Jornal do Brasil, Caderno B, Rio de Janeiro, 2 de Maio de 2005.
Além de coelhos verdes
Criador de bichos que brilham no escuro, o artista carioca Eduardo Kac lança
livro e comanda debate sobre suas idéias controversas
Otacílio d'Assunção (Ota)*
Durante agosto e setembro passados, a cidade foi invadida por seres estranhos.
Boa parte dos relógios digitais ostentava, sem explicação, um coelho verde. As
crianças adoraram e os cadernos escolares ficaram cheios de coelhos verdes. Até
um arruaceiro usou a imagem para criar um nick no Orkut e ficar destruindo
comunidades. E ninguém entendia direito o que significava aquele coelho. Era o
anúncio de uma exposição de Eduardo Kac, Rabbit remix.
Além de desenhos, o principal da mostra era um set de fotos gigantes vendidas
por míseros US$ 6 mil cada. Gilberto Chateaubriand comprou um jogo completo
(está no MAM, na exposição das recentes aquisições de sua coleção), e dizem que
ele chorou um desconto. Ah, mas deixa pra lá. O importante é falar do autor da
obra, um carioca de 42 anos e mais de 20 de carreira, que migrou para os
Estados Unidos (dá aula no Chicago Art Institute), virou estrela internacional
e expõe pelos quatro cantos do mundo, mas está tomando o gostinho de voltar ao
Brasil (depois de um tempão sem dar as caras, só de um ano pra cá veio três
vezes). Desta vez, para lançar o livro Luz e letra, compilação de textos seus
publicados nos principais jornais brasileiros de 1982 a 1987 - além de artista
plástico Kac é ensaísta. Tem até uma entrevista inédita com Reynaldo Jardim,
feita em 1987 e que nenhum jornal quis publicar.
Luz e letra reúne os assuntos da praia de Kac: artes plásticas, ciência e
tecnologia, literatura e documentação de projetos. É uma preciosa obra de
referência sobre a arte dos anos 80, nem tão alienada como se pensa. O livro
será lançado hoje, no Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, na Urca, após debate
com o autor, às 11h.
Vão longe os tempos em que Kac andava de saia e piróculos, se apresentando com
o pessoal da Gang Pornô. Tinha 18 anos na época. Depois da célebre passeata
pornô na Praia de Ipanema, para comemorar os 60 anos da Semana de Arte Moderna,
amadureceu e partiu para coisas mais sérias. Não gosta de lembrar os tempos da
Gang, prefere dizer que sua carreira começou com o livro de artista Escracho,
que faz parte do acervo do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA).
Não parou mais. Kac esteve sempre à frente do seu tempo. Em 1983, quando
ninguém pensava em holografia como forma de arte, inventou a poesia
holográfica. Seu primeiro poema, Holo/Olho, está no acervo da Universidade de
Essex, no Reino Unido. Quando começou a onda do grafite artístico, ele já tinha
inventado o grafite tridimensional. E em 1986 começava a mergulhar no campo da
Telepresença (o casamento da telecomunicação com a robótica). Foi a isso que
dedicou a maior parte de sua carreira. Dez anos depois, lançava Rara avis, que
consistia de um aviário com pássaros de verdade e um papagaio robótico. O
espectador punha um capacete de realidade virtual e via o interior da gaiola do
ponto de vista do papagaio-robô.
Casar tecnologia com arte e corpo é uma constante na sua obra. Em 1997, lançou
sua Cápsula do Tempo, exposta na Casa das Rosas, em São Paulo. Na parede, fotos
de parentes na década de 30, que conseguiu resgatar (sua família foi dizimada
pelos nazistas). O próprio Kac fazia parte da instalação. Ficava numa maca e
implantava um microchip no tornozelo, como se faz em animais domésticos. Foi o
primeiro humano a ter um. O evento foi transmitido ao vivo pela TV e pela
internet, e de Chicago era feita a leitura do chip.
- Minha obra nunca aceita a virtualização absoluta. Ela presentifica um
engajamento com o corpo - teoriza.
Foi em 2000 que estourou o chamado ''escândalo do coelho''. Kac teve a idéia
de misturar um gene de jellyfish (medusa) no código genético de um coelho, que,
assim, brilharia no escuro. Apresentou o projeto ao curador de uma exposição em
Avignon, Sul da França. O plano era criar o coelho transgênico. Kac viveria com
o animal dentro da instalação, reprodução exata da sala de estar de sua casa em
Chicago. Fechou parceria com um laboratório genético, que produziu o coelho -
aliás, coelha, que Kac batizou de Alba. Pretendia levá-la para Chicago e viver
feliz com ela. Até que o diretor do laboratório disse que a coelha não podia
sair de lá.
Kac tentava negociar a liberação da coelha por vias diplomáticas, quando o
Boston Globe descobriu a história e publicou matéria na primeira página. Daí
para virar um escândalo na imprensa mundial foi como um relâmpago. Virou até
capa da revista italiana L'Espresso. As relações entre Kac e o laboratório
estremeceram de vez e ele nunca mais viu sua coelha. Cinco anos depois, ninguém
sabe o que aconteceu com Alba (só o laboratório, mas os funcionários são
proibidos de falar).
- Ano passado houve um boato de que ela tinha morrido, mas não posso saber se
tem fundamento - reage Kac.
Mas a coelha não foi o único bicho genético que criou. Na obra O oitavo dia
(2001) já se viam camundongos, peixes e uma ameba verdes e brilhantes. As
plantas também brilhavam no escuro - tudo com o tal gen fluorescente. E ainda
tinha um robô, movimentado pela ameba verde.
- Ali, a idéia era transformar o diferente na norma. No futuro, esses debates
serão vistos sob um outro prisma.
Sobre seus planos, Kac conta que em 2006 vai trazer mais uma exposição para
sua galeria carioca, a Laura Marsiaj Arte Contemporânea, em Ipanema, e
inaugurar uma monumental escultura em praça pública, em Minneapolis (EUA). Além
de continuar na arte transgênica, criando novas formas de vida e arte.
* Ota é cartunista e autor da tira 'Dom Ináfio da Filva', publicada no Caderno B.
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