Livros
ENCONTRO
Giselle Beiguelman
Luz & Letra, livro recentemente lançado pelo artista brasileiro Eduardo Kac, radicado nos EUA, reúne artigos e ensaios escritos nos anos 80, publicados em jornais e revistas brasileiras.
O conjunto permite ao leitor construir uma espécie de retrato do artista quando jovem, ou como o próprio Kac diz, uma idéia dos seus principais interesses para mudar a atitude antes de mudar de latitude. Ao mesmo tempo, o lançamento oferece um panorama da arte tecnológica na época.
Entre as mudanças na trajetória de Eduardo, destacam-se o deslocamento da investigação sobre novos suportes de leitura, como os poemas holográficos e em vídeo, e a busca por instrumentos de ação política por meio da literatura, do qual Escracho (mix de fanzine e arte xerox, hoje considerado livro de artista, pertencente à coleção do MoMA), talvez seja o melhor exemplo, para a investigação no campo da arte transgênica.
Mas é certamente a retrospectiva sobre os anos 80 o aspecto mais interessante e enriquecedor da obra, que compõe uma história feita ao vivo sobre figuras-chave da arte tecnológica que marcaram o período, como Mario Ramiro e Otavio Donasci, no que diz respeito ao Brasil, assim como artistas estrangeiros, como o poeta norte-americano Richard Kostelanetz e o videoartista Nam June Paik.
Ao final, o volume traz uma interessante cronologia que vai de 1883 a 1986, na qual o leitor poderá travar contato com a arte satélite, a holopoesia e o videoteatro e refletir sobre como a arte que hoje se faz com meios digitais questiona, atualiza ou em nada se relaciona com esse passado que, apesar de recente, parece-nos hoje tão distante.
Mas, se por um lado o livro sugere esse tipo de reflexão, por outro também faz com que se veja e se compreenda a densidade e a envergadura de projetos radicais que conseguiram problematizar com rigor seus meios de ação e seus dispositivos técnicos, como a obra de Abraham Palatnik (que assina a apresentação de Luz & letra), que pode ser vista até o fim do mês de janeiro de 2005 na Galeria Nara Roesler, em São Paulo.
Leia a seguir o capítulo dedicado a Abraham Palatnik que faz parte do livro Luz & Letra e que consiste numa entrevista de Kac com o artista, feita em 1986.
Um pioneiro da arte tecnológica
Por Eduardo Kac
Uma entrevista feita em 1986 com o artista plástico Abraham Palatnik e agora republicada no livro Luz & Letra
Foto feita por Eduardo Kac no ateliê de Abraham Palatnik, no Rio de Janeiro, em 2004
É mais fácil encontrar obras suas em museus e coleções particulares da Europa do que no Brasil. Um dos papas internacionais da arte cinética, e o primeiro artista brasileiro a pesquisar o emprego criativo da tecnologia na arte, Abraham Palatnik continua desenvolvendo suas pesquisas com luz e movimento -ao mesmo tempo em que procura extrair novas possibilidades de materias tradicionais em seus relevos e pinturas.
Em outubro de 1986 ele inaugura duas exposições simultâneas no Rio de Janeiro; uma na galeria Aktuell, de objetos cinéticos, e outra na Gravura Brasileira, de pinturas. Na Gravura Brasileira pode-se encontrar telas em que o tratamento rigoroso da superfície convive com uma progressão matemática de cordas com uma única curva, que se sucedem ritmicamente; na Aktuell, Palatnik mostra desenvolvimentos realizados na década de 80 a partir de experiências que o consagraram, nos anos 50 e 60, como um pioneiro no uso expressivo de luz e movimento. São aparelhos "cinecromáticos" ("que projetam sobre tela ou outro qualquer material semitransparente composições de formas coloridas em movimento", como escreveu Mario Pedrosa) e obras cinéticas, que rompem com a rigidez dos elementos pictóricos típica da pintura.
Abraham Palatnik nasceu em Natal, no Rio Grande do Norte, em 1928. Estudou em Tel Aviv, especializando-se em motores de explosão. Ainda em Israel, iniciou seus estudos artísticos e, de volta ao Brasil, começou a desenvolver pesquisas inovadoras.
Em 1951, escandalizou o júri da 1ª Bienal Internacional de São Paulo com seu primeiro aparelho "cinecromático". De 1953 a 1955, participou do grupo Frente, envolvendo-se nas discussões sobre arte abstrata.
Já nos anos 60, começou a produzir máquinas artísticas, nas quais peças coloridas ganham movimentos harmônicos inusitados, em função de um complexo sistema de motores e engrenagens. Comentando no catálogo da Bienal de Veneza de 1964 as quatro obras que Palatnik exibiu na mostra italiana, o poeta Murilo Mendes ressalvou a "extrema liberdade do artista, ao qual não se aplicam os rótulos convencionais, nem as fronteiras entre as várias artes (o que já estava previsto em Leonardo)". Para o poeta, as obras de Palatnik "são tangentes à pintura e ao cinema", e o desenvolvimento de suas formas "obedecem ao um jogo dialético entre o sólido e fluido". E concluiu o escritor: "Constituindo-se em uma espécie de lanterna mágica do nosso tempo, seus elementos não são fornecidos do exterior, mas elaborados com rigor pelo artista, que aspira a conciliar o espaço e o tempo".
Apesar de ser menos conhecido do grande público que outros colegas de geração, Abraham Palatnik não se considera injustiçado. Afinal, ele sabe exatamente o lugar que ocupa na arte brasileira e internacional.
Eduardo Kac - Como foi o seu contato com Mario Pedrosa? Qual a influência que ele, enquanto um crítico afinado com a arte de vanguarda, exerceu sobre o seu processo criativo?
Abraham Palatnik - Eu cheguei a conhecer o Mario Pedrosa em 1948, através de colegas como Ivan Serpa e Almir Mavignier. O Mario deu muita força às minhas pesquisas, que eram absolutamente não tradicionais; eu já havia feito pintura, mas, quando dei início às experiências, abandonei o pincel e comecei a mexer com coisas que não tinham nada a ver com o conceito tradicional de arte.
Para a época, o que eu fazia não podia ser arte, tanto assim que na época da 1ª Bienal eu tive muitos problemas. Eu não podia ser julgado, não podia entrar na Bienal, não tinha seção na Bienal para a minha arte cinética. O Mario Pedrosa inventou o nome para um dos meus aparelhos, que a partir de então passou a se chamar "Cinecromático", e estimulou muito minhas investigações com luz e movimento.
Kac - Como foi o caso da 1ª Bienal? O primeiro cinecromático foi visto como uma obra de arte revolucionária ou, pelo contrário, foi tido como uma curiosidade sem maiores consequências no futuro?
Palatnik - Na verdade eu entrei por sorte. A princípio meu aparelho foi recusado, porque não era pintura, nem escultura, desenho ou gravura.
Houve um lapso da delegação japonesa, que não chegou a mandar a tempo o material que havia prometido. Então alguém, não sei quem, se lembrou do meu trabalho e sugeriu que fosse colocado no lugar vago. Eu me lembro que o Almir virou para mim e disse: "Abraham, você vai expor na Bienal! Vão te enfiar no lugar do Japão".
Enfim, o júri internacional ficou surpreso e deu uma menção especial ao trabalho; daí veio o reconhecimento de que aquilo era "uma importante manifestação da arte moderna", como eles disseram.
Mesmo assim, nas próximas Bienais eu recebi convites para expor, mas com a condição de não concorrer a premiação, pois não havia seção que comportasse meu trabalho.
Kac - Você é um dos poucos artistas brasileiros que é amplamente reconhecido no exterior. Na verdade, mais conhecido lá fora do que no país. Qual foi a repercussão internacional de seu trabalho nos anos 50, quando você conduzia as pesquisas pioneiras no campo da arte cinética?
Palatnik - Anos depois de participar seguidamente das Bienais de São Paulo, sempre aperfeiçoando meus aparelhos, fui convidado a participar da Bienal de Veneza, e lá novamente eu tive a sorte de ser procurado por um poeta e crítico italiano, Carlo Belloli. De posse das provas de que começei a trabalhar com luz e movimento em 1949, e de que mostrei os primeiros resultados em 1951, ele corrigiu a informação na Europa.
Isto porque a informação vigente naquela época era a de que os precursores em arte com luz e movimento eram Malina e Schoffer -e justamente na 1ª Exposição Internacional de Arte Cinética esta correção já estava evidente no diagrama publicado pela galeria Denise René, de Paris.
Kac - Além de luz e movimento, você também pesquisa as potencialidades do magnetismo em arte. Em que medida este interesse por fenômenos científicos contribuem em suas investigações?
Palatnik - Na realidade, todas as forças físicas da natureza me interessam. O magnetismo é tão surpreendente que jamais poderia escapar à minha curiosidade estética. Eu fiz alguns trabalhos magnéticos, e um deles estou expondo na Aktuell. Um múltiplo desta peça enviei para "A Nova Dimensão do Objeto", uma mostra coletiva ora em curso em São Paulo (no Museu de Arte Moderna da USP). É um objeto que utiliza a natureza dos pólos positivo e negativo dos imãs, no sentido de atração e repulsão.
Kac - É verdade que hoje, a arte "high tech" conhece novas formas de manifestação estética, que surgiram com o domínio exercido por artistas sobre novas tecnologias de ponta. Como você vê a arte tecnológica hoje?
Palatnik - É a compreensão da importância da forma, não apenas no mundo externo mas também nas raízes inconscientes da atividade humana, que permite desmanchar a oposição habitual que se faz entre arte, ciência, tecnologia e comunicações. A tecnologia, na evolução do homem, adquire significado e está em evidência na medida em que ela permite aos sentidos um acesso consciente à mecânica das forças naturais.
Eu particularmente me interesso pelas novas tecnologias e gostaria de trabalhar com algumas delas. Se eu estivesse começando em arte, hoje, sem dúvida estaria fazendo pesquisas com holografia e computadores, por exemplo. Eu não tenho acompanhado de perto tudo o que se faz no Brasil, mas estive na inauguração da mostra Brasil High Tech, este ano, na qual pude ver muitas experiências interessantes. São realmente os artistas que pesquisam que podem proporcionar essencialmente o contato com o inesperado, vivificando assim o que chamamos de "criatividade".
O texto acima foi publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 14/10/1986.
O livro
Luz & letra - Ensaios de arte, literatura e comunicação, de Eduardo Kac. Contra Capa Livraria (21-2511- 4082).
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