Originalmente publicado em português em: Maciel, Katia (org). Redes sensoriais: arte, ciência, tecnologia (Rio de Janeiro : Contra-Capa, 2003), pp. 259-264.
O OITAVO DIA
Eduardo Kac
O Oitavo Dia [The Eighth Day] é uma obra de arte transgênica que investiga a nova ecologia de criaturas fluorescentes que se desenvolve em todo o mundo. Desenvolvi esse trabalho no Institute for Studies in the Arts, na Arizona State University, Tempe, onde ele foi exposto em 2001 [1]. Enquanto criaturas florescentes existem isoladamente em laboratórios, vistas coletivamente formam o núcleo de um novo sistema sintético bioluminescente. A obra reúne formas de vida transgênica e um robô biológico (biorobô) em um ambiente sob um domo de plexiglás de 1,25 m de diâmetro, tornando visível como seria se essas criaturas co-existissem de fato no mundo.
ECOLOGIAS TRANSGÊNICAS
Ao caminhar dentro da galeria, o visitante vê inicialmente uma semi-esfera azul brilhante contra um fundo escuro. A semi-esfera é o domo luminoso de 1,25 m de diâmetro, com sua luz azul interna. O visitante também ouve os sons recorrentes do fluxo e refluxo da água no litoral. Isso evoca a imagem da Terra vista do espaço. Os sons da água funcionam como uma metáfora da vida na Terra, reforçada por sua imagem azul esférica, e complementam o vídeo da água em movimento projetado no solo. Para ver O Oitavo Dia, o visitante é convidado a "caminhar sobre a água".
O Oitavo Dia apresenta uma expansão da biodiversidade além das formas de vida de tipo selvagem. Como um sistema ecológico artificial autocontido, ele ecoa as palavras do título, que adicionam um dia ao período de criação do mundo, tal como é narrado nas escrituras judaico-cristãs. Todas as criaturas transgênicas de O Oitavo Dia são criadas pela clonagem de um gene que codifica a produção de green fluorescent protein (GFP, ou Proteína Fluorescente Verde). Como resultado, todas as criaturas expressam o gene por meio da bioluminescência, e seu brilho pode ser visto claramente pelo público. As criaturas transgênicas de O Oitavo Dia são plantas GFP, amebas GFP, peixes GFP e camundongos GFP. [2]
Embora se possa pensar que O Oitavo Dia seja pura especulação (sobre um futuro hipotético), um exame mais de perto dos desenvolvimentos contemporâneos revela que a ficção científica se tornou fato. Com O Oitavo Dia, chamo a atenção para o fato de que uma ecologia transgênica já existe. [3] Safras transgênicas são polinizadas por cruzamento por insetos que voam de um lugar a outro. Animais transgênicos são encontrados em fazendas por todo o mundo. Peixes e flores transgênicos estão sendo desenvolvidos para o mercado global de ornamentos. Vacinas transgênicas em forma de frutas estão sendo pesquisadas. Novas variedades de animais e vegetais estão sendo desenvolvidas, como porcos com genes de espinafre, cepas de uvas com genes do bicho-da-seda e batatas com genes de abelha e mariposa [4]. Não compreendemos a complexidade dessa transformação cultural quando dirigimos por uma plantação de milho, colocamos uma camisa de algodão ou bebemos um copo de leite de soja.
O Oitavo Dia dramatiza essa condição, reunindo seres originalmente desenvolvidos isoladamente em laboratórios. Agora, tais seres são criados e selecionados especificamente para o O Oitavo Dia. Seleção e mutação são duas importantes forças evolucionárias. O Oitavo Dia toca literalmente na questão da evolução transgênica.
A BIO-ROBÓTICA TRANSGÊNICA
Um biorobô é um robô com um elemento biológico ativo em seu corpo, responsável por aspectos de seu comportamento. O biorobô criado para O Oitavo Dia possui uma colônia de amebas GFP [5] que funciona como seu sistema nervoso central. Quando as amebas se dividem ou se movimentam em uma direção particular, o biorobô se movimenta de forma correspondente.
O corpo do biorobô é biomórfico. Feito de vidro transparente e ondulado, permite a visão do interior, mas distorcida pelas múltiplas curvas. O corpo do biorobô funciona como um bio-reator, alimentando e cultivando a colônia de amebas. As amebas formam uma rede. Em resposta aos estímulos ambiental, elas interrompem seu comportamento individual e passsam a se comportar como um único organismo multicelular. Junto com um sensor interno e um computador, essa rede de amebas constitui o "sistema nervoso central" do biorobô. O sensor é responsável pelo rastreamento do movimento das amebas e o computador emite comandos para as pernas do biorobô, em resposta a tal movimento. O biorobô tem seis pernas. Quando as amebas se movem na direção de determinada perna, ela se contrai, fazendo o biorobô inclinar-se para a frente. Em geral, uma perna se contrai enquanto outra retorna à posição original, criando uma seqüência mais complexa de movimentos. Para frente ou para trás, para um lado ou para o outro, o movimento se torna um sinal visual da atividade das amebas.
O biorobô também funciona como o avatar dos usuários da internet no interior do ambiente. Independentemente do movimento do biorobô, os usuários da internet podem controlar seu olho, girando-o quase 360 graus ao redor do corpo. O movimento autônomo de avanço e recuo permite aos usuários da internet uma nova perspectiva do ambiente. O comportamento global do biorobô é uma combinação da atividade que ocorre na rede microscópica de amebas e na rede humana macroscópica. Humanos e amebas "se encontram" no corpo do biorobô e afetam mutuamente suas experiências e seus comportamentos, produzindo, com seu acoplamento, um "domínio consensual" [6] efêmero.
A VISÃO DO INTERIOR
Na galeria, os visitantes podem ver o terrarium com criaturas transgênicas tanto do interior quanto do exterior do domo. Enquanto eles permanecem no exterior observando-o, alguém que esteja conectado ao biorobô vê o espaço de sua perspectiva, olhando para fora, percebendo detalhes do ambiente transgênico e os rostos e corpos dos espectadores locais. Um computador online instalado na galeria também dá aos visitantes um sentido exato do que é a experiência na internet, remotamente.
Os visitantes podem acreditar temporariamente que o seu é o único olhar humano contemplando os organismos no domo. Quando navegam na interface da internet, contudo, percebem que espectadores remotos também podem experimentar o ambiente de cima para baixo, visualizando-o por meio de uma câmera instalada sobre o domo. A partir deste "olhar vertical" (divino?), eles podem fazer movimentos de giro, inclinação e zoom, vendo, do alto ou de mais perto, humanos, camundongos, plantas, peixes e o biorobô. Assim, do ponto de vista de um participante remoto, os observadores locais tornam-se parte da ecologia de criaturas vivas apresentadas na obra.
Ao tornar possível que os participantes estejam imersos no ambiente interior do domo do ponto de vista do biorobô, O Oitavo Dia cria um contexto no qual os participantes podem refletir sobre o significado da ecologia transgênica de uma perspectiva em primeira pessoa.
A TRANSGÊNICA CONDIÇÃO HUMANA
A co-existência tangível e simbólica do humano e do transgênico mostra que os humanos e as outras espécies estão evoluindo por novos caminhos. Ela dramatiza a necessidade urgente de desenvolver novos modelos que tornem possível entender essa mudança, e chama a atenção para a interrogação da diferença, levando em conta clones, transgênicos e quimeras.
O Projeto Genoma Humano deixou claro que todos os humanos possuem em seu genoma seqüências oriundas de vírus (cf. Brown 1999; Baltimore 2001: 814-6) [7], adquiridas por meio de uma longa história evolutiva. Isso mostra que nós temos em nossos corpos o DNA de organismos não humanos. Em última análise, isso significa que também nós somos transgênicos. Antes de decidir que todos os transgênicos são "monstros", os humanos devem olhar para o interior e compreender sua própria "monstruosidade", isto é, sua própria condição transgênica.
A percepção comum de que transgênicos não são "naturais" é incorreta. É importante compreender que o processo de transferir genes de uma espécie para outra é parte da vida natural (sem participação humana). O melhor exemplo é a bactéria chamada "agrobactéria", que entra na raiz das plantas e lhe comunica seus genes. A "agrobactéria" possui a habilidade de transferir DNA para as células vegetais e de integrar o DNA ao cromossoma da planta. [8]
O Oitavo Dia sugere que as noções românticas do que é "natural" têm de ser questionadas, e que o papel humano na história da evolução de outras espécies (e vice-versa) tem de ser reconhecido, ao mesmo tempo em que nossa espécie se maravilha, humilde e respeitosamente, com esse fenômeno sem paralelo que chamamos de "vida".
Tradução de Ana Valéria Lessa revisada pelo autor.
NOTAS
1 - Equipe de O Oitavo Dia: Richard Loveless, Dan Collins, Sheilah Britton, Jeffery (Alan) Rawls, Jean Wilson-Rawls, Barbara Eschbach, Julia Friedman, Isa Gordon, Charles Kazilek, Ozzie Kidane, George Pawl, Kelly Phillips, David Lorig, Frances Salas e James Stewart. Agradecimentos adicionais a Andras Nagy, Samuel Lunenfeld Research Institute, Toronto; Richard Firtel, University of California, San Diego; e Chi-Bin Chien, University of Utah, Salt Lake City.
2 É importante destacar que todos os organismos estavam com excelente saúde e tiveram todas as suas necessidades diárias atendidas, antes, durante e após a exposição.
3 Isso é verdade sobretudo nos Estados Unidos, onde muitas safras (milho, algodão, cânola e soja, por exemplo) são transgênicas, mas é uma realidade crescente em outras partes do mundo, notavelmente na Argentina, no Brasil, no Canadá e na China. De fato, a American Association for Health Freedom indicou que, em 2001, mais de 60% dos alimentos fabricados nos Estados Unidos continham ingredientes criados geneticamente, incluindo refrigerantes, cereais, sopas, óleos, molhos de salada, sucos, alimentos enlatados, biscoitos, snacks e comida para bebês. Esse quadro foi confirmado pela observação do International Food Information Council.
4 Os novos porcos foram criados no Japão por uma equipe coordenada por Norio Murata, professor no Instituto Nacional de Biologia Básica (cf. Mainichi Shimbun 2002). As uvas com genes encontrados nas larvas do bicho-da-seda foram desenvolvidas para resistir à doença de Pierce pela equipe liderada por Dennis Gray, professor de Biologia do Desenvolvimento da Universidade da Flórida. Em 15 de maio de 2001, o U.S. Patent and Trademark Office emitiu uma patente tecnológica para a Universidade da Flórida e o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. As batatas com genes de abelha e mariposa foram desenvolvidas para combater o fungo da doença das batatas, o mesmo que causou a Grande Fome da Batata da Irlanda, em 1845 (cf. Osusky e outros 1999; Gura 2001: 2.070).
5 A ameba (Dyctiostelium discoideum) também é conhecida como bolor de lodo.
6 Um "domínio consensual" não implica consenso; antes significa consensualidade, coincidência sensorial que, em organissmos mais complexos pode, por extensão, implicar também interação cognitiva.
7 Em e-mail privado de 28 de janeiro de 2002, em continuação de nossa conversa anterior sobre o tema, o Dr. Jens Reich, da Divisão de Informática do Genoma do Max Delbruck Center Berlin-Buch, afirmou: "A explicação corrente para esses enxertos [virais] maciços em nosso genoma (que, incidentalmente, se parecem com lixo) é que esses elementos foram adquiridos em células embrionárias por infecção por retrovírus e sua dispersão posterior pelo genoma, cerca de dez a quarenta milhões de anos atrás (enquanto ainda éramos símios)". O HGP sugere ainda que humanos possuem centenas de genes de bactérias no genoma (cf. International Human Genome Sequencing Consortium 2001: 860). Dos 223 genes que codificam proteínas também presentes nas bactérias e nos vertebrados, 113 casos são considerados confirmados (: 903). No e-mail mencionado, o Dr. Reich conclui: "Parece que não é apenas o homem, mas todos os vertebrados que são transgênicos no sentido de que eles adquiriram genes de um microorganismo".
8 Essa habilidade natural tornou a versão geneticamente manipulada da agrobactéria uma das principais ferramentas da biologia molecular (cf. Herrera-Estrella 1983; Hooykaas & Shilperoort 1992).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BALTIMORE, David (2001) "Our genome unveiled". Nature, n. 409.
BROWN, T. A. (1999) Genomes. Oxford: Bios Scientific Publishers.
GURA, Trisha (2001) "Engineering protection for plants". Science, march.
HERRERA-ESTRELLA, L. (1983) "Transfer and expression of foreign genes in plant". Tese de pós-doutoramento. Belgium, Gent University, Laboratory of Genetics.
HOOYKAAS, P. J. J. & SHILPEROORT, R. A. (1992) "Agrobacterium and plant genetic engineering". Plant Molecular Biology, 19: 15-38.
INTERNATIONAL HUMAN GENOME SEQUENCING CONSORTIUM (2001) "Initial sequencing and analysis of the human genome". Volume 409, n. 6.822.
MAINICHI SHIMBUN (2002) "Cientistas enxertam gene de espinafre em porcos para diminuir a gordura". Edição de 24 de janeiro.
OSUSKY, Milan e outros (1999) "Cationic peptide expression in transgenic potato confers broad-spectrum resistance to phytopathogens". Nature Biotechnology, vol. 17.
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