Originalmente publicado em Amanhã, Edição 166 -Maio de 2001.


AVISO: O ARTIGO DE CHRIS DICKEY ESTÁ REPLETO DE ERROS. PRECEDENDO O ARTIGO O LEITOR ENCONTRARÁ A RESPOSTA DE EDUARDO KAC ENVIADA A WIRED. A REVISTA ESPECIFICOU QUE A RESPOSTA DE KAC DEVERIA TER CERCA DE 200 PALAVRAS, MAS NAO A PUBLICOU.


Date: March 16, 2001
To: Adam Fisher <afisher@wired.com>
From: Eduardo Kac
Subject: Eduardo Kac's letter
Cc: jedwards@wiredmag.com, EOshaughne@aol.com

The article "I Love my Glow Bunny" (Wired 9.04) approached my work with unacceptable factual errors and incomplete accounts that lead to false conclusions.

The errors in the article are too many to list in the short space editorially assigned to this letter.

Mr. Dickey did not to realize that Dr. Houdebine was coerced by the administration of the French institute where Alba was born to completely change his original position. This happened after the publication of the Boston Globe article (9/17/2000). The truth is stated in the Boston Globe article, which confirms that Dr. Houdebine "created her (Alba) for Kac.'' The articles published in the French press prior to the Boston Globe article also confirm this.

Mr. Dickey implies that there was no agreement that Alba would come to Chicago. This is not correct. I have correspondence (dated 5/23/2000) from Dr. Houdebine clearly stating his commitment to send Alba from France to me in the USA.

In spite of the article errors, the most serious problem in this context is the fact that Alba is still at the French institute. I will continue to do everything within my power to bring her home.

Eduardo Kac


Christopher Dickey

Eduardo Kac foi a Paris buscar seu coelho. Hoje radicado em Chicago, o artista conceitual brasileiro virou curiosidade global, em meados do ano passado, ao anunciar que havia criado – em nome da arte – um coelho transgênico que, sob luz azul, emitia uma fluorescência esverdeada. Evidentemente, o trabalho técnico não foi realizado por Kac. Como ele mesmo diz, foi uma encomenda aos pesquisadores especializados do Instituto Nacional de Pesquisa Agronômica da França (INRA, da sigla em francês), organização que reúne 8.600 pessoas em vários centros espalhados pelo país.

Esses pesquisadores isolaram a proteína fluorescente da Aequorea victoria, uma pequena água-viva encontrada no Oceano Pacífico, e a inseriram em meio aos genes de um zigoto de coelho. O filhote resultante, chamado por Kac de Alba, seria exibido, em junho de 2000, em uma exposição de arte digital em Avignon, na França. Em um determinado espaço da exposição, o artista construiu uma sala de estar para demonstrar como seria se tivéssemos um coelho de estimação fluorescente. Depois da mostra, pretendia levar Alba para viver com a família do artista em Chicago. Entretanto, na noite da abertura da exposição, o diretor do Instituto de Pesquisas, Paul Vial, subitamente se negou a entregar o coelho. Sua equipe tinha fabricado Alba, tinha financiado o projeto e, assim, ficaria com o bichinho.

Os organizadores da mostra denunciaram o fato como uma manifestação disfarçada de censura. Kac retornou para Chicago sem seu coelho. E a lenda começou a ser criada. “Lebre híbrida: coelho mutante fluorescente no centro da controvérsia sobre manipulação do DNA”, denunciava o The Boston Globe em setembro passado. Entre surpreso e horrorizado, o público foi apresentado às implicações do que Kac chama de “arte transgênica”. O que poderia vir depois? Cavalos azuis? Vacas vermelho-sangue? Poodles com a marca Prada? Buldogues com o logotipo Vuitton?

Como muitas outras, a estranha história de Alba foi amplamente lida e discutida por um dia ou dois e, então, subitamente esquecida. Mesmo assim, Kac está determinado a manter Alba vivo na imaginação do público e, por fim, levar para casa seu coelhinho, uma vítima política que clama por libertação.

Quando contatei Kac, no início deste ano, ele havia retornado a Paris para mobilizar o apoio de seus colegas da arte high tech. Estava expondo trabalhos recentes, dando conferências na Sorbonne e na École des Beaux-Arts. Planejava até organizar um comício. (Kac é membro-pesquisador PhD do Centro de Pesquisa Avançada em Arte Interativa da Universidade de Wales e professor assistente de Arte e Tecnologia do Instituto de Artes de Chicago. Vencedor de inúmeros prêmios e menções honrosas, seu trabalho faz parte, entre outras, da coleção do MoMA de Nova Iorque e do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.)

Frankenstein ou São Sebastião – Tempo de levar a campanha Alba Livre para as ruas. Kac estava colando pôsteres por toda a margem esquerda do Sena e em Montmartre. Cada um mostrava uma foto do artista segurando Alba em seus braços. Acima da imagem, havia diferentes dizeres: religião, mídia, ética, arte, ciência, família. Dias depois, a campanha chega a uma feira de arte e objetos baratos. Kac pendura um cartaz de Alba com a palavra “família” entre uma coleção de pôsteres políticos cobertos de pichações, observado por alguns homens que bebiam cerveja. Um deles, que se identificou como “artista Cristophe”, perguntou a Kac se poderia grafitar o cartaz. Kac disse que sim e ficou de lado, explicando de onde ele era, o que estava fazendo, que aquele era o coelho transgênico por ele criado e que queria levar o bichinho para casa.

“Ah, c’est magnific!”, dizia Cristophe, concentrado em seu grafite: uma cicatriz na testa de Kac, um sorriso transviado em seus lábios, pinos saindo de seu corpo. A referência a Frankenstein é inegável, mas Kac não a percebeu. Interpretando os pinos como setas, concluiu que Cristophe “o transformara em um São Sebastião”, freqüentemente representado no momento de seu martírio, quando foi trespassado pelas flechas de seus inimigos.

Mas Cristophe não terminou por aí. Desenhou cinta-liga e meia arrastão em Alba. Bebendo mais um gole de cerveja, o artista dá um passo atrás para examinar melhor seu trabalho. “Ficou bom, não é?” Há uma certa animosidade no ar. “É o dr. Frankenstein. Você não é brasileiro? Não é um dos descendentes daquele velho nazista que costurava pedaços de clones em um só?” Alba, um dos Meninos do Brasil, um dos meninos de Mengele.

Agora temos um significado, mas Kac não se dá conta. Cristophe levanta a voz: “Afinal o que você vai fazer com esse coelho? E o sofrimento por que ele pode estar passando? Onde está a arte nisso? Você criou vida. Você é Deus. É isso: você é o dr. Frankenstein!” Kac começa a falar sobre a longa história da criação de espécies animais, sobre os 50 mil anos que se passaram até que se chegasse ao cão doméstico de hoje, mas Cristophe não está dando a mínima. “Bem”, diz Kac, “já chega de discutir com um homem na rua”.

Vi as fotos que aparecem no website de Kac: o artista, de pé, diante de um fundo geométrico marrom, rosto radiante como o de um pai orgulhoso na saída da sala de parto. Alba parece um pouco confuso, mas plácido e branco. Nessa mínima evidência documental que Kac possui para reclamar seu coelho luminoso, ele é bastante branco, com olhos rosas. Nem um traço de verde, nenhuma sugestão de brilho. Aprofundando-me na literatura disponível na página, encontro uma explicação: “Alba não é verde o tempo todo. Brilha apenas quando iluminado com a luz correta.” Então, por que uma outra imagem, divulgada na página em que Alba aparece obviamente pintado de verde, tenta passar a idéia de coelho fluorescente?

O mais perturbador é o fato de que o INRA tem uma visão bem diferente da criação de Alba. Para eles, o filhote não é arte, mas apenas mais um entre as várias espécies portadoras da proteína fluorescente verde. O chefe de pesquisas da organização chegou a afirmar que Alba não existe. “Para mim, trata-se do coelho número 5.256 ou algo assim.”

Mas, afinal, quem é o brasileiro do coelho e o que seu bichinho transgênico realmente representa, se é que ele tem algum significado? Na mostra Arquivos de Arte da Universidade de Paris, onde nos encontramos pela primeira vez, Kac estava assistindo a um vídeo a respeito dele mesmo projetado sobre uma seringa emoldurada, cuja agulha tinha a aparência mais mortal que vi. Ao lado dela, uma pequena pílula de plástico.

A cena fazia parte de uma instalação chamada Cápsula do Tempo. A pílula, na verdade, era um microchip que, em 1997, diante das câmeras de TV brasileira, Kac havia injetado em seu corpo logo acima do tornozelo. “A seringa é a mesma que usei na época”, relata Kac em um tom que mistura satisfação e surpresa. “O microchip é, naturalmente, uma réplica, porque o original ainda está na minha perna.”

As fotos na parede – Ele até se registrou, on-line, na IdentIchip, como dono de seu próprio corpo. Como se vê, a realidade de Kac é estabelecer conexões – algumas lógicas, outras não – em nome da arte. Supostamente, deve tratar de altos conceitos, metáforas, mas nunca de coisas simplesmente penduradas na parede. Mesmo assim, em suas instalações, há objetos na parede, como a tal seringa emoldurada. Há, também, fotografias em sépia de uma mulher de aproximadamente 30 anos. “São fotos de minha avó”, conta.

Ela se chamava Perla Cukier (quer dizer “pérola de açúcar”), uma judia polonesa que deixou seu país, em 1939, fugindo dos nazistas, e conheceu o marido, Perec Przytyk, no Brasil. A filha deles, mãe de Eduardo, casou-se cedo e logo se divorciou. Ao se casar pela segunda vez, deixou Kac para os avós terminarem de criar. Uma das fotos mostra Perla de moto na Polônia, em 1930. Seu sorriso confiante é a imagem mais envolvente da instalação. “Seu lado da família não sobreviveu”, conta Kac. “Perla era de Varsóvia. Então, deveria ter terminado em Auschwitz.”

Quando escaneado, o chip na perna de Eduardo identifica seu número da mesma maneira como as tatuagens carimbavam os números dos prisioneiros de campos nazistas. A literalidade elegante dessa conexão é quase embaraçosa para Kac em seu papel de distorcedor profissional de jargões conceituais. Mas há algo aqui que ilumina o coelho que brilha no escuro. É a obsessão de Kac com o “outro”, com a maneira como tratamos o estranho e o estrangeiro. Pode ser que esse coelho seja uma citação a Maus, história em quadrinhos vencedora do Prêmio Pulitzer que retrata a questão do holocausto em que ratos representam judeus e gatos representam nazistas?

Kac tem essa relação com animais, quer entrar neles, quer, à sua maneira, ser um deles e dividir a experiência em seu website. Em uma caverna do Zoológico de Roterdam, ele construiu o que chama de morcego-robô, capaz de emitir sons iguais aos dos mais de 300 morcegos frutífagos do Egito que o rodeiam. “Quando se coloca o capacete, visualiza-se pontos entrando e saindo de um círculo que representa aqueles momentos de mútua percepção entre o morcego-robô e os morcegos vivos que habitam a caverna. É um momento em que estamos muito próximos do único mamífero que voa. Mas não tente fazer uma psicanálise do meu trabalho”, previne Kac. Por que não? Porque, quanto mais próximo lançarmos o olhar sobre a tecnologia, menos impressionante ela se torna. O morcego robô não é mais sofisticado que um tamagochi... A cápsula do tempo nada mais é que um chip de identificação...

Um dia, enquanto conversávamos, dois pequenos cães passaram por nós. Kac os observou bem de perto. Um deles era um pequeno terrier Jack Russel preto-e-branco de beleza premiável. “Um cão com bom potencial de fluorescência”, arrisquei. Em 1998, Kac anunciou que planejava fazer um cão com proteína verde, mas não encontrou ninguém que realizasse o projeto. Hoje, ele pensa ter encontrado um laboratório da Califórnia que o ajudará a retomar a idéia.

Por enquanto, pelo menos, existe Alba. O que Kac continua a afirmar é que o trabalho artístico não é o coelho em si, mas a discussão em torno dele e sua adoção por uma família verdadeira. “Não queria que fosse uma simples experiência. Um tipo de interação real era o mais importante para mim.” Kac segura uma lista de anotações. “Este é meu plano de intervenção. Estou desenvolvendo essa ação em várias frentes: contando minha história diretamente, conseguindo apoio de pessoas influentes, mobilizando a opinião para libertar Alba.” Entretanto, visitas ao INRA ou encontros com seus representantes estão fora da lista. “Não posso chegar dos Estados Unidos e dizer aos franceses o que devem fazer”, esclarece Kac.

Cruzada anticientífica – Quanto a isso, ele está realmente certo, mas parece não ter percebido o ambiente sociopolítico em que entrou. A Europa vive o pânico causado pelo mal da vaca louca que se espalhou devido ao costume de alimentar os rebanhos com restos processados de animais mortos. Os mesmos cientistas, que afirmaram que induzir as vacas ao canibalismo não traria problemas, agora estão dizendo que a encefalopatia espongiforme bovina pode contaminar humanos por meio de hambúrgueres e causar a doença cerebral Creuzfeldt-Jacob. Tudo isso alimenta uma grande corrente de sentimento anticientífico.

A França, em particular, ainda está-se recobrando do escândalo ocorrido nos anos 80, com a contaminação de pacientes hemofílicos com HIV depois que o governo se recusou a avaliar as reservas de sangue com um teste de origem americana. Apenas um ou dois representantes oficiais foram punidos. A população culpa os políticos, os cientistas e até mesmo os Estados Unidos. Ressentimento é mais importante que direitos quando se trata de reações antiamericanas entre os gauleses. Essa tendência especial se reflete no furioso debate a respeito de alimentos transgênicos, vistos como parte de um plano de globalização da especulativa pesquisa científica americana.

Em meio a tudo isso, aterrissam Kac e seu coelho fluorescente. Não é de se surpreender que a recepção não tenha sido muito amigável. Embora os franceses tenham mais consideração pelos artistas do que por políticos ou executivos, há uma clara suspeita de que o coelho seja um tipo de cavalo de Tróia para multinacionais introduzirem organismos geneticamente modificados junto ao consumidor europeu.

Freqüentemente Kac é chamado a comentar a recente tese, “Notas a Respeito do Zoológico Humano”, pelo filósofo alemão Peter Sloterdijk, que defende a idéia de que a raça humana pode ser melhorada por métodos científicos – em outras palavras, por meio da eugenia ou transeugenia. Não há diferença tecnológica ou ética entre tentar prevenir doenças hereditárias ou construir sistemas imunológicos mais eficientes e tentar produzir pessoas mais fortes ou mais inteligentes. Dr. Frankenstein tinha idéias parecidas. Mengele também. E, se Kac pode criar um tipo especial de coelho em nome da arte, por que não podemos criar um ser humano especial? “Não!”, responde Kac. “Se fosse fazer algo com um ser humano, então eu seria o pai. Se bem que, muitas vezes, após essas palestras, algumas pessoas vêm até mim para dizer que gostariam de ser fluorescentes...”

Apropriação X criação – Uma das críticas comuns ao coelho de Kac é a de que ele não criou Alba, apenas se apropriou dele. Quando perguntei se isso era verdade, Kac me expôs a história da apropriação. “Artistas têm-se apropriado continuamente do trabalho dos outros, mas quando se diz apropriação em arte, não é exatamente isso que significa.” Ele cita Marcel Duchamp que, em 1917, apresentou uma daquelas latrinas de parede presentes em muitos banheiros masculinos como uma peça de arte e a chamou de Fonte. Foi quando nasceu oficialmente a apropriação que, a partir de então, afetou desde a pop art até a sampleagem musical. Mas Kac não acha graça na comparação de Alba com uma latrina. “É muito importante distinguir. Meu trabalho não é sobre apropriação, mas sobre criação.”

Está certo de que o artista brasileiro nunca disse que Alba era o primeiro coelho transgênico, nem mesmo que foi o primeiro a receber a proteína verde, mas ele acredita que nenhum brilhe tanto quanto o seu e não tem dúvidas que a encomenda é sua. Estará afirmando que este é o primeiro coelho criado em nome da arte? “Não tenho dúvidas a respeito”, responde prontamente.

Ele deixou Paris em 13 de dezembro do ano passado, tão longe de conseguir a libertação de Alba quanto estava no dia em que chegou. Eu também estava muito longe de ver o furtivo coelho ou seu criador, dr. Louis-Marie Houdebine. Diretor de pesquisa de desenvolvimento biológico e biotecnologia do centro do INRA em Jouy-en-Josas, Houdebine é um dos maiores expoentes na área de organismos geneticamente modificados.

Depois de vários telefonemas sem resposta, fiz uma última tentativa: procurei um de seus colegas, o irmão Jacques Arnould, autor do livro anticriacionista Deus, O Símio e o Big Bang e que já havia participado de um debate televisivo com Kac. Ele explicou que Houdebine e outras figuras do alto escalão do INRA tentaram controlar a situação quando estavam sobre grande pressão, tanto política quanto econômica e emocional. “Eles são muito sensíveis e um pouquinho loucos, esses pesquisadores. Você sabe, dizem que ficar louco é a doença de trabalho típica dos pesquisadores. E isso não é apenas uma piada.”

Na mesma tarde, talvez alertado por Arnould, Houdebine telefonou, e, dias após, eu já estava diante dos portões do centro do INRA em Jouy-en-Josas, a sudoeste de Paris. Encontro Houdebine, que trabalha no INRA, há quase 33 anos, em seu escritório com vista para o vale. Pela janela, ele aponta para um grupo de estruturas baixas e longas. “Os famosos coelhos verdes estão naqueles prédios”, disse-me, ao iniciar sua versão dos fatos. Grande parte do que me disse fecha com a história contada por Kac. Louis Bec, diretor do festival digital de Avignon, entrou em contato com seu amigo Patrick Prunet, do INRA, em 1999, e pediu-lhe um coelho fluorescente para a mostra de Kac. Prunet procurou Houdebine, que concordou em colaborar, mas o diretor do INRA, quando soube, negou-se prontamente. Não há o que questionar a respeito da criação de um coelho especificamente para Kac. Afinal, nem sequer existe esse tipo de encomenda. Quanto ao fato de Kac querer levá-lo para sua casa em Chicago, deve ter havido algum engano, pois isso nunca foi uma opção possível.

Houdebine foi recentemente contratado como consultor pela BioProtein Technologies, empresa criada para “preparar substâncias farmacêuticas no leite de animais transgênicos” – inclusive coelhos. Ele acredita que coelhos fariam um excelente trabalho produzindo eritroproteína, por exemplo, mesmo que essa proteína humana seja procurada, em geral, apenas por atletas que desejam aumentar o número de células vermelhas do sangue sem deixar traços em testes antidoping. Segundo Houdebine, o mercado mundial requer menos de um quilo do produto por ano. “Apenas algumas centenas de coelhos já seria o suficiente.” Coelhos transgênicos têm sido mais utilizados na produção da enzima alfa-glucosidase, vital no tratamento de uma doença rara e fatal que afeta crianças, chamada Mal de Pompe.

Bioarte – Confundir a imagem dos rentáveis coelhos produtores de substâncias farmacêuticas com a do frívolo coelho objeto de arte poderia afastar a empresa BioProtein da Holanda e da França. Por isso, Houdebine foi incentivado a desestimular as aspirações que Kac nutria pela criação de Alba e a diminuir sua própria participação no projeto. Houdebine diz que não tem nada contra Kac e sua bioarte. “Penso que ele seja uma boa pessoa, mas, em determinado momento, trapaceou.” Em 1998, a equipe de Houdebine adquiriu uma certa quantidade de proteína verde fluorescente, combinou-a com a proteína humana EF1Alfa presente em todas as células e a injetou nos óvulos de três coelhos albinos que, ao atingirem a maturidade, procriaram, resultando em filhotes com mostras de sinais de fluorescência. Filhotes não-portadores da proteína foram destruídos.

A uma certa altura dos fatos, os coelhos fluorescentes já somavam 150 indivíduos, número maior que o suportado pelas instalações. Parte deles foi eliminada. Atualmente, há uma população disponível de seis ou sete animais, mas poucos viverão por muito tempo. São os ovários fluorescentes desses animais que importam à pesquisa. Quando retirados, os doadores são mortos. Esse seria o destino de Alba. “Trata-se de um animal experimental. Se for preciso sacrificá-lo, nós o faremos, sem dúvida”, determina Houdebine.

Quando Louis Bec telefonou de Avignon, em meados de 1999, Houdebine achou o pedido tentador. Autor do livro Organismos Geneticamente Modificados, Verdade e Mentira, Houdebine gostou da idéia de mostrar um de seus coelhos em uma falsa sala de estar. “O coelho seria visto por várias pessoas. Haveria um debate. Planejávamos expor algumas fotos de células fluorescentes, tornando público o que havíamos criado, mostrando o quanto poderia ser belo.” Kac e Bec ajudariam Houdebine na defesa da causa dos organismos geneticamente modificados.

Em abril do ano passado, Kac e Bec trouxeram as lâmpadas e os óculos necessários para examinar os coelhos: três foram retirados de suas gaiolas. Um deles não era portador do gene fluorescente verde, e seus olhos, sob luz azul, eram de um vermelho brilhante. Os outros dois eram portadores da proteína, e seus olhos tinham um surpreendente brilho verde. A pele deles também brilhava, embora não fosse possível precisar o quanto, por causa da pelagem. Kac pegou um dos coelhos fluorescentes e o segurou no colo, mas ele estava muito assustado, e era difícil segurá-lo. Então, apanhou o coelho normal, que era mais calmo. Houdebine se lembra de que era “era muito calmo e doce”. Mais tarde, Kac o chamou de Alba.

O momento mais esperado da visita. Fomos ver as gaiolas de coelhos. À direita da entrada, um grande banheiro com uma pia enorme e uma ordenhadeira para coelhos. Lá dentro, havia aproximadamente 100 coelhos albinos. Alba estava parado no fundo da gaiola, e parecia nem notar nossa presença. Sob a luz branca do prédio, não era possível ver nenhum brilho esverdeado, e seus olhos eram plácidos e rosados. Copiei as informações contidas no cartão pendurado na gaiola de Alba. Ele havia nascido em 31 de dezembro de 1999. Telefonei para Eduardo Kac, em Chicago, e lhe disse que havia encontrado Alba. Houve um silêncio do outro lado da linha.

Relatei o que havia visto e o que Houdebine me havia contado. “Tinha medo de que ele mudasse o discurso após o escândalo.” Respondi que não sabia ao certo o que havia acontecido. Kac afirmou que não tinha dúvidas sobre haver proposto o projeto no início de 1998 e sobre Bec lhe haver dito que já estava em curso em 1999. Bec lhe dissera também que o coelho havia nascido em fevereiro de 2000. Kac avaliava as condições do nascimento do exato coelho, cuja criação supostamente havia provocado. Houdebine “já estava provavelmente a ponto de efetuar uma fecundação, ou talvez a tenha iniciado especificamente por minha causa, ou talvez ela já estivesse até em andamento”. Talvez, sugeri eu, tudo tenha sido um grande mal-entendido.

“Outra coisa muito importante”, continua Kac, “é a diferença entre a linguagem científica e a linguagem artística. A ciência, digamos, cria um remédio para curar pessoas. O foco da pesquisa é o medicamento, e tudo se concentra nesse objeto físico, mas a arte não trabalha assim. A latrina de Duchamp deveria ser usada? Certamente que não. É o papel do simbólico que muitos cientistas não entendem.”

–E o futuro da arte transgênica?

– A realização do próprio trabalho é algo que os artistas podem aprender, estão aprendendo e sempre aprenderão – respondeu ele, finalizando no tom objetivo de quem volta a tratar de negócios.


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