Matéria de Giselle Beiguelman, sobre a obra de Eduardo Kac, publicada originalmente no Caderno Mais! da Folha de São Paulo do dia 19 de setembro de 2004.
O xeque-mate cibernético
Um dos principais criadores em mídias digitais, o brasileiro Eduardo Kac fala da instalação que apresenta na 26ª Bienal de São Paulo, com início no próximo sábado, e explica a relação entre arte e biotecnologia
Giselle Beiguelman
Eduardo Kac é um dos mais importantes criadores no campo das mídias digitais. Professor da prestigiosa Escola do Instituto de Arte de Chicago, nos EUA, dedica-se desde os anos 1990 à reflexão sobre arte e biotecnologia.
Essa linha de investigação resultou em diversos projetos, dos quais destacam-se aqui o mais recente, "Move 36" (2004) e "GFP Bunny" (em curso desde 2000), cuja documentação está em exposição na Laura Marsiaj Arte Contemporânea, a partir de amanhã, no Rio. "Move 36" faz parte da Bienal de São Paulo e já está em exibição na Bienal da Coréia. Trata-se de uma instalação viva, cujo título faz referência à histórica partida de xadrez entre Kasparov e o supercomputador Deep Blue em 1997, na qual a máquina venceu o homem.
De acordo com Kasparov, foi no 36º movimento que a partida foi definida em favor de Deep Blue. Em sua obra, Kac transforma esse momento em mote para discutir a inteligência artificial e suas ambivalências em relação ao pensamento cartesiano.
Segundo Kac, se, por um lado, o pensamento de Descartes foi crucial para a compreensão matematizada do mundo, estando, por isso, relacionado à própria história da computação, por outro, foi esse mesmo pensamento que consolidou a visão dualista da vida, dividida entre mente e corpo, entendendo o corpo como a porção maquínica e hierarquicamente inferior do conjunto.
"Acho interessante pensar que, no jogo em que Deep Blue venceu Kasparov, a máquina exibiu sutileza, enquanto o ser humano falhou naquilo em que era imbatível. Onde antes falhava a máquina, falhou o humano. Onde as nuanças humanas haviam se sobressaído, a nuança da máquina preponderou. A obra indaga: que lição extrair desse evento para o futuro?", diz o artista.
A discussão é feita de maneira irônica em um tabuleiro de xadrez com quadros de areia e terra, onde, no ponto exato em que Deep Blue preparou o xeque-mate, se encontra uma planta criada em laboratório. A modificação foi realizada por um gene artificial criado a partir da tradução da célebre frase "Cogito ergo sum" [Penso, logo existo, de Descartes] em código binário e retraduzida em código genético -que faz com que as folhas se enrolem ao crescer, contrariando sua lógica natural, que as faria planas na maturidade. "Move 36" obriga a pensar nos tênues limites que hoje se colocam entre homens, objetos que incorporam qualidades humanas e seres vivos codificados por informações digitais.
No caso do projeto "GFP Bunny", que transformou uma coelha albina, Alba, em uma verdadeira celebridade internacional, essa reconfiguração de parâmetros entre natural e artificial é questionada pelo prisma da ética e do afeto.
Nascida em 2000 em um laboratório francês, ela foi modificada pela introdução de uma proteína artificial no seu embrião. A proteína, conhecida pela sigla GFP e que quer dizer proteína verde florescente, faz com que o corpo albino do animal, em determinadas condições de luz e temperatura, adquira um tom esverdeado.
Quando o projeto começou, Kac pretendia levar Alba para sua residência em Chicago para criá-la e, assim, discutir as novas responsabilidades sociais e críticas que acompanham a produção cultural e científica contemporânea. Proibido pelo laboratório de dar prosseguimento a essa idéia, criou o movimento "Free Alba", que tem os mesmos propósitos e é divulgado em várias formas (de cartazes urbanos a camisetas e comunidades on-line).
A repercussão dessa mobilização compõe "Rabbit Remix", em cartaz no Rio de Janeiro a partir de amanhã, em que o artista acerta os últimos detalhes de seu livro "Luz & Letra", com ensaios críticos sobre arte e tecnologia escritos entre 1982 e 1988.
Em entrevista ao Mais!, Kac comenta e discute as diferentes faces de sua criação.
GB - Você é citado como um dos pioneiros da arte biotecnológica e um dos precursores da "e-poetry", por seus trabalhos literários dos anos 1980, com vídeo e holografia. Os dois campos de ação são tratados como momentos independentes. Mas chama a atenção o modo pelo qual a exploração do código, seja ele verbal, seja genético ou binário, ocupa um lugar central na sua reflexão. Poderíamos dizer, então, que você é, acima e antes de tudo, um artista do código?
EK - A minha preocupação central não é focada no código em si, mas na multiplicidade de processos comunicacionais. O que sempre me interessou e interessa, como artista e teórico, foi o desejo de explorar o fenômeno da comunicação em sua ampla vastidão, desde a linguagem humana até as linguagens de programação, do chamado código genético até a comunicação entre espécies, da comunicação não-semiótica (como as janelas que permitem a comunicação da temperatura externa ao interior de uma residência, por exemplo) aos processos distribuídos em rede (internet).
GB - Seus primeiros projetos, no Rio de Janeiro, tinham forte conotação política e faziam parte dos movimentos de contestação à ditadura brasileira. Qual é o lugar da política nos seus projetos hoje?
EK - A manifestação política não desapareceu, mas se tornou mais sutil. No caso da arte transgênica, todo o meu processo de criação e produção reflete uma crítica à visão determinista de que a genética pode explicar claramente todos os aspectos da vida. Eu discordo e procuro mostrar que essa visão não vem de uma "ciência", mas é moldada por uma visão ideológica particular.
GB - A interdição de Alba tornou-se o mote para uma série de projetos de intervenção urbana e on-line que exigiam a libertação da coelhinha. A força estética da imagem do animal em tons de verde florescente tornou-se conhecida no mundo todo. Transformada em objeto, passível de ser colecionado, não se perde o sentido mobilizatório da campanha "Free
Alba", cedendo ao sensacionalismo que se sobrepôs à discussão sobre a ética e o afeto quanto aos transgênicos?
EK - [O filósofo austríaco] Martin Buber já havia deixado claro que o problema não reside na transformação momentânea de um sujeito em objeto (como uma pessoa sendo o objeto da afeição de outra), e sim na fixação dessa condição sem possibilidade de liberdade (como na escravidão). Alba continua sendo um sujeito com meus desenhos e com minhas fotografias, por meio dos quais me reaproprio da repercussão da obra na mídia e faço uma "metacrítica visual".
Tudo isso coexiste com as manifestações de rua e de rede e me ajuda a sustentar a presença de Alba no espaço público e a levar adiante sua dimensão mobilizatória.
Giselle Beiguelman é professora da pós-graduação em comunicação e semiótica da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e autora de "O Livro depois do Livro" (ed. Fundação Peirópolis)
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