Originalmente publicado em Jornal da Tarde, São Paulo, 12/2/00.
Uma nova dimensão: a arte biotecnológica
Quais são as novas possibilidades estéticas que despontam na
interpenetração da tecnologia digital e a da biotecnologia? Uma das
propostas é sintetizar fenômenos naturais numa mídia artificial,
como os computadores, no intuito de entender os sistemas vivos
em toda a sua complexidade. As novas formas de arte A-life derivam
da computação e da Inteligência Artificial
Por Sílvio Mieli
A cada tipo de sociedade corresponde uma máquina e uma forma de arte.
Se hoje podemos traçar a genealogia dos objetos técnicos, classificar as
imagens - sejam elas analógicas ou digitais - e indagar sobre os seus
suportes, é porque arte e a técnica resistiram ao tempo e à própria morte.
Suportar e resistir são sinônimos.
O filósofo francês Gilles Deleuze dizia que, se a informação molda e
define a sociedade de controle, a contra-informação só se efetiva num ato
de resistência. "Poderíamos dizer, então, que arte é aquilo que resiste" ,
concluiu. Todo ato de resistência seria, de certo modo, uma obra de arte,
e toda arte conteria germes de resistência. "O ato de resistência possui
duas faces. Ele é humano e é também um ato artístico. Somente o ato de
resistência resiste à morte, seja sob a forma de uma obra de arte, seja
sob a forma de uma luta dos homens", propôs Deleuze.
Apontar o ato de resistência como a interface comum entre comunicação
e arte numa sociedade de controle parece fundamental para compreender
as linguagens contemporâneas, particularmente as novas possibilidades
estéticas que despontam na interpenetração da tecnologia digital e a da
biotecnologia.
Se percebermos bem, todos os movimentos artísticos que influenciaram
este século foram, cada um a seu modo, atos de resistência. Resistência
à simplificação das linguagens; resistência aos materiais convencionais;
resistência do próprio corpo do artista transformado em obra de arte nos
movimentos mais radicais.
A este respeito basta dar uma olhada na recente publicação Le Siècle
Rebelle ("O século rebelde; dicionário da contestação do século 20"),
dirigido por Emmanuel Waresquiel, e editado pela Larousse-Bordas.
Apesar das limitações espaciais dos dicionários enciclopédicos e de
algumas falhas graves - não consta um bom verbete específico sobre arte
conceitual e omite-se o papel de artistas brasileiros como Hélio Oiticica -,
há uma providencial recuperação histórica, social, política e estética da
rebeldia. De Sacco e Vanzetti à teologia da Libertação; de Lautréamont a
Pasolini; do Jazz ao Dodecafonismo; da Antropofagia à Mimimal Art; de
Eiseinstein a Kubrick; de Zapatta a Nelson Mandela; do Butoh à Pina
Bauch; de Gramsci a Chomsky, até incluir recentes sensibilidades
contestatórias (Hackers, Hip-Hop, Zapatistas, Drag-queens, Interatividade,
Piercing, Rave, Punk, Techno). A estrutura hipertextual da obra nos ajuda
a entender, por exemplo, o que têm em comum o fundador da videoarte
Nam June Paik, o músico John Cage, a vanguarda Dada, o grupo Fluxus,
os Happenings, as Instalações, num exercício indispensável. Ao folhear o
dicionário, percebemos que a palavra resistência assumiu um sentido que
vai muito além da contestação pura e simples ao sistema.
Mas o que é resistir à morte na virada do século e do milênio? Resistir a
quê? Ou, antes disso, por que resistir? Ora, quando embaralha-se o
conceito de vida com a informação contida na molécula de DNA; quando
sofisticam-se as formas de controle; quando novos suportes
informacionais engendram linguagens definidas muito mais pelas suas
relações do que pelas suas especificidades, a arte mesma vai
redimensionar os seus gradientes de resistência. Pode não oferecer
resistência a nada, estetizando simplesmente a informação quantitativa,
ou, ao contrário, pode multiplicar os pontos de vista, aprofundando o
debate das inter-relações homem-máquina.
Um excelente campo de análise é a Internet, espaço de informação e
contra-informação fundamental, inclusive como suporte artístico, para
onde estão fluindo as novas experiências multimediáticas, eletrônicas e
telemáticas.
Em maio de 1998, Rinaldo acionou o programa de buscas da Internet
AltaVista para descobrir quantos sites apareciam sob a palavra-chave
artificial "life" (vida artificial). Na época, retornaram 14.647 indicações. Se
refeita hoje, a mesma busca alcançaria 20.830 hits. O crescimento é
geométrico, diretamente proporcional aos seres artificiais lançados na
Internet.
Os trabalhos do artista Tom Ray (Projeto Tierra) e do biólogo inglês
Richard Dawkins (Terra dos Biomorphs) podem ser uma boa introdução
ao universo da A-life. Os projetos ainda não estão online, mas é possível
fazer um download dos softwares utilizados. Tierra
(www.hip.atr.co.jp/~ray/tierra/whatis.html) "é o resultado da produção de
organismos sintéticos baseados numa metáfora computacional de
formas orgânicas, na qual o tempo da CPU é a fonte energética e a
memória é a própria fonte material dos organismos", resume Ray. Já
Dawkins (www.world-of-dawkins.com/) , um neodarwinista convicto,
construiu um modelo no qual moram possíveis formas de organismos (os
biomorfos), submetidos a um processo algorítmico artificial de evolução
"natural". Sua teoria estabelece um paralelo entre vida biológica e a digital.
Tanto Ray quanto Dawkins propõem sintetizar fenômenos naturais numa
mídia artificial, como os computadores, no intuito de entender os sistemas
vivos em toda a sua complexidade.
Na verdade, as novas formas de arte A-life derivam da computação e da
Inteligência Artificial (IA), que por sua vez têm origem na cibernética - a
ciência que queria expressar os fenômenos mentais por meio de um
formalismo matemático, passando a comparar o cérebro a uma máquina
dedutiva.
Com a explosão da era digital, seguida do Projeto Genoma - que propõe e
decodificação completa do código genético humano -, os genes
passaram a ser comparados por artistas e biólogos a longas fileiras de
pura informação digital. Surgiram assim os algorítmos genéticos,
complexas fórmulas matemáticas injetadas pelo artista/biólogo às suas
criaturas, cujo comportamento, apesar de programado, poderia gerar
encontros inusitados e até incluir a participação de espectadores (via
Internet) na trajetória dos seres mutantes.
É o caso dKenneth Rinaldo, escultor, professor e artista multimídia,
compara o surgimento da vida na terra com os atuais fluxos circulantes
na rede. Pode parecer exagerado, mas é exatamente esse o espírito que
anima as experiências artísticas reunidas sob o rótulo A-life (vida
artificial). "A livre troca de informações na Internet criou uma vida artificial
semelhente àquela sopa primordial, que possibilitou a criação das
primeiras centelhas de vida a partir das bases de carbono", justificae
Nerve Garden I (www.biota.org/nervegarden/index.html), apresentado
pela primeira vez na SIGGRAPH, em 97, ambientado no ciberespaço da
Internet. Trata-se de um projeto cyberbiológico concebido pelo consórcio
californiano Biota Working Group (Bruce Damer, Tom Ray, Chris Langton
e outros), interessado em pesquisar a linguagem VRML - um método que
permite a visualização de aplicações em 3D nos browsers com o quais
navegamos na rede. A idéia é começar uma espécie de "colonização
vegetal" online. O visitante pode germinar sua própria planta mutante a
partir de um sistema matemático chamado L-systems.
Nomeia a sua muda, define a ilha, ou o ecossistema onde será inserida
(insetos inclusos), e daí em diante uma natureza artificial composta de luz
e sons calculados por algorítmos genéticos vai interferir na evolução do
espécime.
Menos sofisticados, mas seguindo a mesma lógica, Technosphere, da
artista inglesa Jane Prophet (194.80.29.2/technosphere/index.htm) e
Bodies Incorporated, coordenado por Victoria Vesna da Universidade da
Califórnia/Santa Bárbara, também permitem a construção virtual,
respectivamente, de seres e robôs mutantes. Tal qual os Tamagochis,
só que agora via Internet, podemos nomeá-los e até receber mensagens
sobre como "crescem", se "reproduzem" e "morrem".
Coube à mostra Ars Eletronica (www.aec.at/) introduzir definitivamente no
universo artístico palavras até então restritas ao vocabulário da biologia e
da genética - gene, genoma, plasmídeos, transgênese, entre outras. De 4
a 9 de setembro último, concentraram-se na cidade austríaca de Linz os
expoentes da cybergeneration - especialistas em artes interativas,
computação gráfica, efeitos visuais, música digital, designers gráficos,
webmasters e demais exercícios de hibridações e tendências múltiplas
entre essas áreas. Durante duas décadas de existência, a Ars Eletrônica
teve papel importante na discussão e divulgação de novas formas de arte,
como a Web Art, também conhecida como Net Art. Passaram por lá,
só para citar um exemplo, a dupla Jodi (Joan Heemskerk e Dirk
Paesmans), www.jodi.org, que trabalha com o aleatório e com a
subversão dos códigos na Internet - desviando o internauta das
monótonas retas ciberespaciais, com seus banners publicitários e
lojinhas de conveniência duvidosa.
O tema da edição de aniversário da Ars Eletronica foi Science Life, que
iria focar as convergências entre tecnologia de informação digital,
engenharia genética e biotecnologia. A estrutura do evento já nos diz algo
sobre a arte na era pós-biológica. Paralelamente à mostra de arte
eletrônica, foi realizado o LifeScience Symposium, patrocinado pela
gigante Novartis - terceira maior investidora em sementes transgênicas
do mundo. Médicos, biólogos, filósofos, economistas discutiram o
determinismo biológico, o processamento industrial da vida, o
biobusiness, agribusiness, pharmabusiness, e a "impressão digital
genética".
Algumas das performances e das obras comissionadas pelo evento
adaptaram pura e simplesmente preceitos e metodologias
biotecnológicas, tangenciadas pela Internet como suporte preferencial dos
artistas. Foi o caso do brasileiro Eduardo Kac, que apresentou Gênesis,
um dos seus exemplos de "Arte transgênica". O trabalho parte do
versículo 26 do Gênesis, Antigo Testamento: "Então Deus disse:
Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre
os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e
sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastam sobre a
terra."
Este versículo foi traduzido em código Morse e, posteriormente, a partir de
critérios escolhidos pelo próprio artista, vertido para uma seqüência de
bases nitrogenadas (A,T,C,G). As bases foram injetadas numa bactéria
Escherichia coli. Em seguida, há todo um espetáculo de luz e som, que
permite a reprodução das bactérias modificadas à distância pelo
internauta (www.ekac.org/kacode.html). Uma celebração da capacidade
humana de controlar processos biológicos.
No final de outubro de 99, um despacho da Associated Press divulgava o
site do fotógrafo Ron Harris (www.ronsangels.com), um agenciador de
óvulos de modelos femininos. O site de Harris, e sua proposta de leiloar
óvulos pela Internet, é um típico hype, palavra que já entrou no léxico
global e que significa um "exagero, amplificação mediática, construção
puramente espetacular de um problema que invade a cena social por
meio dos circuitos da comunicação de massa". Mais preocupado em
autopromoção do que efetivamente disposto a mercadejar óvulos, o site
de Harris alardeia frases do tipo: "A seleção natural de Darwin no que ela
tem de melhor" ou "Deixe o mercado determinar o verdadeiro preço de
seus óvulos e esperma".
Pelo menos um jornal americano, o The Washington Times - em sua
edição de 26 de outubro - relacionou o hype de Ron Harris a um trabalho
bem anterior, muito mais fino e sofisticado. Em 1976, antes do primeiro
bebê de proveta vir ao mundo, o artista americano Joey Skaggs, utilizando
o codinome de Giuseppe Scaggoli, lançou o Celebrity Sperm Bank, cujo
objetivo era leiloar mostras de esperma de astros de rock, como Mick
Jagger, Bob Dylan, Paul McCartney, Jimmy Hendricks. Joey Skaggs
organizou um evento na Waverly Place, em Nova York, onde atores
recrutados pelo artista simulavam piquetes de feministas, sociólogos,
psiquiatras e músicos pró e contra a iniciativa. Era o início da carreira de
Skkags, o artista que usa a própria mídia como suporte. À primeira vista o
trabalho de Skaggs parece datado, na medida em que articula uma
contra-informação assentada em táticas de guerrilha midiática, mas na
verdade utiliza comunicação de ponta, recursos performáticos
atualizados, metodologia rigorosa aliada a um raro talento publicitário.
Ainda em 1976, realizou a "Cathouse for Dogs" ou "Motel para
Cachorros", quando dezenas de cidadãos novaiorquinos responderam ao
anúncio publicado no Village Voice, oferecendo "satisfação sexual para o
seu cachorro por US$ 50". A obra do artista, incluindo uma performance
canina simulando um bordel no So-Ho, teve ampla cobertura da
WABCTV, que depois do evento, mesmo sabendo tratar-se de uma
"peça", nunca se retratou publicamente.
"The fat Squad Commandos" (1986), o programa de monitoramento de
dieta coordenado pelo Dr. Joe Bones (Joey Skaggs) - que a cada oito
horas destacava uma espécie de "personal trainner" para lembrar o
cliente da dieta rigorosa que prometeu fazer - arrebanhou interessados
até na Europa. Bones (Skaggs) chegou a dar entrevista no famoso "Good
Morning America", da rede ABC. Em seguida, seria a vez da TV Globo
acreditar no exótico "Baba Wa Simba" (1995), o filho de missionários
quenianos criado entre leões, que foi a Londres aplicar a sua terapia
"leonina" - comer carne crua em conjunto e rugir em alto e bom som
(atividade a que os repórteres se submeteram para cobrir o evento).
Finalmente, a CNN, em 1996, deu todo o peso de sua credibilidade ao
"Projeto Solomon", do advogado Bonuso (Skaggs).
Dr. Bonuso criara um software que substituía a presença dos jurados
num tribunal. "As máquinas são mais perfeitas que os seres humanos",
dizia o release do Dr. Bonuso, que se intitulava professor de direito pela
NYU. Skaggs/Bonuso chegou a arrastar a imprensa para a sofisticada
produtora multimídia Voyager, onde fez uma simulação do software -
upgrade do já conhecido "detector de mentiras". Para comprovar a
eficácia do projeto, Dr. Bonuso dizia que Solomon analisou o caso O. J.
Simpson, e o ex-jogador de futebol americano foi considerado culpado.
Os meios jurídicos ficaram boquiabertos e a CNN deu destaque nacional
(http://www-cgi.cnn.com/US/9601/scam_artist/index.html), cometendo
aquele erro básico do jornalismo: não checar as fontes de informação.
"Estou plugado nos meios de comunicação de massa e sei como
funcionam. Olho para as notícias como se fossem comerciais e para os
comerciais como se fossem notícias. Sei exatamente como ambos são
construídos e para que finalidade são direcionados. Vejo como afetam o
pensamento das pessoas", disse Skaggs, acrescentando: "Sou eu contra
todo os establishment. Por isso eu amo tanto esse meio. Porque o meio,
ele mesmo, resiste a mim."
Uma das últimas peças de Skaggs, utilizando a Internet, envolve um
intrincado esquema de biopirataria, e merece ser vista em:
www.joeyskkags.com/html/stop.html. Quanto ao seu projeto atual, ainda é
um mistério. Há quem diga que por trás da venda de espaço publicitário
na superfície da lua, boato amplamente divulgado na rede, existe um
corretor amigo de Skaggs.
Sintetizando fenômenos naturais numa mídia artificial, como
computadores ou robôs, ou transformando a própria mídia como objeto de
arte, o que parece estar em jogo entre as novas tendências artísticas é a
sobrevivência do acaso e daquela margem de indeterminação
fundamental na relação homem-máquina. Sem um componente de
fatalidade, desaparece o que foge do controle, da dominação e o que
garante a variabilidade e a biodiversidade ambiental, artística, cultural,
informacional.
Como no filme Gattaca (1997), do antenado Andrew Niccol - roteirista de
Truman Show -, num futuro que em muitos aspectos já é presente a
discriminação vai virar uma ciência determinista, funcional e reducionista.
Nos tempos de Gattaca a vida já foi reduzida a um pacote de genes. As
nossas próprias células substituirão as senhas e os currículos; quem
driblar o sistema será acusado de GENOISMO; quem nascer de métodos
naturais será chamado DE-GENERADO (ou "Filho da Fé"). Antes do
primeiro beijo os namorados submeterão pedaços de cabelo dos seus
pretendentes ao seqüenciamento genético, para conhecer melhor o(a)
parceiro(a).
Quando as informações genéticas passam a ser, elas mesmas, o próprio
controle, é porque as resistências andam em baixa. Uma sugestão para a
reação talvez seja o mote de Gattaca: "Não há gene para a fatalidade",
além da subversão premonitória do poeta simbolista Stéphane Mallarmé:
"Um lance de dados jamais abolirá o acaso."
Silvio Mieli é jornalista, professor da Faculdade de Comunicação e
Filosofia da PUC-SP
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