge (one
can remember once having known trigonometry but have forgotten it; one can remember having loved
and perhaps having forgotten how it felt, but not without at least feeling the melancholy of oblivion and
indifference”).
28
DANTO, Arthur, “Introdução: moderno, pós-moderno e contemporâneo” in Após o fim da Arte, Trad.
De Saulo Krieger, São Paulo: Odysseus Editora, 2006, p. 15.
29
KANT, I. Crítica da faculdade do juízo, trad. Valério Rohden e Antonio Marques, Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1993, p. 77.
30
BAUDELAIRE, Ch., Oeuvres, vol. II, p. 147 <OC II, p. 579> (“Exposition universelle de 1855”) apud
BENJAMIN, W., Passagens, Livro J, org. de Willi Bolle e Olgária Matos, Belo Horizonte : Ed. UFMG;
São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006, p. 343.
31
As informações sobre a biografia de Eduardo Kac foram colhidas no sítio do artista: www.ekac.org.
32
OSTHOFF, Simone,”Elsewhere in Contemporary Art: Topologies of Artists´Works, Writings, and
Archives”, in Art Journal, Winter 2006.
33
OSTHOFF, S., op.cit., p. 12.
34
A “experiência” que Kac está “deslocando” para o âmbito da arte já vem sendo realizada há mais tempo
no “mundo científico”. Em janeiro de 2006, foi amplamente noticiada pela imprensa a “vitória” dos
pesquisadores taiwaneses que consistiu exatamente na criação de três porquinhos (como GFP Bunny)
verdes através “da mistura do material genético deles com o de águas-vivas”. Na claridade, os animais
têm focinho, os dentes e as patas verdes, enquanto a pele tem apenas um tom esverdeado. Mas no escuro,
submetidos a uma luz azul, eles brilham como uma lanterna. “A idéia é utilizar os porcos fosforescentes
para estudar o combate a doenças humanas. Como o material dos porcos é verde, ele pode ser visto sem
necessidade de realizar biópsias e operações invasivas.” (Estado de Minas, Caderno “Ciência”; e Jornal O
Globo. Edições do dia 13 de janeiro de 2006) Agradeço a minha aluna Tânia Alves que me enviou uma
reportagem de Juliana Tiraboschi, intitulada “Frankensteins modernos”, publicada na Revista Galileu,
número 176, em março de 2006, pela Editora Globo, sobre a evolução de alguns animais geneticamente
modificados. Além da coelha Alba, há o macaco Andi, galos, peixes e os porcos (já citados). Num
número anterior dessa mesma revista (174), uma outra reportagem da mesma autora, trata da mutação
genética (também com o gene da água-viva) de uma mosca.
35
Kac questiona até mesmo se a natureza de uma obra de arte é ser um objeto: “Não criamos objetos, mas
sujeitos, e temos responsabilidade pelo bem-estar deles [...] Meu interesse é que a obra de arte levante
questões mais profundas sobre o que significa estar no mundo hoje, o que será o mundo futuro e onde
começa o humano e termina o animal [...] Seja para a ciência ou para a arte, a questão deve ser discutida
por toda a sociedade.” (citado na reportagem “Frankensteins modernos”).
36
Não cabe aqui me estender sobre um problema que salta aos olhos, que poderia ser designado por
“natureza jurídica da Filosofia”. Talvez não seja apenas “metafórica” a famosa expressão kantiana “da
necessidade de instituir um tribunal da razão”. Como disse DELEUZE, no início de num belo ensaio, no
qual ele comenta um poema de Antonin Artaud, “Pour en finir avec le jugement”in Critique et Clinique,
Paris: Ed. Minuit, 1993, p. 158: “Da tragédia grega à filosofia moderna, é uma completa doutrina do juízo
que se elabora e se desenvolve. O que é trágico é menos a ação do que o juízo, e a tragédia grega instala
de antemão um tribunal.” Ainda sobre esse tema, ver um artigo de NANCY, J.L., “Lapsus Judicii” in
L´Impératif Catégorique, Paris: Ed. Flammarion, 1983.
37
É evidente que estou dramatizando e interpretando não literalmente a seguinte passagem do “Discurso
sobre a Estética”, de Paul Valéry: “O prazer, enfim, só existe no instante e nada de mais individual, de
mais incerto, de mais incomunicável. Os juízos a seu respeito não permitem nenhum raciocínio, pois,
longe de analisar seu objeto, o que eles fazem é lhe acrescentar um atributo de indeterminação: dizer que
um objeto é belo é lhe conceder um valor de enigma” (trad. Eduardo Viveiros de Castro, in Teoria da
Literatura em suas Fontes, org. Luiz Costa Lima, Rio e Janeiro: Liv. Francisco Alves, 1975, p. 49)
38
Estou ciente do deslocamento (de “pensamento” para “beleza”) que estou fazendo. Benjamin fala, na
verdade, que Otília tem um “pensamento vegetal”.
39
FOUCAULT, M. “Qu´est-ce que la critique? Critique et Aufklärung », publicada no Bulletin de la
Société Française de Philosophie, vol. 84, no 2, av-juin 1990, pp.35-63.
(http://www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/critique.html)
40
Idem, ibid.
41
GREENBERG, C., “Pintura modernista” in Clement Greenberg e o debate crítico, trad. Maria Luiza
Borges, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 101.
42
Idem, ibid.
43
Idem, ibid. Grifo meu.
44
Idem, p. 102.
45
Mais uma vez é preciso lembrar os parágrafos iniciais da Teoria Estética, de Adorno, nos quais se
explicita que até o direito à existência da arte na contemporaneidade deixou de ser evidente. Por isso, um
dos traços específicos da obra de arte contemporânea passou a ser exatamente a necessidade da inclusão
nela mesma da pergunta por sua origem ou essência; com outras palavras, a arte contemporânea tem de se
auto-justificar, provar a que veio...
46
FOUCAULT, “Qu´est-ce que la critique?” op.cit : “Vê-se que o foco da crítica é essencialmente o feixe
de relações que amarra um ao outro, ou um a dois outros, o poder, a verdade e o sujeito. E se a
governamentalização é mesmo esse movimento pelo qual se trata na própria realidade de uma prática
social de sujeitar os indivíduos por mecanismos de poder que reivindicam uma verdade, então, eu diria
que a crítica é o movimento pelo qual o sujeito se dá o direito de interrogar a verdade sobre os efeitos de
poder e o poder sobre seus discursos de verdade; pois bem, a crítica será a arte da não-servidão
voluntária, aquela da indocilidade refletida (grifo meu). A crítica teria essencialmente por função o
desassujeitamento no jogo do que se poderia chamar, numa palavra, de a ‘política da verdade’.”
47
GREENBERG, C., “Rumo a um mais novo Laocoonte”, op.cit., p. 45.
48
Sol LeWitt afirmou “O artista não necessariamente entende sua própria arte. Sua percepção não é
melhor nem pior do que a dos outros. [...] Um artista pode perceber a arte de outros melhor do que a sua
própria.” In Escritos de Artistas, FERREIRA, G. e COTRIM, C., orgs., Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2006, p. 207. Numa passagem anterior a essa, também recenseada pelas organizadoras do livro, fica mais
clara a posição de repúdio de Sol LeWitt: “O editor me escreveu que é a favor de evitar ‘a noção de que o
artista é uma espécie de macaco que tem de ser explicado pelo crítico civilizado’. Isso devia ser uma boa
notícia tanto para os artistas quanto para os macacos.” (idem, p. 176)
49
A “Intervenção de Paris” consistiu numa série de intervenções públicas, como conferências, posters,
palestras, conversações de rua, artigos, e transmissões de rádio e de TV. (www.ekac.org)
50
KAPP, Silke, « Pulchritudo Adhaerens – observações sobre uma impureza do juízo de gosto” in Belo,
Sublime e Kant, org. Rodrigo Duarte, Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, p. 232. Kapp tem razão de
chamar atenção para os dois pesos e duas medidas de Kant, tratando da diferenciação dos juízos
reflexionantes estéticos: ou dos juízos empíricos dos sentidos ou dos juízos intelectuais de perfeição. Se
Kant é mais intransigente com a heteronomia sensível do gosto, ele se mostra muito mais condescendente
com a heteronomia intelectual do gosto.
51
KANT, I., op.cit., 1993, p. 77.
52
Secret merveilleux de la magie naturelle et cabalistique du Petit Albert, Colônia, 1722, p. 138 – apud
Ehrard, J., L´Idée de nature en France dans la première moitié du XVIII siècle , p. 33.
53
De PARIS, Yves apud EHRARD, J., L´Idée etc. p. 14
54
Retomo aqui alguns parágrafos de nossa Introdução (minha e de João Camillo Penna) ao livro de
Philippe LACOUE-LABARTHE, A Imitação dos Modernos, São Paulo: Paz e Terra, 2000.
55
Idem, p. 9.
56
SCHILLER, Fr. A educação estética do homem – numa série de cartas, trad. Roberto Schwarz e
Márcio Suzuki, São Paulo: Ed. Iluminuras, 1990, pp. 135-136.
57
HÖLDERLIN, Fr.Reflexões, trad. Márcia de Sá Cavalcante e Antônio Abranches (ligeiramente
modificada), Rio de Janeiro: Ed. Relume-Dumará, 1994, p. 128.
58
LACOUE-LABARTHE, Ph. “A verdade sublime” (trad. de Virginia Figueiredo) in A Imitação dos
Modernos, São Paulo: Paz e Terra, 2000, pp. 257-258
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